Apresentação, José Pureza
A Comunidade de Acolhimento Cristão João XXIII é uma comunidade eclesial de base sem assumir as consequências todas de o ser.
Saímos das paróquias por causa do anonimato e cultivámos a familiaridade, o afecto e o cuidado com rosto concreto. Saímos dos movimentos por causa da nostalgia da cristandade de massas, triunfante e organizada, e cultivámos a pequenez e a presença no que mexe lá fora.
Do que não saímos foi daquilo em que fomos educados na Acção Católica: a ter a revisão de vida como modo de ser cristão, a assumir a opção preferencial pelos pobres como princípio de vida e a querer ser fermento que leveda a massa como forma de compromisso.
Escolhemos João XXIII como patrono porque não nos revemos numa igreja que multiplica anátemas e que desconfia de um mundo emancipado das religiões.
Somos Comunidade de Acolhimento porque acolhemos pessoas e, sobretudo, a vida a fluir, totalmente insubmissa a normas e a códigos morais fechados e apriorísticos.
Deve ser por isto tudo que o nosso bispo nos qualificou como "comunidade de risco". Esse é o mais forte dos traços de identidade desta comunidade – o gosto, a vocação de existir no risco, aquele que Yves Congar usou para definir a "igreja do limiar". Assim: "Gente que passa junto ao limiar da igreja, uns pensando-se fora, outros pensando-se dentro. Mas também aqui a fronteira não existe (…). A diferença entre uns e outros não é redutível a «acreditar» ou «não acreditar» (…). Por um lado, os que tentam seguir Jesus Cristo fazem-no porque nele vêem o caminho para Deus. Por outro lado, os que servem os fracos de entre os mais fracos são os que estão perto de Deus. Não há uma fronteira visível na humanidade, separando a comunidade dos cristãos da comunidade de toda a humanidade."
A comunidade, tal como a Igreja, não está, é. Sem um território, sem uma administração, sem um templo. Apenas acolhimento, risco e luz" (que é o nome da nossa Sala).
segunda-feira, dezembro 14
segunda-feira, novembro 23
Cristo Rei
Que poder temos? o que dele fazemos?
Foi este o desafio que a Carminho e o José Pureza nos lançaram... a partilha foi rica e intensa, tendo versado diversos dos poderes com que lidamos: o de liderar equipas e/ou instituições, o de influenciar os poderes institucionais pela via da participação cívica,...
Mas foi com muito agrado que registámos uma das notícias deste fim-de-semana: o encontro de Bento XVI, em Roma, com mulheres e homens da cultura. Escritoras/es e músicas/os, arquitectas/os e poetisas/as, cineastas e pintoras/es, mais próximos ou mais distantes da Igreja, tod@s foram convocados pelo Papa, que usou o seu poder para estabelecer pontes, construindo um diálogo rico e fecundo com um mundo tantas vezes, e de modo especial no último século, malquisto (bastará lembrar o episódio mais recente, vivido em Portugal).
Fica aqui, ainda, uma outra reflexão, descoberta no http://religionline.blogspot.com/
Para a semana lá nos encontraremos para celebrar o primeiro domingo do Advento.
Começaremos, então, a caminhada para o Natal.
Tragam um/a amig@, também.
Uma boa semana para tod@s.
Foi este o desafio que a Carminho e o José Pureza nos lançaram... a partilha foi rica e intensa, tendo versado diversos dos poderes com que lidamos: o de liderar equipas e/ou instituições, o de influenciar os poderes institucionais pela via da participação cívica,...
Mas foi com muito agrado que registámos uma das notícias deste fim-de-semana: o encontro de Bento XVI, em Roma, com mulheres e homens da cultura. Escritoras/es e músicas/os, arquitectas/os e poetisas/as, cineastas e pintoras/es, mais próximos ou mais distantes da Igreja, tod@s foram convocados pelo Papa, que usou o seu poder para estabelecer pontes, construindo um diálogo rico e fecundo com um mundo tantas vezes, e de modo especial no último século, malquisto (bastará lembrar o episódio mais recente, vivido em Portugal).
Fica aqui, ainda, uma outra reflexão, descoberta no http://religionline.blogspot.com/
Para a semana lá nos encontraremos para celebrar o primeiro domingo do Advento.
Começaremos, então, a caminhada para o Natal.
Tragam um/a amig@, também.
Uma boa semana para tod@s.
croireTV : Christ, Roi de l'univers - Croire
(Comentário de Jean-Luc Ragonneau, redactor de Croire Aujourd'hui)
(Comentário de Jean-Luc Ragonneau, redactor de Croire Aujourd'hui)
sábado, novembro 21
Apocalipse
Retomámos as nossas celebrações há algum tempo.
No passado Domingo o Samelo ensinou-nos que o Apocalipse é o anúncio da esperança para o tempo presente.
Por isso mesmo, e apesar de já ter passado há algum tempo (do tamanho de um grão de mostarda ou talvez menos...), aqui vos deixo três pequenos textos: dois da Cila e do Zé Filipe, outro do Samelo, todos do Casamento que a Cila e o Zé Filipe celebraram tendo o Samelo e mais umas dezenas de Amigos por testemunhas (27.Junho.2009). Porque tratam, cada um à sua maneira, de anunciar a esperança.
"Boas vindas
Queremos agradecer, do fundo do coração, a presença de cada um de vós, aqui hoje.
A escolha do lugar para realizar o nosso casamento, como tivemos a oportunidade de dizer a alguns dos presentes, recaiu sobre esta igreja para facilitar a vossa chegada cá, sobretudo dos que não conhecem Aveiro. No entanto, quando viemos conhecer este espaço, percebemos que nos identificamos bastante com esta igreja, do arquitecto Luís Cunha.
Os bancos estão dispostos em semi-círculo e em anfiteatro, tornando as pessoas mais próximas. No projecto inicial havia apenas a imagem de Nossa Senhora e este Cristo de espelho para que nos possamos rever Nele. A igreja é simples, despojada de ostentação e riqueza, mais próxima da realidade das duas povoações que acolhe. Estamos contentes com a escolha deste lugar, agora descoberto o seu estilo, pós-Concílio Vaticano II. Como o Samelo gosta de lembrar “nada acontece por acaso”.
Vamos ainda explicar brevemente o sentido que demos a esta celebração.
Pois bem, como é evidente, estamos aqui porque somos crentes, porque afirmamos acreditar em Deus, no Deus de Jesus Cristo. Para nós acreditar em Deus é acreditar que a nossa história não é em vão. Isso dá-nos uma responsabilidade especial sobre a nossa própria vida. Como dizia o Jorge de Sena, achamos que devemos viver com uma “fiel dedicação à honra de estar vivo”. Descobrirmos que nos encontros e desencontros das nossas vidas alguma coisa mais preciosa emerge – aquilo a que Jesus chamava o Reino de Deus, já não com um sentido apocalíptico, mas com um sentido libertador. A sua morte e ressurreição mostram-nos qual o Reino de que se fala: viver a vida com sentido até ao fim. Nós temos muitas vezes essa intuição nos momentos mais felizes e por vezes também nos momentos mais tristes: a vida só se ganha se formos capazes de a oferecer aos outros, sabendo que nada é em vão.
Foi assim que aprendemos a olhar para a vida e é assim que queremos continuar a vivê-la a dois. Por isso viemos aqui celebrar o nosso casamento. Esta missa, que preparámos muito ao nosso jeito, será provavelmente a melhor forma de explicação do que queremos dizer e do que queremos viver. E então, celebremos!"
"Homilia*
Antes de passarmos ao rito do matrimónio, gostávamos de vos dizer duas ou três coisas sobre esse momento, sobre o que ele significa para nós, no fundo sobre o que queremos que seja o nosso casamento. E vamos fazê-lo de forma muito simples, exprimindo alguns desejos que têm muito a ver com os textos que acabámos de ouvir.
Primeiro desejo: queremos que o nosso projecto de vida a dois seja um projecto aberto. Aberto à novidade de um Deus que nos surpreende, aberto à solidariedade para com todos, aberto a um projecto muito mais vasto que é o projecto de Deus para a felicidade das pessoas. Como nos diz o poema da Rita: queremos “encher tudo de futuros”, queremos construir possibilidades novas, queremos transformar os nossos sonhos e esperanças em realidade. Queremos que o nosso projecto de vida a dois seja também uma forma modesta de participação no que Jesus chamava o Reino dos Céus.
O texto do Evangelho que escolhemos, conhecido por “Sermão da Montanha”, é talvez um dos textos mais belos da história humana, onde Jesus explica qual é esse Reino que ele anunciava: um reino para os simples e generosos, onde haverá consolo para os que choram, um reino de paz, de verdade e de justiça. Como dizia Umberto Eco, mesmo que Deus não exista, o facto de a humanidade O conceber com um projecto tão maravilhoso de amor e esperança é por si só um motivo de espanto e crença na humanidade. É esse projecto de amor, de esperança e liberdade que queremos viver a dois.
Segundo desejo: queremos que este compromisso seja para nós e para todos um motivo forte de alegria. A alegria não é somente contentarmo-nos com alguma coisa boa momentaneamente. Também não é pintarmos o mundo de cor-de-rosa. A alegria de que falamos não é propriamente um sentimento, mas antes uma forma de encarar a vida, alegre porque cheia de sentido.
A primeira leitura, do livro do Eclesiastes explica um pouco mais o que queremos dizer. “Para tudo há um tempo” – devemos saber viver um dia de cada vez, sabendo que as coisas nem sempre avançam como queremos. “Todas as coisas são boas a seu tempo” – devemos saborear os bons momentos e ser capazes de encontrar sinais de esperança em todos eles. Como dizia o Alçada Baptista, «a vida não é banal não obstante o nosso quotidiano ter sido de uma banalidade atroz. Acredito que é possível descobrir pedaços de luz no meio de tudo isso». A nossa vida a dois tem sido já uma experiência muito feliz de crescimento, dia a dia. Queremos continuar a gozar essa alegria de vivermos e crescermos juntos, de descobrirmos em conjunto a luz do nosso quotidiano, porque isso é muito bom.
Terceiro desejo: queremos que este compromisso não seja só nosso, mas também vosso. A comunidade onde crescemos, onde quotidianamente celebramos a nossa fé, é também aquela que se compromete connosco a acompanhar a nossa vida. Para nós a experiência da fé passa muito pela interpelação a sermos melhores, mais solidários, mais fraternos, mais humanos. Nós não somos donos da verdade e muitas vezes precisamos da ajuda de outros para descortinar os caminhos do Senhor da História. É isso que nos diz o texto da Gaudium et Spes: a Igreja é essencialmente uma comunidade que olha para a história das pessoas, para as alegrias e tristezas das pessoas de hoje e que as ampara na sua procura de uma vida mais cheia de significado. É isso que quer dizer uma Igreja “real e intimamente ligada ao género humano e à sua história”. Foi nesta Igreja que crescemos, nas nossas famílias, no Movimento Católico de Estudantes, na Comunidade João XXIII. É nessa Igreja que queremos continuar a crescer, convosco.
São estes os três desejos que deixamos. Terminamos com uma espécie de poema que resume isto duma maneira um pouco mais espalhafatosa e desarrumada. Então aqui vai:
Queremos festejar o nosso amor!
Queremos uma vida cheia de sentido
Queremos viver a sério a nossa solidariedade
Queremos um coração onde caiba toda a gente
Queremos uma liberdade mais pura e completa
Queremos ser nós mesmos até ao fim
Queremos encontrar sempre coisas novas
Queremos esperar e descobrir o inesperado
Queremos viver como se estivéssemos a dançar
Queremos acreditar profundamente nas pessoas
Queremos embriagar-nos do amor de Deus
Queremos encontrar esperança mesmo no desespero
Queremos descobrir uma presença mais pura em cada pessoa
Queremos viver o “afecto de cada dia nos dai hoje”
Queremos ensinar alguma coisa e aprender muito com os miúdos
Queremos a verdade como peixe quer água
Queremos a justiça sempre
Queremos ser escutados sem fazer barulho
Queremos encontrar motivos porque lutar
Queremos cultivar humanidade."
"Matrimónio de Cila e Zé Filipe – Homilia
A fé da pessoa bíblica, iluminada por Deus, reinterpreta os acontecimentos, comum a outros povos, como sinais da aliança. Essa atitude mostra-nos uma característica da “mentalidade sacramental”. Quando Jesus “institui” os sacramentos, não inventa uma realidade semelhante a um meteorito, a uma instituição que “cai dos céus aos trambolhões“ e se impõe à pessoa humana. Trata-se, pelo contrário, de algo que tem as suas raízes na condição humana. É que Deus é, ao mesmo tempo, criador e salvador. Por isso, linguagens, gestos, encontros… dizem-nos claramente que a pessoa humana necessita do que é sensível para conhecer e exprimir-se, necessita de sinais autênticos sem formalismos nem ritualismos, sinais que sejam expressão do “coração” na sua relação com o Senhor Deus, consigo, com os outros, com a natureza e com os acontecimentos.
O que há de mais comum e, simultaneamente, de mais misterioso do que o encontro de dois seres que se amam e se reconhecem e que, no entanto, nunca acabaram de se descobrir? É o quotidiano em toda a sua poesia, riqueza e monotonia; é o quotidiano a tornar-se espelho do infinito.
Desde a primeira página da Bíblia, o encontro da mulher e do homem é visto como um dos espaços em que se desvenda o invisível. O próprio Deus quis inscrever o Seu rosto no casal humano que aparece no sexto dia como o cume da criação.
Cila e Zé Filipe, na vossa vida de casal tornais-vos imagem de Deus, tornais-vos sacramento nos vossos três desejos: projecto aberto, vivido na alegria e apoiado na e pela comunidade(s).
Entre todos os sacramentos, o matrimónio é um daqueles em que aparece claramente que não se pode separar a realidade humana e a realidade sacramental.
No matrimónio, mais do que noutro sacramento, fidelidade e perdão estão sempre ligados. Ambos têm a mesma fonte. Quando um esposo perdoa ao outro, é porque quer permanecer com ele, para que o amanhã seja diferente do ontem. Quando se perdoa vive-se mais alegre e é-se mais humano(a)... e mais divino(a)! Não se trata nem de esquecer o passado, nem de se tornar indiferente, nem de ser ingénuo(a)!...
Perdoar, como Deus perdoa, é amar o bastante para querer continuar a construir o futuro em conjunto; por isso, o casal humano é a realidade no seio da qual se pode compreender melhor toda a riqueza e toda a dificuldade do perdão: aí se revela também o rosto do Deus de Jesus.
Então, nesta envolvência sacramental ousamos cantar:
É grande a Tua piedade,
Se não fosse,
Qualquer homem deixaria de orar.
Mas apostamos no Teu Reino
Mesmo se sofremos. (bis)
Refrão
Seja o Teu Reino um corpo,
O mistério do Teu rosto
E as mãos
De gestos simples de amor
E de invenção.
Temos as mãos no vazio
Nada tocam,
Ainda que as saibamos feitas para lutar;
Mas apostamos no Teu Reino
Queremos lutar. (bis)
Ó Deus da nossa unidade,
Faz-nos fortes
Nossa força é trabalhar a aventura.
Mas apostamos no Teu Reino
Vamos trabalhar. (bis)"
No passado Domingo o Samelo ensinou-nos que o Apocalipse é o anúncio da esperança para o tempo presente.
Por isso mesmo, e apesar de já ter passado há algum tempo (do tamanho de um grão de mostarda ou talvez menos...), aqui vos deixo três pequenos textos: dois da Cila e do Zé Filipe, outro do Samelo, todos do Casamento que a Cila e o Zé Filipe celebraram tendo o Samelo e mais umas dezenas de Amigos por testemunhas (27.Junho.2009). Porque tratam, cada um à sua maneira, de anunciar a esperança.
"Boas vindas
Queremos agradecer, do fundo do coração, a presença de cada um de vós, aqui hoje.
A escolha do lugar para realizar o nosso casamento, como tivemos a oportunidade de dizer a alguns dos presentes, recaiu sobre esta igreja para facilitar a vossa chegada cá, sobretudo dos que não conhecem Aveiro. No entanto, quando viemos conhecer este espaço, percebemos que nos identificamos bastante com esta igreja, do arquitecto Luís Cunha.
Os bancos estão dispostos em semi-círculo e em anfiteatro, tornando as pessoas mais próximas. No projecto inicial havia apenas a imagem de Nossa Senhora e este Cristo de espelho para que nos possamos rever Nele. A igreja é simples, despojada de ostentação e riqueza, mais próxima da realidade das duas povoações que acolhe. Estamos contentes com a escolha deste lugar, agora descoberto o seu estilo, pós-Concílio Vaticano II. Como o Samelo gosta de lembrar “nada acontece por acaso”.
Vamos ainda explicar brevemente o sentido que demos a esta celebração.
Pois bem, como é evidente, estamos aqui porque somos crentes, porque afirmamos acreditar em Deus, no Deus de Jesus Cristo. Para nós acreditar em Deus é acreditar que a nossa história não é em vão. Isso dá-nos uma responsabilidade especial sobre a nossa própria vida. Como dizia o Jorge de Sena, achamos que devemos viver com uma “fiel dedicação à honra de estar vivo”. Descobrirmos que nos encontros e desencontros das nossas vidas alguma coisa mais preciosa emerge – aquilo a que Jesus chamava o Reino de Deus, já não com um sentido apocalíptico, mas com um sentido libertador. A sua morte e ressurreição mostram-nos qual o Reino de que se fala: viver a vida com sentido até ao fim. Nós temos muitas vezes essa intuição nos momentos mais felizes e por vezes também nos momentos mais tristes: a vida só se ganha se formos capazes de a oferecer aos outros, sabendo que nada é em vão.
Foi assim que aprendemos a olhar para a vida e é assim que queremos continuar a vivê-la a dois. Por isso viemos aqui celebrar o nosso casamento. Esta missa, que preparámos muito ao nosso jeito, será provavelmente a melhor forma de explicação do que queremos dizer e do que queremos viver. E então, celebremos!"
"Homilia*
Antes de passarmos ao rito do matrimónio, gostávamos de vos dizer duas ou três coisas sobre esse momento, sobre o que ele significa para nós, no fundo sobre o que queremos que seja o nosso casamento. E vamos fazê-lo de forma muito simples, exprimindo alguns desejos que têm muito a ver com os textos que acabámos de ouvir.
Primeiro desejo: queremos que o nosso projecto de vida a dois seja um projecto aberto. Aberto à novidade de um Deus que nos surpreende, aberto à solidariedade para com todos, aberto a um projecto muito mais vasto que é o projecto de Deus para a felicidade das pessoas. Como nos diz o poema da Rita: queremos “encher tudo de futuros”, queremos construir possibilidades novas, queremos transformar os nossos sonhos e esperanças em realidade. Queremos que o nosso projecto de vida a dois seja também uma forma modesta de participação no que Jesus chamava o Reino dos Céus.
O texto do Evangelho que escolhemos, conhecido por “Sermão da Montanha”, é talvez um dos textos mais belos da história humana, onde Jesus explica qual é esse Reino que ele anunciava: um reino para os simples e generosos, onde haverá consolo para os que choram, um reino de paz, de verdade e de justiça. Como dizia Umberto Eco, mesmo que Deus não exista, o facto de a humanidade O conceber com um projecto tão maravilhoso de amor e esperança é por si só um motivo de espanto e crença na humanidade. É esse projecto de amor, de esperança e liberdade que queremos viver a dois.
Segundo desejo: queremos que este compromisso seja para nós e para todos um motivo forte de alegria. A alegria não é somente contentarmo-nos com alguma coisa boa momentaneamente. Também não é pintarmos o mundo de cor-de-rosa. A alegria de que falamos não é propriamente um sentimento, mas antes uma forma de encarar a vida, alegre porque cheia de sentido.
A primeira leitura, do livro do Eclesiastes explica um pouco mais o que queremos dizer. “Para tudo há um tempo” – devemos saber viver um dia de cada vez, sabendo que as coisas nem sempre avançam como queremos. “Todas as coisas são boas a seu tempo” – devemos saborear os bons momentos e ser capazes de encontrar sinais de esperança em todos eles. Como dizia o Alçada Baptista, «a vida não é banal não obstante o nosso quotidiano ter sido de uma banalidade atroz. Acredito que é possível descobrir pedaços de luz no meio de tudo isso». A nossa vida a dois tem sido já uma experiência muito feliz de crescimento, dia a dia. Queremos continuar a gozar essa alegria de vivermos e crescermos juntos, de descobrirmos em conjunto a luz do nosso quotidiano, porque isso é muito bom.
Terceiro desejo: queremos que este compromisso não seja só nosso, mas também vosso. A comunidade onde crescemos, onde quotidianamente celebramos a nossa fé, é também aquela que se compromete connosco a acompanhar a nossa vida. Para nós a experiência da fé passa muito pela interpelação a sermos melhores, mais solidários, mais fraternos, mais humanos. Nós não somos donos da verdade e muitas vezes precisamos da ajuda de outros para descortinar os caminhos do Senhor da História. É isso que nos diz o texto da Gaudium et Spes: a Igreja é essencialmente uma comunidade que olha para a história das pessoas, para as alegrias e tristezas das pessoas de hoje e que as ampara na sua procura de uma vida mais cheia de significado. É isso que quer dizer uma Igreja “real e intimamente ligada ao género humano e à sua história”. Foi nesta Igreja que crescemos, nas nossas famílias, no Movimento Católico de Estudantes, na Comunidade João XXIII. É nessa Igreja que queremos continuar a crescer, convosco.
São estes os três desejos que deixamos. Terminamos com uma espécie de poema que resume isto duma maneira um pouco mais espalhafatosa e desarrumada. Então aqui vai:
Queremos festejar o nosso amor!
Queremos uma vida cheia de sentido
Queremos viver a sério a nossa solidariedade
Queremos um coração onde caiba toda a gente
Queremos uma liberdade mais pura e completa
Queremos ser nós mesmos até ao fim
Queremos encontrar sempre coisas novas
Queremos esperar e descobrir o inesperado
Queremos viver como se estivéssemos a dançar
Queremos acreditar profundamente nas pessoas
Queremos embriagar-nos do amor de Deus
Queremos encontrar esperança mesmo no desespero
Queremos descobrir uma presença mais pura em cada pessoa
Queremos viver o “afecto de cada dia nos dai hoje”
Queremos ensinar alguma coisa e aprender muito com os miúdos
Queremos a verdade como peixe quer água
Queremos a justiça sempre
Queremos ser escutados sem fazer barulho
Queremos encontrar motivos porque lutar
Queremos cultivar humanidade."
Cila e Zé Filipe, Junho 2009
* Há umas semanas o Jorge Wemans cravou-nos um texto para a Viragem sobre a nossa vivência em Igreja baseado na nossa preparação para o casamento. A nossa homilia foi escrita posteriormente com base nesse [outro] texto [que irá ser publicado na revista], introduzindo as referências às leituras e tornando a coisa um pouco mais pessoal.
* Há umas semanas o Jorge Wemans cravou-nos um texto para a Viragem sobre a nossa vivência em Igreja baseado na nossa preparação para o casamento. A nossa homilia foi escrita posteriormente com base nesse [outro] texto [que irá ser publicado na revista], introduzindo as referências às leituras e tornando a coisa um pouco mais pessoal.
"Matrimónio de Cila e Zé Filipe – Homilia
A fé da pessoa bíblica, iluminada por Deus, reinterpreta os acontecimentos, comum a outros povos, como sinais da aliança. Essa atitude mostra-nos uma característica da “mentalidade sacramental”. Quando Jesus “institui” os sacramentos, não inventa uma realidade semelhante a um meteorito, a uma instituição que “cai dos céus aos trambolhões“ e se impõe à pessoa humana. Trata-se, pelo contrário, de algo que tem as suas raízes na condição humana. É que Deus é, ao mesmo tempo, criador e salvador. Por isso, linguagens, gestos, encontros… dizem-nos claramente que a pessoa humana necessita do que é sensível para conhecer e exprimir-se, necessita de sinais autênticos sem formalismos nem ritualismos, sinais que sejam expressão do “coração” na sua relação com o Senhor Deus, consigo, com os outros, com a natureza e com os acontecimentos.
O que há de mais comum e, simultaneamente, de mais misterioso do que o encontro de dois seres que se amam e se reconhecem e que, no entanto, nunca acabaram de se descobrir? É o quotidiano em toda a sua poesia, riqueza e monotonia; é o quotidiano a tornar-se espelho do infinito.
Desde a primeira página da Bíblia, o encontro da mulher e do homem é visto como um dos espaços em que se desvenda o invisível. O próprio Deus quis inscrever o Seu rosto no casal humano que aparece no sexto dia como o cume da criação.
Cila e Zé Filipe, na vossa vida de casal tornais-vos imagem de Deus, tornais-vos sacramento nos vossos três desejos: projecto aberto, vivido na alegria e apoiado na e pela comunidade(s).
Entre todos os sacramentos, o matrimónio é um daqueles em que aparece claramente que não se pode separar a realidade humana e a realidade sacramental.
No matrimónio, mais do que noutro sacramento, fidelidade e perdão estão sempre ligados. Ambos têm a mesma fonte. Quando um esposo perdoa ao outro, é porque quer permanecer com ele, para que o amanhã seja diferente do ontem. Quando se perdoa vive-se mais alegre e é-se mais humano(a)... e mais divino(a)! Não se trata nem de esquecer o passado, nem de se tornar indiferente, nem de ser ingénuo(a)!...
Perdoar, como Deus perdoa, é amar o bastante para querer continuar a construir o futuro em conjunto; por isso, o casal humano é a realidade no seio da qual se pode compreender melhor toda a riqueza e toda a dificuldade do perdão: aí se revela também o rosto do Deus de Jesus.
Então, nesta envolvência sacramental ousamos cantar:
É grande a Tua piedade,
Se não fosse,
Qualquer homem deixaria de orar.
Mas apostamos no Teu Reino
Mesmo se sofremos. (bis)
Refrão
Seja o Teu Reino um corpo,
O mistério do Teu rosto
E as mãos
De gestos simples de amor
E de invenção.
Temos as mãos no vazio
Nada tocam,
Ainda que as saibamos feitas para lutar;
Mas apostamos no Teu Reino
Queremos lutar. (bis)
Ó Deus da nossa unidade,
Faz-nos fortes
Nossa força é trabalhar a aventura.
Mas apostamos no Teu Reino
Vamos trabalhar. (bis)"
António Samelo
domingo, março 29
«Se o grão de trigo, lançado à terra, morrer, dará muito fruto» – Domingo V da Quaresma
Foi o José Vieira que, hoje, nos ajudou na reflexão. Valeu a pena...
"COMEÇAR DE NOVO
O TPC de hoje que o professor José Manuel Pureza me encomendou tem um belo título: Começar de Novo. A primeira coisa, que imediatamente me ocorreu, foi cantar Ivan Lins…
Começar de novo e contar comigo
Vai valer a pena ter amanhecido
Ter me rebelado, ter me debatido
Ter me machucado, ter sobrevivido
Ter virado a mesa, ter me conhecido
Ter virado o barco, ter me socorrido
Começar de novo e contar comigo
Vai valer a pena ter amanhecido…
Depois comecei a pensar que sendo eu professor de Filosofia, se calhar, era suposto que eu falasse da condição humana, porque começar de novo é no fundo o tema do Mito de Sísifo. Este Sísifo é um herói da mitologia grega, que os deuses condenaram a repetir sempre a mesma tarefa de empurrar uma pedra do sopé de uma montanha até ao topo, só para vê-la rolar para baixo novamente. Albert Camus escreveu que este mito trágico pode ser um resumo do absurdo da condição humana: “ Se o mito é trágico é porque o homem seu protagonista tem consciência de que a esperança de atingir o propósito do seu trabalho é frustrada. Muitos trabalhadores do nosso tempo trabalham nas mesmas condições e o seu destino não é menos absurdo.”
Mas algumas perguntas se impõem: O ser humano tem ou não a possibilidade de modificar esta rotina absurda? Pode ou não lançar para longe o rochedo da miséria, da ignorância e da inconsciência? Pode ou não deixar de repetir a rotina dos dias, das semanas, dos meses e dos anos? Pode ou não alterar uma vida repetitiva e monótona para construir o próprio destino?
Responder negativamente a estas interrogações implicaria aceitar o fatalismo rotineiro que nunca nos permitirá modificar a nossa vida, o nosso presente e o nosso futuro.
Por isso, enquanto cristãos, homens e mulheres de fé, temos de recusar este fatalismo e temos antes de aceitar o desafio do Poeta (Miguel Torga):
Recomeça….
Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças…
Creio que este é de facto um belo desafio. Creio que é mesmo o desafio que se nos impõe com uma urgência urgente porque enquanto não alcançarmos as metas desejadas não podemos parar. Contentar-nos só com metade quando podemos ter tudo é preguiça. Nunca nos podemos dar por saciados por mais desilusões que possamos colher neste pomar de aventuras da nossa vida. Pedem-nos que sejamos fermento que leveda a massa. Que sejamos sal. Então sejamos sal e fermento. Não sei se vamos mudar o mundo. Mas sei que temos de mudar o nosso mundo. Sei que temos de começar de novo todos os dias porque vai valer a pena.
Ivan Lins - Começar de Novo
"COMEÇAR DE NOVO
O TPC de hoje que o professor José Manuel Pureza me encomendou tem um belo título: Começar de Novo. A primeira coisa, que imediatamente me ocorreu, foi cantar Ivan Lins…
Começar de novo e contar comigo
Vai valer a pena ter amanhecido
Ter me rebelado, ter me debatido
Ter me machucado, ter sobrevivido
Ter virado a mesa, ter me conhecido
Ter virado o barco, ter me socorrido
Começar de novo e contar comigo
Vai valer a pena ter amanhecido…
Depois comecei a pensar que sendo eu professor de Filosofia, se calhar, era suposto que eu falasse da condição humana, porque começar de novo é no fundo o tema do Mito de Sísifo. Este Sísifo é um herói da mitologia grega, que os deuses condenaram a repetir sempre a mesma tarefa de empurrar uma pedra do sopé de uma montanha até ao topo, só para vê-la rolar para baixo novamente. Albert Camus escreveu que este mito trágico pode ser um resumo do absurdo da condição humana: “ Se o mito é trágico é porque o homem seu protagonista tem consciência de que a esperança de atingir o propósito do seu trabalho é frustrada. Muitos trabalhadores do nosso tempo trabalham nas mesmas condições e o seu destino não é menos absurdo.”
Mas algumas perguntas se impõem: O ser humano tem ou não a possibilidade de modificar esta rotina absurda? Pode ou não lançar para longe o rochedo da miséria, da ignorância e da inconsciência? Pode ou não deixar de repetir a rotina dos dias, das semanas, dos meses e dos anos? Pode ou não alterar uma vida repetitiva e monótona para construir o próprio destino?
Responder negativamente a estas interrogações implicaria aceitar o fatalismo rotineiro que nunca nos permitirá modificar a nossa vida, o nosso presente e o nosso futuro.
Por isso, enquanto cristãos, homens e mulheres de fé, temos de recusar este fatalismo e temos antes de aceitar o desafio do Poeta (Miguel Torga):
Recomeça….
Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças…
Creio que este é de facto um belo desafio. Creio que é mesmo o desafio que se nos impõe com uma urgência urgente porque enquanto não alcançarmos as metas desejadas não podemos parar. Contentar-nos só com metade quando podemos ter tudo é preguiça. Nunca nos podemos dar por saciados por mais desilusões que possamos colher neste pomar de aventuras da nossa vida. Pedem-nos que sejamos fermento que leveda a massa. Que sejamos sal. Então sejamos sal e fermento. Não sei se vamos mudar o mundo. Mas sei que temos de mudar o nosso mundo. Sei que temos de começar de novo todos os dias porque vai valer a pena.
Ivan Lins - Começar de Novo
domingo, março 22
"Se eu me não lembrar de ti, Jerusalém, fique presa a minha língua" - Domingo IV da Quaresma
Que belo mote para a nossa reflexão, ajudada pelo texto de D. Pedro Casaldáliga:
"Os sonhos de um grande profeta"
O cardeal Carlo Maria Martini, jesuíta, biblista, arcebispo que foi de Milão e colega meu de Parkinson, um eclesiástico de diálogo, de acolhimento, de renovação a fundo, tanto na Igreja como na Sociedade, em seu livro de confidências e confissões Colóquios nocturnos em Jerusalém, declara: «Antes eu tinha sonhos acerca da Igreja. Sonhava com uma Igreja que percorre o seu caminho na pobreza e na humildade, que não depende dos poderes deste mundo; na qual se extirpasse de raiz a desconfiança; que desse espaço às pessoas que pensem com mais amplidão; que desse ânimo, especialmente, àqueles que se sentem pequenos ou pecadores. Sonhava com uma Igreja jovem. Hoje não tenho mais esses sonhos». Esta afirmação categórica de Martini não é, não pode ser, uma declaração de fracasso, de decepção eclesial, de renúncia à utopia. Martini continua sonhando nada menos que com o Reino, que é a utopia das utopias, um sonho do próprio Deus. Ele e milhões de pessoas na Igreja sonham com a «outra Igreja possível», ao serviço do «outro Mundo possível». E o cardeal Martini é uma boa testemunha e um bom guia nesse caminho alternativo; tem-no demonstrado.
Tanto na Igreja (na Igreja de Jesus que são várias Igrejas) como na Sociedade (que são vários povos, várias culturas, vários processos históricos) hoje mais do que nunca devemos radicalizar na procura da justiça e da paz, da dignidade humana e da igualdade na alteridade, do verdadeiro progresso dentro da ecologia profunda. E, como diz Bobbio, é preciso instalar a liberdade no coração mesmo da igualdade»; hoje com uma visão e uma acção estritamente mundiais. É a outra globalização, a que reivindicam os nossos pensadores, nossos os militantes, os nossos mártires, os nossos famintos...
A grande crise económica actual é uma crise global de Humanidade que não se resolverá com nenhum tipo de capitalismo, porque não é possível um capitalismo humano; o capitalismo continua a ser homicida, ecocida, suicida. Não há modo de servir simultaneamente ao deus dos bancos e ao Deus da Vida, conjugar a prepotência e a usura com a convivência fraterna. A questão axial é: Trata-se de salvar o Sistema ou trata-se de salvar a Humanidade? As grandes crises, grandes oportunidades. No idioma chinês a palavra crise desdobra-se em dois sentidos: crise como perigo, crise como oportunidade.
Na campanha eleitoral dos EUA apelou-se repetidamente «ao sonho de Luther King», querendo actualizar esse sonho; e, por ocasião dos 50 anos da convocatória do Vaticano II, tem-se recordado, com saudade, o Pacto das Catacumbas da Igreja serva e pobre. No dia 16 de Novembro de 1965, poucos dias antes da clausura do Concílio, 40 Padres Conciliares celebraram a Eucaristia nas catacumbas romanas de Domitila, e firmaram o Pacto das Catacumbas. Dom Helder Câmara, cujo centenário de nascimento estamos a celebrar neste ano, era um dos principais animadores do grupo profético. O Pacto em seus 13 pontos insiste na pobreza evangélica da Igreja, sem títulos honoríficos, sem privilégios e sem ostentações mundanas; insiste na colegialidade e na co-responsabilidade da Igreja como Povo de Deus e na abertura ao mundo e no acolhimento fraterno.
Hoje, nós, na convulsa conjuntura actual, professamos a vigência de muitos sonhos, sociais, políticos, eclesiais, aos quais de nenhum modo podemos renunciar. Seguimos rechaçando o capitalismo neoliberal, o neo-imperialismo do dinheiro e das armas, uma economia de mercado e de consumismo que sepulta na pobreza e na fome uma grande maioria da Humanidade. E continuaremos a rechaçar toda discriminação por motivos de género, de cultura, de raça. Exigimos a transformação substancial dos organismos mundiais (a ONU, o FMI, o Banco Mundial, a OMC...). Comprometemo-nos a viver uma «ecologia profunda e integral», propiciando uma política agrária-agrícola alternativa à política depredadora do latifúndio, da monocultura, do agrotóxico. Participaremos nas transformações sociais, políticas e económicas, para uma democracia de «alta intensidade».
Como Igreja, queremos viver, à luz do Evangelho, a paixão obsessiva de Jesus, o Reino. Queremos ser Igreja da opção pelos pobres, comunidade ecuménica e macroecuménica também. O Deus em quem acreditamos, o Abbá de Jesus, não pode ser de jeito nenhum causa de fundamentalismos, de exclusões, de inclusões absorventes, de orgulho proselitista. Chega de fazermos do nosso Deus o único Deus verdadeiro. «Meu Deus, deixa-me ver a Deus?». Com todo respeito pela opinião do Papa Bento XVI, o diálogo inter-religioso não somente é possível, é necessário. Faremos da co-responsabilidade eclesial a expressão legítima de uma fé adulta. Exigiremos, corrigindo séculos de descriminação, a plena igualdade da mulher na vida e nos ministérios da Igreja. Estimularemos a liberdade e o serviço reconhecido dos nossos teólogos e teólogas. A Igreja será uma rede de comunidades orantes, servidoras, proféticas, testemunhas da Boa Nova: uma Boa Nova de vida, de liberdade, de comunhão feliz. Uma Boa Nova de misericórdia, de acolhimento, de perdão, de ternura, samaritana à beira de todos os caminhos da Humanidade. Continuaremos a fazer com que se viva na prática eclesial a advertência de Jesus: a «Não será assim entre vocês» (Mt 21,26). Seja a autoridade serviço. O Vaticano deixará de ser Estado e o Papa não será mais chefe de Estado. A Cúria terá de ser profundamente reformada e as Igrejas locais cultivarão a inculturação do Evangelho e a ministerialidade compartilhada. A Igreja comprometer-se-á sem medo, sem evasões, com as grandes causas da justiça e da paz, dos direitos humanos e da igualdade reconhecida de todos os povos. Será profecia de anúncio, de denúncia, de consolação. A política vivida por todos os cristãos e cristãs será a «expressão mais alta do amor fraterno» (Pio XI).
Não renunciamos a estes sonhos mesmo quando possam parecer quimera. «Ainda cantamos, ainda sonhamos». Nós atemo-nos à palavra de Jesus: «Fogo vim trazer à Terra; e que mais posso querer senão que arda» (Lc 12,49). Com humildade e coragem, no seguimento de Jesus, tentaremos viver estes sonhos no dia-a-dia das nossas vidas. Continuará a haver crises e a Humanidade, com as suas religiões e as suas Igrejas, seguirá sendo santa e pecadora. Mas não faltarão as campanhas universais de solidariedade, os Foros Sociais, as Vias Campesinas, os movimentos populares, as conquistas dos Sem Terra, os pactos ecológicos, os caminhos alternativos da Nossa América, as Comunidades Eclesiais de Base, os processos de reconciliação entre o Shalom e o Salam, as vitórias indígenas e afro e, em todo o caso, mais uma vez e sempre, «eu me atenho ao dito: a Esperança».
Cada um e cada uma a quem possa chegar esta circular fraterna, em comunhão de fé religiosa ou de paixão humana, receba um abraço do tamanho destes sonhos. Os velhos ainda têm visões, diz a Bíblia (Jl 3,1). Li nestes dias esta definição: «A velhice é uma espécie de pós-guerra»; não exactamente de claudicação. O Parkinson é apenas um percalço do caminho e seguimos Reino adentro.
"Os sonhos de um grande profeta"
O cardeal Carlo Maria Martini, jesuíta, biblista, arcebispo que foi de Milão e colega meu de Parkinson, um eclesiástico de diálogo, de acolhimento, de renovação a fundo, tanto na Igreja como na Sociedade, em seu livro de confidências e confissões Colóquios nocturnos em Jerusalém, declara: «Antes eu tinha sonhos acerca da Igreja. Sonhava com uma Igreja que percorre o seu caminho na pobreza e na humildade, que não depende dos poderes deste mundo; na qual se extirpasse de raiz a desconfiança; que desse espaço às pessoas que pensem com mais amplidão; que desse ânimo, especialmente, àqueles que se sentem pequenos ou pecadores. Sonhava com uma Igreja jovem. Hoje não tenho mais esses sonhos». Esta afirmação categórica de Martini não é, não pode ser, uma declaração de fracasso, de decepção eclesial, de renúncia à utopia. Martini continua sonhando nada menos que com o Reino, que é a utopia das utopias, um sonho do próprio Deus. Ele e milhões de pessoas na Igreja sonham com a «outra Igreja possível», ao serviço do «outro Mundo possível». E o cardeal Martini é uma boa testemunha e um bom guia nesse caminho alternativo; tem-no demonstrado.
Tanto na Igreja (na Igreja de Jesus que são várias Igrejas) como na Sociedade (que são vários povos, várias culturas, vários processos históricos) hoje mais do que nunca devemos radicalizar na procura da justiça e da paz, da dignidade humana e da igualdade na alteridade, do verdadeiro progresso dentro da ecologia profunda. E, como diz Bobbio, é preciso instalar a liberdade no coração mesmo da igualdade»; hoje com uma visão e uma acção estritamente mundiais. É a outra globalização, a que reivindicam os nossos pensadores, nossos os militantes, os nossos mártires, os nossos famintos...
A grande crise económica actual é uma crise global de Humanidade que não se resolverá com nenhum tipo de capitalismo, porque não é possível um capitalismo humano; o capitalismo continua a ser homicida, ecocida, suicida. Não há modo de servir simultaneamente ao deus dos bancos e ao Deus da Vida, conjugar a prepotência e a usura com a convivência fraterna. A questão axial é: Trata-se de salvar o Sistema ou trata-se de salvar a Humanidade? As grandes crises, grandes oportunidades. No idioma chinês a palavra crise desdobra-se em dois sentidos: crise como perigo, crise como oportunidade.
Na campanha eleitoral dos EUA apelou-se repetidamente «ao sonho de Luther King», querendo actualizar esse sonho; e, por ocasião dos 50 anos da convocatória do Vaticano II, tem-se recordado, com saudade, o Pacto das Catacumbas da Igreja serva e pobre. No dia 16 de Novembro de 1965, poucos dias antes da clausura do Concílio, 40 Padres Conciliares celebraram a Eucaristia nas catacumbas romanas de Domitila, e firmaram o Pacto das Catacumbas. Dom Helder Câmara, cujo centenário de nascimento estamos a celebrar neste ano, era um dos principais animadores do grupo profético. O Pacto em seus 13 pontos insiste na pobreza evangélica da Igreja, sem títulos honoríficos, sem privilégios e sem ostentações mundanas; insiste na colegialidade e na co-responsabilidade da Igreja como Povo de Deus e na abertura ao mundo e no acolhimento fraterno.
Hoje, nós, na convulsa conjuntura actual, professamos a vigência de muitos sonhos, sociais, políticos, eclesiais, aos quais de nenhum modo podemos renunciar. Seguimos rechaçando o capitalismo neoliberal, o neo-imperialismo do dinheiro e das armas, uma economia de mercado e de consumismo que sepulta na pobreza e na fome uma grande maioria da Humanidade. E continuaremos a rechaçar toda discriminação por motivos de género, de cultura, de raça. Exigimos a transformação substancial dos organismos mundiais (a ONU, o FMI, o Banco Mundial, a OMC...). Comprometemo-nos a viver uma «ecologia profunda e integral», propiciando uma política agrária-agrícola alternativa à política depredadora do latifúndio, da monocultura, do agrotóxico. Participaremos nas transformações sociais, políticas e económicas, para uma democracia de «alta intensidade».
Como Igreja, queremos viver, à luz do Evangelho, a paixão obsessiva de Jesus, o Reino. Queremos ser Igreja da opção pelos pobres, comunidade ecuménica e macroecuménica também. O Deus em quem acreditamos, o Abbá de Jesus, não pode ser de jeito nenhum causa de fundamentalismos, de exclusões, de inclusões absorventes, de orgulho proselitista. Chega de fazermos do nosso Deus o único Deus verdadeiro. «Meu Deus, deixa-me ver a Deus?». Com todo respeito pela opinião do Papa Bento XVI, o diálogo inter-religioso não somente é possível, é necessário. Faremos da co-responsabilidade eclesial a expressão legítima de uma fé adulta. Exigiremos, corrigindo séculos de descriminação, a plena igualdade da mulher na vida e nos ministérios da Igreja. Estimularemos a liberdade e o serviço reconhecido dos nossos teólogos e teólogas. A Igreja será uma rede de comunidades orantes, servidoras, proféticas, testemunhas da Boa Nova: uma Boa Nova de vida, de liberdade, de comunhão feliz. Uma Boa Nova de misericórdia, de acolhimento, de perdão, de ternura, samaritana à beira de todos os caminhos da Humanidade. Continuaremos a fazer com que se viva na prática eclesial a advertência de Jesus: a «Não será assim entre vocês» (Mt 21,26). Seja a autoridade serviço. O Vaticano deixará de ser Estado e o Papa não será mais chefe de Estado. A Cúria terá de ser profundamente reformada e as Igrejas locais cultivarão a inculturação do Evangelho e a ministerialidade compartilhada. A Igreja comprometer-se-á sem medo, sem evasões, com as grandes causas da justiça e da paz, dos direitos humanos e da igualdade reconhecida de todos os povos. Será profecia de anúncio, de denúncia, de consolação. A política vivida por todos os cristãos e cristãs será a «expressão mais alta do amor fraterno» (Pio XI).
Não renunciamos a estes sonhos mesmo quando possam parecer quimera. «Ainda cantamos, ainda sonhamos». Nós atemo-nos à palavra de Jesus: «Fogo vim trazer à Terra; e que mais posso querer senão que arda» (Lc 12,49). Com humildade e coragem, no seguimento de Jesus, tentaremos viver estes sonhos no dia-a-dia das nossas vidas. Continuará a haver crises e a Humanidade, com as suas religiões e as suas Igrejas, seguirá sendo santa e pecadora. Mas não faltarão as campanhas universais de solidariedade, os Foros Sociais, as Vias Campesinas, os movimentos populares, as conquistas dos Sem Terra, os pactos ecológicos, os caminhos alternativos da Nossa América, as Comunidades Eclesiais de Base, os processos de reconciliação entre o Shalom e o Salam, as vitórias indígenas e afro e, em todo o caso, mais uma vez e sempre, «eu me atenho ao dito: a Esperança».
Cada um e cada uma a quem possa chegar esta circular fraterna, em comunhão de fé religiosa ou de paixão humana, receba um abraço do tamanho destes sonhos. Os velhos ainda têm visões, diz a Bíblia (Jl 3,1). Li nestes dias esta definição: «A velhice é uma espécie de pós-guerra»; não exactamente de claudicação. O Parkinson é apenas um percalço do caminho e seguimos Reino adentro.
Pedro Casaldáliga, Circular 2009. [com adaptações] (in: http://www.combonianosbne.org/node/526)
domingo, março 15
"Senhor, Vós tendes palavras de vida eterna" – Domingo III da Quaresma
Esta semana, ajudados pelo José Pureza, rezámos também...
Pelo Luís, pelo João, por nós
Estranha coisa esta de a morte nos trazer a vida de volta quando dela pouco quisemos saber no tempo em que com ela nos cruzámos. Foi assim, para muitos de nós, com o Luís. Foi quando ele morreu, subitamente, que procurámos resgatar o melhor da sua vida para entregar ao Miguel e à Ana como a única herança que valia a pena herdar. Na dor da Nani, a Comunidade aprendeu a ver a presença ausente da vida do Luís. Acho que nunca nos resignámos a esse lugar vazio. Nestes quatro anos, acompanhámos a Nani não só por amizade e por emoção mas também por estarmos com ela irmanad@s na perplexidade perante o mistério da perda. Hoje vimos aqui rezar para que esta pergunta que está connosco há quatro anos não deixe de nos desassossegar. E para que a possamos refazer, a olhar para a esperança, em conjunto com a Nani, o Miguel e a Ana, a tempo inteiro.
Foi também a morte do João Mesquita que trouxe de volta a sua vida, esta semana, para @s seus/suas muit@s amig@s. O João teve uma vida vertical e limpa, feita de cumplicidades muito densas. Foi uma vida muito difícil, por ser exigente de princípios e intransigente de recusas. Esta semana. @s seus/suas muit@s amig@s olharam para trás, lá para onde o João esteve. E sentiram tod@s esse mistério de uma vida que marca vidas a tomar corpo. O João não acreditava em Deus. Mas eu acho que ele se limitaria a cofiar o bigode e a acender mais um cigarro e, com calma e uma grande bonomia, escutaria a oração que eu hoje aqui faço para dar graças a Deus pelo seu testemunho de vida e para lhe pedir carinho e alento para a Clara e a Joaninha.
No final, o Zé Carlos Pina partilhou connosco um cântico retirado do disco Keur Moussa: Sacred Chant & African Rhythms from Senegal*, interpretado pelos Monks of Keur Moussa Abbey (Senegal). A música é o "Cântico da criação", inspirada em melodia popular da Mauritânia e texto adaptado de: Cântico dos três jovens (Daniel, 3:57-ss):
«Os três jovens, então, não tiveram senão uma só voz para louvar, glorificar e bendizer a Deus, na fornalha, com este cântico:
Todas as obras do Senhor,
louvai o Senhor
E vós, anjos do Senhor,
louvai o Senhor
E vós, seres humanos,
louvai o Senhor
E vós, filhos de Israel
louvai o Senhor
E vós, sacerdotes do Senhor,
louvai o Senhor
E vós, servos do Senhor,
louvai o Senhor
E vós, espíritos e almas dos justos,
louvai o Senhor
E vós, santos e humildes de coração,
louvai o Senhor
E vós, todas as criaturas do universo,
louvai o Senhor.»
Monks of Keur Moussa Abbey - Tya Mom Ndam Gu Rey
Pelo Luís, pelo João, por nós
Estranha coisa esta de a morte nos trazer a vida de volta quando dela pouco quisemos saber no tempo em que com ela nos cruzámos. Foi assim, para muitos de nós, com o Luís. Foi quando ele morreu, subitamente, que procurámos resgatar o melhor da sua vida para entregar ao Miguel e à Ana como a única herança que valia a pena herdar. Na dor da Nani, a Comunidade aprendeu a ver a presença ausente da vida do Luís. Acho que nunca nos resignámos a esse lugar vazio. Nestes quatro anos, acompanhámos a Nani não só por amizade e por emoção mas também por estarmos com ela irmanad@s na perplexidade perante o mistério da perda. Hoje vimos aqui rezar para que esta pergunta que está connosco há quatro anos não deixe de nos desassossegar. E para que a possamos refazer, a olhar para a esperança, em conjunto com a Nani, o Miguel e a Ana, a tempo inteiro.
Foi também a morte do João Mesquita que trouxe de volta a sua vida, esta semana, para @s seus/suas muit@s amig@s. O João teve uma vida vertical e limpa, feita de cumplicidades muito densas. Foi uma vida muito difícil, por ser exigente de princípios e intransigente de recusas. Esta semana. @s seus/suas muit@s amig@s olharam para trás, lá para onde o João esteve. E sentiram tod@s esse mistério de uma vida que marca vidas a tomar corpo. O João não acreditava em Deus. Mas eu acho que ele se limitaria a cofiar o bigode e a acender mais um cigarro e, com calma e uma grande bonomia, escutaria a oração que eu hoje aqui faço para dar graças a Deus pelo seu testemunho de vida e para lhe pedir carinho e alento para a Clara e a Joaninha.
No final, o Zé Carlos Pina partilhou connosco um cântico retirado do disco Keur Moussa: Sacred Chant & African Rhythms from Senegal*, interpretado pelos Monks of Keur Moussa Abbey (Senegal). A música é o "Cântico da criação", inspirada em melodia popular da Mauritânia e texto adaptado de: Cântico dos três jovens (Daniel, 3:57-ss):
«Os três jovens, então, não tiveram senão uma só voz para louvar, glorificar e bendizer a Deus, na fornalha, com este cântico:
Todas as obras do Senhor,
louvai o Senhor
E vós, anjos do Senhor,
louvai o Senhor
E vós, seres humanos,
louvai o Senhor
E vós, filhos de Israel
louvai o Senhor
E vós, sacerdotes do Senhor,
louvai o Senhor
E vós, servos do Senhor,
louvai o Senhor
E vós, espíritos e almas dos justos,
louvai o Senhor
E vós, santos e humildes de coração,
louvai o Senhor
E vós, todas as criaturas do universo,
louvai o Senhor.»
Monks of Keur Moussa Abbey - Tya Mom Ndam Gu Rey
domingo, março 8
Confiança
É a palavra-chave de hoje.
Abraão não terá entendido o pedido do Senhor, mas confiou! E quando tudo parecia perder-se, ir esvair-se, o Senhor respondeu à confiança de Abraão com a Vida!
Aos discípulos parecia que era muito melhor permanecer no cimo do Monte e por isso queriam montar tendas; mas confiaram no Senhor Jesus e nada contaram até que o Senhor ressuscitasse dos mortos!
Confiança é a palavra que sustenta a Comunidade de Taizé!
E foi com um dos grupos de Coimbra ligado àquela Comunidade (o de São José) que hoje aprendemos a rezar: com a música, bela, que preenche o silêncio; e com os momentos de silêncio interpelador, profundo, pacificador...
Aqui fica um bocado do que eles partilharam connosco (todos os temas foram retirados de CD's editados pela Comunidade de Taizé).
O Cântico de Entrada foi, originalmente, escrito para o Encontro Internacional de Lisboa, em português.
Taizé - Cantarei ao Senhor
Momento do Perdão.
Taizé - Kyrie eleison 19
No final da Celebração da Palavra, cantámos:
Taizé - Jesus le Christ
Já à Comunhão:
Taizé - Behüte Mich, Gott (Tu és o meu Deus)
No final, ainda rezámos:
Taizé - Bendizei o Senhor (Bénissez le Seigneur)
Abraão não terá entendido o pedido do Senhor, mas confiou! E quando tudo parecia perder-se, ir esvair-se, o Senhor respondeu à confiança de Abraão com a Vida!
Aos discípulos parecia que era muito melhor permanecer no cimo do Monte e por isso queriam montar tendas; mas confiaram no Senhor Jesus e nada contaram até que o Senhor ressuscitasse dos mortos!
Confiança é a palavra que sustenta a Comunidade de Taizé!
E foi com um dos grupos de Coimbra ligado àquela Comunidade (o de São José) que hoje aprendemos a rezar: com a música, bela, que preenche o silêncio; e com os momentos de silêncio interpelador, profundo, pacificador...
Aqui fica um bocado do que eles partilharam connosco (todos os temas foram retirados de CD's editados pela Comunidade de Taizé).
O Cântico de Entrada foi, originalmente, escrito para o Encontro Internacional de Lisboa, em português.
Taizé - Cantarei ao Senhor
Momento do Perdão.
Taizé - Kyrie eleison 19
No final da Celebração da Palavra, cantámos:
Taizé - Jesus le Christ
Já à Comunhão:
Taizé - Behüte Mich, Gott (Tu és o meu Deus)
No final, ainda rezámos:
Taizé - Bendizei o Senhor (Bénissez le Seigneur)
quarta-feira, fevereiro 25
"Igreja deve dar à mulher protagonismo que até agora lhe negou"
No Público de dia 23 de Fevereiro, em entrevista de António Marujo, o biblista, teólogo e antropólogo Carlos Gil Arbiol fala sobre as primeiras comunidades cristãs e São Paulo. Julgo que nos pode ajudar a reflectir sobre algumas das questões que, nos últimos domingos, nos têm interpelado. Podemos lê-la aqui.
Como reconhecer Deus?
"Se Deus lhe aparecesse, dizendo 'aqui estou, sou eu o Deus', como o reconheceria?"
Esta pergunta guia a reflexão de Anselmo Borges no Diário de Notícias do sábado passado (21 de Fevereiro); o Zé, mais uma vez, quis partilhá-lo connosco. Aqui fica:
«Há relativamente pouco tempo, coloquei esta pergunta a um grupo de crentes: "Se Deus lhe aparecesse, dizendo 'aqui estou, sou eu o Deus', como o reconheceria?"
As respostas, no meio de imensa perplexidade, foram muito interessantes. Que Deus não pode aparecer directamente. Que ninguém, como diz a Bíblia, pode ver Deus. Que Deus é inobjectivável. Que se manifesta indirectamente: nas pessoas, nos acontecimentos, no esplendor da beleza - aqui, recordei a exclamação de uma sobrinha minha com 11 anos, nos Alpes, numa tarde irradiante de Sol sobre a neve e as montanhas todas à volta: "Parece Deus!" Que, para os cristãos, Jesus é a revelação de Deus. Que a experiência de Deus se dá nas experiências-cume de plenitude. Que lhe pediriam um milagre claro, que se visse e o credenciasse. Ele devia manifestar o seu poder.
Quando se fala de Deus, a questão nuclear é saber de que Deus é que se fala. Que se quer dizer quando se diz Deus?
O mais comum é associar Deus ao poder. Deus deve ser, antes de mais, a omnipotência. Deus deve ser infinitamente bom e poderoso, mas sobretudo poderoso. No entanto, a mística Simone Weil, cujo centenário do nascimento se celebra este ano, preveniu: "A Verdade essencial é que Deus é o Bem. Ele só é a omnipotência por acréscimo." Por isso, "é falsa toda a concepção de Deus incompatível com um movimento de caridade pura". Afinal, a revelação de Cristo é essa: Deus é puro amor. O escândalo: "Eu não vim para ser servido, mas para servir."
Não se nega a omnipotência divina. O Poder de Deus, porém, não é Dominação e Espectáculo, mas Força infinita criadora. O Deus de Jesus é o Deus- amor, o Deus-origem-infinita-pessoal-criadora.
A modernidade, pela secularização, quis herdar a omnipotência divina, postergando a bondade. A crise que está aí hoje visível no universo económico-financeiro é mais funda, pois é uma crise de civilização, cuja raiz é esta herança religiosa.
Neste contexto, referindo-se à Igreja, o teólogo X. Pikaza recria de modo alegórico o passo evangélico da cura da sogra de Pedro. Na alegoria, a sogra de Pedro é a Cúria Romana. Jesus chega e cura-a. E depois, alegoricamente?
A Cúria (sogra), que significa casa, corte do Kyrios ou Senhor, estava doente. A casa de Pedro é o Vaticano, um Estado, e quem manda é a Cúria, como ainda recentemente se mostrou no caso dos lefebreveanos. Não protege o Papa, mas impõe-se a ele. Ela "sofre de inércia, de poder".
Jesus cura a Cúria para que, como a sogra de Pedro, se ponha a servir os outros. Que consequências teria a cura da Cúria Romana, que funciona há dez séculos enquanto os Pedros (Papas) vão mudando?
Como Jesus, que, segundo o Evangelho, cura as pessoas diante da casa de Pedro, a Cúria curada veria gente que viria para curar-se. Sobretudo gente mais pobre e perdida (os "endemoninhados", os doentes). Agora também lá vão muitos, mas "vão curar-se ou em busca de prebendas?"
Ainda segundo o Evangelho, Jesus saiu de noite, para rezar e ir ao encontro das pessoas também noutros lugares. Na alegoria, Jesus parte porque não quer ficar fechado na casa de Pedro. Jesus não tem "Cúria". Também Pedro e os funcionários da Cúria têm de sair da sua casa, da Cúria, para ir à procura de Jesus, conhecer o mundo e cuidar dele.
A Igreja está em crise e precisa de conversão. Neste sentido, há 15 dias, a propósito da "falta de vocações", o director do DN, num texto subordinado ao título "Os erros da Igreja", exemplificados nos escândalos dos padres pedófilos, a intransigência quanto aos métodos de planeamento familiar, "declarações absolutamente estúpidas" como as do bispo Williamson a negar o Holocausto, alguns investimentos dúbios no plano dos negócios, escrevia que o resultado é que "a religião vai desconfiando dos seus missionários e o ambiente não aconselha a 'vocação'".
E João Marcelino concluía: "Um dia pagaremos bem caro a crescente desagregação desse factor de união ocidental, bem patente sobretudo na Igreja Católica mas que também afecta todo os ramos do cristianismo."
Esta pergunta guia a reflexão de Anselmo Borges no Diário de Notícias do sábado passado (21 de Fevereiro); o Zé, mais uma vez, quis partilhá-lo connosco. Aqui fica:
«Há relativamente pouco tempo, coloquei esta pergunta a um grupo de crentes: "Se Deus lhe aparecesse, dizendo 'aqui estou, sou eu o Deus', como o reconheceria?"
As respostas, no meio de imensa perplexidade, foram muito interessantes. Que Deus não pode aparecer directamente. Que ninguém, como diz a Bíblia, pode ver Deus. Que Deus é inobjectivável. Que se manifesta indirectamente: nas pessoas, nos acontecimentos, no esplendor da beleza - aqui, recordei a exclamação de uma sobrinha minha com 11 anos, nos Alpes, numa tarde irradiante de Sol sobre a neve e as montanhas todas à volta: "Parece Deus!" Que, para os cristãos, Jesus é a revelação de Deus. Que a experiência de Deus se dá nas experiências-cume de plenitude. Que lhe pediriam um milagre claro, que se visse e o credenciasse. Ele devia manifestar o seu poder.
Quando se fala de Deus, a questão nuclear é saber de que Deus é que se fala. Que se quer dizer quando se diz Deus?
O mais comum é associar Deus ao poder. Deus deve ser, antes de mais, a omnipotência. Deus deve ser infinitamente bom e poderoso, mas sobretudo poderoso. No entanto, a mística Simone Weil, cujo centenário do nascimento se celebra este ano, preveniu: "A Verdade essencial é que Deus é o Bem. Ele só é a omnipotência por acréscimo." Por isso, "é falsa toda a concepção de Deus incompatível com um movimento de caridade pura". Afinal, a revelação de Cristo é essa: Deus é puro amor. O escândalo: "Eu não vim para ser servido, mas para servir."
Não se nega a omnipotência divina. O Poder de Deus, porém, não é Dominação e Espectáculo, mas Força infinita criadora. O Deus de Jesus é o Deus- amor, o Deus-origem-infinita-pessoal-criadora.
A modernidade, pela secularização, quis herdar a omnipotência divina, postergando a bondade. A crise que está aí hoje visível no universo económico-financeiro é mais funda, pois é uma crise de civilização, cuja raiz é esta herança religiosa.
Neste contexto, referindo-se à Igreja, o teólogo X. Pikaza recria de modo alegórico o passo evangélico da cura da sogra de Pedro. Na alegoria, a sogra de Pedro é a Cúria Romana. Jesus chega e cura-a. E depois, alegoricamente?
A Cúria (sogra), que significa casa, corte do Kyrios ou Senhor, estava doente. A casa de Pedro é o Vaticano, um Estado, e quem manda é a Cúria, como ainda recentemente se mostrou no caso dos lefebreveanos. Não protege o Papa, mas impõe-se a ele. Ela "sofre de inércia, de poder".
Jesus cura a Cúria para que, como a sogra de Pedro, se ponha a servir os outros. Que consequências teria a cura da Cúria Romana, que funciona há dez séculos enquanto os Pedros (Papas) vão mudando?
Como Jesus, que, segundo o Evangelho, cura as pessoas diante da casa de Pedro, a Cúria curada veria gente que viria para curar-se. Sobretudo gente mais pobre e perdida (os "endemoninhados", os doentes). Agora também lá vão muitos, mas "vão curar-se ou em busca de prebendas?"
Ainda segundo o Evangelho, Jesus saiu de noite, para rezar e ir ao encontro das pessoas também noutros lugares. Na alegoria, Jesus parte porque não quer ficar fechado na casa de Pedro. Jesus não tem "Cúria". Também Pedro e os funcionários da Cúria têm de sair da sua casa, da Cúria, para ir à procura de Jesus, conhecer o mundo e cuidar dele.
A Igreja está em crise e precisa de conversão. Neste sentido, há 15 dias, a propósito da "falta de vocações", o director do DN, num texto subordinado ao título "Os erros da Igreja", exemplificados nos escândalos dos padres pedófilos, a intransigência quanto aos métodos de planeamento familiar, "declarações absolutamente estúpidas" como as do bispo Williamson a negar o Holocausto, alguns investimentos dúbios no plano dos negócios, escrevia que o resultado é que "a religião vai desconfiando dos seus missionários e o ambiente não aconselha a 'vocação'".
E João Marcelino concluía: "Um dia pagaremos bem caro a crescente desagregação desse factor de união ocidental, bem patente sobretudo na Igreja Católica mas que também afecta todo os ramos do cristianismo."
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Padre e professor de Filosofia
domingo, fevereiro 15
"Se quiseres podes curar-me!"
«"Se quiseres, podes curar-me". Jesus, compadecido, estendeu a mão, tocou-lhe e disse: "Quero: fica limpo".» Este contraponto que Jesus oferece em relação ao Antigo Testamento («O leproso com a doença declarada usará vestuário andrajoso e o cabelo em desalinho, cobrirá o rosto até ao bigode e gritará: ‘Impuro, impuro!’. Todo o tempo que lhe durar a lepra, deve considerar-se impuro e, sendo impuro, deverá morar à parte, fora do acampamento», Livro do Levítico) levou o José Vieira a trazer-nos esta reflexão sobre como
«Romper com o fatalismo
Incapazes de explicar os fenómenos e as suas causas os humanos primitivos encontraram no Universo dos Deuses e dos heróis míticos a resposta para as suas angústias e problemas . Incapazes de encontrar uma causalidade natural explicativa da vida, socorreram-se duma causalidade sobrenatural.
Não deixa de ser significativo que os gregos só tenham conseguido criar a democracia a partir do momento que descobriram que a ordem social não era ditada pelos deuses, mas construída pelos homens; quando vislumbraram a possibilidade de construir uma sociedade cujo destino não estivesse fora dela, mas nas mãos de todos os que dela participavam.
Só quando uma dada sociedade, como foi o caso da sociedade grega, começa a entender que é ela própria que constrói a essa ordem social, essa ordem desejada, é que ela tem condições para superar o fatalismo e o determinismo rígido.
O fatalismo pode ser definido como uma doutrina segundo a qual tudo o que acontece é inevitável. Em tal contexto, deliberação e acção não farão então muito sentido, pois o futuro já está previamente decidido. Para o fatalista o futuro é como o passado: um facto consumado e inalterável. Podemos ilustrar esta mentalidade com um exemplo. Não adianta chamar o médico no caso de uma pessoa ficar doente, pois se ela o chamar e já estiver determinado que ela não irá recuperar a saúde, ela não se restabelecerá; e se ela não chamar e já estiver determinado que ela irá recobrar a saúde, ela recuperará seguramente..
Ora, todos nós sabemos que é fácil refutar o fatalismo. Todos conhecemos casos de pessoas doentes que procuram o médico e sabemos que elas têm muito mais possibilidades de obterem melhoras do que quando não o fazem. Sabemos então, pela nossa experiência, que as nossas decisões, deliberações ou acções podem mudar efectivamente o futuro.
O fatalismo é geralmente associado às teorias filosóficas deterministas segundo as quais o futuro já se encontra previamente determinado pelo entrelaçado de cadeias causais geradas pelos estados de coisas actuais e pelas leis do universo. Mas tais conclusões são erradas e qualquer de nós tem relutância em aceitar ser apenas uma marionette ou um brinquedo nas mãos do destino ou dos deuses.
Creio que esta mentalidade fatalista ou anti-fatalista tem deixado na história humana marcas muito significativas. Porque o destino está traçado e não adiante lutar contra ele tivemos momentos históricos de grande estagnação. Por outro lado, foi a crença de que os homens e mulheres são fazedores do seu destino que nos brindou certamente com algumas das mais bonitas páginas da história que nos mostram toda a nossa capacidade criativa, lutadora, verdadeiramente emancipadora.
No nosso tempo, em muitas situações , o fatalismo e a falta de esperança, são estados de espírito verdadeiramente irónicos e cínicos. É por causa desse fatalismo e dessa falta de esperança que algumas vezes podemos ser levados a aceitar viver ou conviver com situações que condenamos.
Creio que o único antídoto possível é o apelo a um renovado compromisso, e a novos comportamentos tradutores dos mais fundos valores éticos das pessoas. A única saída é então mostrar e conseguir que as pessoas vejam que existem situações com as quais não podemos conviver, ou em relação às quais não devemos sequer ser tolerantes. Claro que todos sabemos que é mais fácil ficar na tranquilidade do nosso cantinho. Mas está na hora de rompermos com o fatalismo trivial do não há nada a fazer porque tem de ser assim porque sempre foi assim. A História ensina-nos precisamente que só é digno de figurar nela quem foi capaz de acreditar que a condição humana é reinvenção permanente e que homens e mulheres nascem criadores. E não foi esse afinal o exemplo do Mestre?»
«Romper com o fatalismo
Incapazes de explicar os fenómenos e as suas causas os humanos primitivos encontraram no Universo dos Deuses e dos heróis míticos a resposta para as suas angústias e problemas . Incapazes de encontrar uma causalidade natural explicativa da vida, socorreram-se duma causalidade sobrenatural.
Não deixa de ser significativo que os gregos só tenham conseguido criar a democracia a partir do momento que descobriram que a ordem social não era ditada pelos deuses, mas construída pelos homens; quando vislumbraram a possibilidade de construir uma sociedade cujo destino não estivesse fora dela, mas nas mãos de todos os que dela participavam.
Só quando uma dada sociedade, como foi o caso da sociedade grega, começa a entender que é ela própria que constrói a essa ordem social, essa ordem desejada, é que ela tem condições para superar o fatalismo e o determinismo rígido.
O fatalismo pode ser definido como uma doutrina segundo a qual tudo o que acontece é inevitável. Em tal contexto, deliberação e acção não farão então muito sentido, pois o futuro já está previamente decidido. Para o fatalista o futuro é como o passado: um facto consumado e inalterável. Podemos ilustrar esta mentalidade com um exemplo. Não adianta chamar o médico no caso de uma pessoa ficar doente, pois se ela o chamar e já estiver determinado que ela não irá recuperar a saúde, ela não se restabelecerá; e se ela não chamar e já estiver determinado que ela irá recobrar a saúde, ela recuperará seguramente..
Ora, todos nós sabemos que é fácil refutar o fatalismo. Todos conhecemos casos de pessoas doentes que procuram o médico e sabemos que elas têm muito mais possibilidades de obterem melhoras do que quando não o fazem. Sabemos então, pela nossa experiência, que as nossas decisões, deliberações ou acções podem mudar efectivamente o futuro.
O fatalismo é geralmente associado às teorias filosóficas deterministas segundo as quais o futuro já se encontra previamente determinado pelo entrelaçado de cadeias causais geradas pelos estados de coisas actuais e pelas leis do universo. Mas tais conclusões são erradas e qualquer de nós tem relutância em aceitar ser apenas uma marionette ou um brinquedo nas mãos do destino ou dos deuses.
Creio que esta mentalidade fatalista ou anti-fatalista tem deixado na história humana marcas muito significativas. Porque o destino está traçado e não adiante lutar contra ele tivemos momentos históricos de grande estagnação. Por outro lado, foi a crença de que os homens e mulheres são fazedores do seu destino que nos brindou certamente com algumas das mais bonitas páginas da história que nos mostram toda a nossa capacidade criativa, lutadora, verdadeiramente emancipadora.
No nosso tempo, em muitas situações , o fatalismo e a falta de esperança, são estados de espírito verdadeiramente irónicos e cínicos. É por causa desse fatalismo e dessa falta de esperança que algumas vezes podemos ser levados a aceitar viver ou conviver com situações que condenamos.
Creio que o único antídoto possível é o apelo a um renovado compromisso, e a novos comportamentos tradutores dos mais fundos valores éticos das pessoas. A única saída é então mostrar e conseguir que as pessoas vejam que existem situações com as quais não podemos conviver, ou em relação às quais não devemos sequer ser tolerantes. Claro que todos sabemos que é mais fácil ficar na tranquilidade do nosso cantinho. Mas está na hora de rompermos com o fatalismo trivial do não há nada a fazer porque tem de ser assim porque sempre foi assim. A História ensina-nos precisamente que só é digno de figurar nela quem foi capaz de acreditar que a condição humana é reinvenção permanente e que homens e mulheres nascem criadores. E não foi esse afinal o exemplo do Mestre?»
José Vieira Lourenço
segunda-feira, fevereiro 9
D. Hélder Câmara: quando o deserto é fértil
Roubei este título e o texto que se segue (com uma ligeiríssima alteração no primeiro parágrafo) ao António Marujo, que o publicou no blog onde colabora:
«Dom Hélder nasceu há 100 anos, completados este sábado – e morreu em 1999, fará em Agosto 10 anos. Na TSF, está um registo do espectáculo da Missa dos Quilombos, feito em 1993 e reproduzido de novo este sábado, onde Dom Hélder faz a invocação a Maria. Quem quiser ver imagens do espectáculo, pode ir já aqui abaixo. A seguir, em jeito de homenagem e memória, fica o texto publicado no Janus 2007.
O pai – o de sangue – era jornalista, empregado de comércio. A mãe era professora primária. Décimo primeiro de treze filhos (só oito sobreviveram), Hélder Câmara ainda terá ouvido o pai, mação, perguntar-lhe: “Meu filho, você sabe o que é ser padre? Padre e egoísmo nunca podem andar juntos. O padre tem que se gastar, se deixar devorar.” Ordenado em 1931, em Fortaleza, seria nomeado bispo auxiliar do Rio de Janeiro em 1952, aos 43 anos de idade. Doze anos depois, em Março de 1964, foi transferido para a sé de Olinda e Recife, onde esteve até resignar, em 1985. Morreu com 90 anos.
Nos primeiros anos de sacerdócio ainda adopta ideias integralistas. Mas cedo evolui. No Rio de Janeiro, cria a Cruzada de São Sebastião e o Banco da Providência, para apoio a habitantes das favelas e a famílias pobres. Na mesma altura, é um dos impulsionadores da colegialidade e da colaboração episcopal, na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (onde foi o primeiro secretário-geral, entre 1952 e 1964) – e no Conselho Episcopal Latino-Americano.
Quando é nomeado para arcebispo de Olinda e Recife, o Brasil já vive em plena “ditadura dos coronéis”. Alarga a sua acção à defesa dos direitos humanos e da liberdade política, ao mesmo tempo que contesta a grande concentração da riqueza brasileira (e mundial) nas mãos de poucas famílias. Um dos seus últimos actos públicos seria mesmo o lançamento, com a Fundação Joaquim Nabuco, da campanha Ano 2000 Sem Miséria. A fome, a miséria e a guerra eram os seus grandes inimigos: seria uma vergonha o mundo chegar ao ano 2000 com milhões a viver presos dessas realidades.
Eram essas atitudes e opiniões que o catalogavam, em muitos meios, como o “bispo vermelho” ou “comunista”. O próprio brinca com as acusações e repete a frase antes citada. Nos anos de chumbo do Brasil, sofre retaliações, os militares assassinam-lhe o secretário, fica sem acesso aos meios de comunicação. Obstáculos que ele ultrapassa falando, no estrangeiro, da realidade do Brasil – e do mundo, nunca esquecido. A importância de toda essa actividade – a que se juntam mais de duas dezenas de livros publicados e traduzidos em várias línguas – leva a que lhe sejam atribuídas mais de seiscentas condecorações e títulos honorários, vinte e cinco prémios da paz e dos direitos humanos. Proposto para Nobel da Paz, a ditadura militar conseguiu obstar a que o galardão lhe fosse dado.
Nas suas andanças pelo mundo, faz muitas perguntas: Que fazer perante a miséria do mundo? Como lutar quando 20 por cento da humanidade concentra 80 por cento da riqueza? Como criar alternativas não-violentas quando os países mais poderosos gastam em armamento o que serviria para erradicar do planeta a doença e a fome? E as respostas vinham num sentido: lutar contra a resignação, denunciar injustiças, ser solidário, adoptar um estilo de vida sóbrio e que não afronte quem nada tem.
Um abrigo para refugiados
A coerência da sua vida foi até ao ponto de deixar o palácio episcopal, substituindo-o por uma pequena casa onde todos podiam entrar. Nela se refugiavam perseguidos políticos e pobres. Organizou a Operação Esperança, que permitiu a criação de conselhos de moradores para resolver os problemas das populações ribeirinhas afectadas por problemas de cheias periódicas.
No Concílio Vaticano II (1962-65), a acção de Hélder Câmara, juntamente com outros bispos e cardeais, acaba por ser decisiva na recusa dos esquemas e organização preparados pela Cúria Romana e na adopção de um modelo de debate colegial. Vigoroso adepto da teologia da libertação, acabaria imerecidamente castigado por João Paulo II: ao contrário do que muitas pessoas pediam, nunca foi feito cardeal; pior ainda, o seu sucessor na diocese de Olinda e Recife acabou com todas as vertentes de acção social na formação do clero.
Após o concílio, Dom Hélder envolve-se em três projectos de natureza bem diversa: pede ao padre e compositor suíço Pierre Kaelin que componha um oratório sobre São Francisco de Assis. Nasce a “Sinfonia dos Dois Mundos”, em seis andamentos. No último, “tudo termina na esperança”, descreverá Dom Hélder. “Quanto mais sombria é a noite, mais bela é a aurora que ela carrega no seio.” Depois, encontra-se com o bailarino Maurice Béjart e este cria, a partir das sugestões do bispo, a “Missa para o Tempo Futuro”. Finalmente, na “Missa dos Quilombos”, Milton Nascimento coloca-o a declamar um longo poema à Virgem.
Num dos seus textos sobre a paz, escreve Dom Hélder em Abril de 1980: “Preciso levar aos homens o ramo de oliveira que o Senhor Deus me confiou!/ Por enquanto não há lugar nenhum onde pousar: (…) Voarei a qualquer preço... Enquanto eu não cair de cansaço. (…) voarei, voarei, voarei...” ».
Na nossa Celebração começámos por ser acolhidos pelo cântico de Milton Nascimento
Milton Nascimento - A de O (Estamos chegando)
No momento da partilha, lemos dois textos: o primeiro, escrito por D. Hélder e Abbé Pierre em 18/08/96 (por ocasião dos 65 anos de sacerdócio do Bispo de Olinda e Recife e da inauguração da Comunidade Emaús), construído como um Apelo, é dirigido aos Jovens, aos Políticos e à Igreja, os três destinatários habituais das comunicações de D. Hélder. O segundo, escrito apenas por D. Hélder, é uma pequena oração/desafio. Foram ambos retirados de http://www.agencia.ecclesia.pt/noticia_all.asp?noticiaid=69193&seccaoid=9&tipoid=161 (último acesso em 8/02/09).
«No dia 07 de Fevereiro de 1909 nasceu em Fortaleza-CE aquele que, em 1952, se tornou um dos Bispos de maior destaque e prestígio no Brasil e no mundo, Hélder Pessoa Câmara, que faleceu com 90 anos de vida e 68 de sacerdócio a serviço dos Direitos Humanos, da Justiça e da Paz. Três públicos-alvo de Dom Hélder foram os Jovens, os políticos e a Igreja; por isso, julgamos oportuno publicar este texto escrito em parceria com Abbé Pierre em 18/08/96.
Apelo aos Humanos
"Por motivo dos 65 anos de sacerdócio de um de nós e da inauguração da Comunidade Emaús, reunimo-nos durante uma semana no Recife. Mais uma vez juntos, para dar graças a Deus e para servir aos pobres.
Partilhámos momentos muito fortes. Cansativos, mas enriquecedores no plano pessoal, humano e espiritual.
Considerando a nossa idade e a responsabilidade que temos pela confiança depositada em nós por uma multidão de pobres no mundo, antes de nos separarmos fisicamente, ousamos lançar este apelo a todos os humanos.
AOS JOVENS
Vocês são a esperança do amanhã. O terceiro milénio é vosso. Há ainda muita miséria no mundo. É preciso que vocês trabalhem sem cessar, em favor da partilha e não da competitividade, seja esta a regra das vossas vidas. Sem partilha (partilha dos bens, das riquezas, do trabalho, do tempo livre, do saber, do saber fazer) não haverá justiça nem felicidade para todos. E, sobretudo os mais fracos, os mais pobres, os menos dotados sofrerão mais. Empenhem-se vocês que são jovens! Trabalhem sem cessar! Sejam competentes na vossa profissão... Lavrador ou motorista, advogado ou médico, vocês serão ouvidos somente se forem considerados competentes. Mas não esqueçam a regra de toda paz, de toda justiça, de toda solidariedade: servir e fazer que sejam servidos, primeiro e em todo lugar, os mais pobres...
AOS POLÍTICOS
A mundialização é a realidade de hoje. O mundo tornou-se uma "pequena aldeia global" onde somos condenados a conhecer tudo, onde o que acontece num canto do mundo tem consequências em todo canto. Mas em lugar de facilitar o encontro entre as pessoas por maior justiça para todos, a mundialização, até o momento, tem aumentado a divisão, cria novos conflitos e a miséria instala-se em toda parte, inclusive nos países ricos e industrializados. Ricos sempre mais ricos, pobres sempre mais miseráveis.
Isso não pode continuar. Não é justo! Não é humano!
Ajudem a organizar o mundo de forma diferente. Na partilha e não na competitividade. Na solidariedade, não na busca incessante de interesse de uma minoria de privilegiados.
Lembrem-se: a beleza de uma cidade não está na beleza dos seus teatros, na grandeza dos seus estádios, dos seus jardins, dos seus monumentos, no esplendor da sua catedral... A beleza de uma cidade realiza-se quando todos têm uma casa digna de ser habitada por pessoas humanas, quando há água potável para todos, a saúde garantida para todos, a possibilidade de frequentar a escola para todos, a possibilidade do lazer para todos, para que o desabrochar da dignidade de cada um possa tornar-se uma realidade viva e completa.
Não fiquem fechados nos vossos confortáveis escritórios ou nas mansões das vossas cidades... visitem as pessoas onde elas estão, onde vivem, onde sofrem, nas favelas, nos bairros populares da América Latina, na África e na Ásia.
À IGREJA
O terceiro milénio aproxima-se. A encarnação do Filho de Deus aconteceu há 2000 anos. Há ainda demasiada miséria no mundo, num mundo de riquezas! E, o que é grave e insuportável, é o facto de que a minoria dos privilegiados, os mais ricos, são, pelo menos na sua origem, cristãos.
O que fizemos com a mensagem de Cristo? De que maneira a multidão dos pobres, dos excluídos, dos marginalizados, dos sem-casa, dos sem-terra, dos sem-nada, pode acreditar que o Criador é o Pai que os ama, se nós, que nos dizemos cristãos, que temos mais, continuamos a deixar o prato deles vazio, embora declarando-nos a favor da Paz e do Amor?
Não sejamos somente crentes... Sejamos ACREDITÁVEIS!
Assim o mundo será como uma Hóstia voltada para o Senhor, uma imensa Hóstia de acção de graças a Deus, na felicidade de todos os Humanos. Porque a felicidade dos Homens é a Glória de Deus.
Nós vivemos mais que 80 anos... Ainda há muito que fazer para pôr ordem no mundo. Com as poucas forças que ainda nos restam, continuamos o nosso combate à miséria, em todo lugar onde for possível: que seja junto com todos vocês!"
MISSÃO É PARTIR
"Missão é partir, caminhar, deixar tudo, sair de si, quebrar a crosta do egoísmo que nos fecha no nosso Eu.
É parar de dar volta ao redor de nós mesmos, como se fôssemos o centro do mundo e da vida.
É não se deixar bloquear nos problemas do pequeno mundo a que pertencemos: a humanidade é maior.
Missão é sempre partir, mas não devorar quilómetros.
É sobretudo abrir-se aos outros como irmãos, descobri-los e encontrá-los.
E, se para encontrá-los e amá-los é preciso atravessar os mares e voar lá nos céus, então Missão é partir até os confins do mundo."
D. Hélder Câmara
À Comunhão cantámos
Milton Nascimento - Ofertorio
Como Acção de Graças, rezámos este belíssimo poema de D. Hélder (O Deserto é Fértil, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira S.A., 1976, p. 109)
Que toda palavra
nasça
da ação e da meditação.
Sem ação
ou tendência à ação
ela será apenas teoria
que se juntará
ao excesso de teoria
que está levando os jovens
ao desespero.
Se ela é apenas ação
sem meditação
ela acabará no ativismo
sem fundamento,
sem conteúdo,
sem força...
Presta honras ao Verbo eterno
servindo-te da palavra
de forma
a recriar o mundo.
No final, ouvimos a Invocação a Mariama, poderosa prece rezada no final da Missa dos Quilombos por D. Hélder.
«Dom Hélder nasceu há 100 anos, completados este sábado – e morreu em 1999, fará em Agosto 10 anos. Na TSF, está um registo do espectáculo da Missa dos Quilombos, feito em 1993 e reproduzido de novo este sábado, onde Dom Hélder faz a invocação a Maria. Quem quiser ver imagens do espectáculo, pode ir já aqui abaixo. A seguir, em jeito de homenagem e memória, fica o texto publicado no Janus 2007.
A sua utopia de um mundo mais justo e solidário ficou expressa no título de um dos seus livros: O deserto é fértil. Hélder Pessoa Câmara (Fortaleza, 7 de Fevereiro de 1909 – Recife, 27 de Agosto de 1999) foi a figura mais carismática do episcopado brasileiro do século XX. Arcebispo do Recife, a sua opção em favor dos mais pobres e do desenvolvimento fez florir muitos desertos em todo o mundo.
Corpo franzino e frágil, a sotaina de cor creme agigantava-se com o seu gesto largo abarcando o horizonte, discurso feito de braços dançantes, mãos abertas, olhos brilhantes. Quem alguma vez o escutou ao vivo pôde sentir a profunda convicção de cada palavra. Citava as estatísticas do subdesenvolvimento, colocava nomes e rostos concretos em histórias de miséria, apelava a não desanimar perante nenhuma dificuldade, bradava pela certeza de um mundo com mais esperança para todos.
Ia buscar à fé cristã os fundamentos para esse agir: “Quando dou comida aos pobres chamam-me de santo. Quando pergunto por que eles são pobres chamam-me de comunista.” “Sempre que procura defender os sem-vez e sem-voz, a Igreja é acusada de fazer política.” Uma das suas histórias conhecidas é de um telefonema para uma esquadra de polícia, quando um homem estava sendo espancado – vivia-se o tempo da ditadura militar no Brasil: “Aqui é Dom Hélder. Está preso aí o meu irmão.” O agente espanta-se: “Seu irmão, eminência?” Resposta pronta: “É, apesar da diferença de nomes, somos filhos do mesmo Pai.”
“O padre tem que se gastar”Corpo franzino e frágil, a sotaina de cor creme agigantava-se com o seu gesto largo abarcando o horizonte, discurso feito de braços dançantes, mãos abertas, olhos brilhantes. Quem alguma vez o escutou ao vivo pôde sentir a profunda convicção de cada palavra. Citava as estatísticas do subdesenvolvimento, colocava nomes e rostos concretos em histórias de miséria, apelava a não desanimar perante nenhuma dificuldade, bradava pela certeza de um mundo com mais esperança para todos.
Ia buscar à fé cristã os fundamentos para esse agir: “Quando dou comida aos pobres chamam-me de santo. Quando pergunto por que eles são pobres chamam-me de comunista.” “Sempre que procura defender os sem-vez e sem-voz, a Igreja é acusada de fazer política.” Uma das suas histórias conhecidas é de um telefonema para uma esquadra de polícia, quando um homem estava sendo espancado – vivia-se o tempo da ditadura militar no Brasil: “Aqui é Dom Hélder. Está preso aí o meu irmão.” O agente espanta-se: “Seu irmão, eminência?” Resposta pronta: “É, apesar da diferença de nomes, somos filhos do mesmo Pai.”
O pai – o de sangue – era jornalista, empregado de comércio. A mãe era professora primária. Décimo primeiro de treze filhos (só oito sobreviveram), Hélder Câmara ainda terá ouvido o pai, mação, perguntar-lhe: “Meu filho, você sabe o que é ser padre? Padre e egoísmo nunca podem andar juntos. O padre tem que se gastar, se deixar devorar.” Ordenado em 1931, em Fortaleza, seria nomeado bispo auxiliar do Rio de Janeiro em 1952, aos 43 anos de idade. Doze anos depois, em Março de 1964, foi transferido para a sé de Olinda e Recife, onde esteve até resignar, em 1985. Morreu com 90 anos.
Nos primeiros anos de sacerdócio ainda adopta ideias integralistas. Mas cedo evolui. No Rio de Janeiro, cria a Cruzada de São Sebastião e o Banco da Providência, para apoio a habitantes das favelas e a famílias pobres. Na mesma altura, é um dos impulsionadores da colegialidade e da colaboração episcopal, na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (onde foi o primeiro secretário-geral, entre 1952 e 1964) – e no Conselho Episcopal Latino-Americano.
Quando é nomeado para arcebispo de Olinda e Recife, o Brasil já vive em plena “ditadura dos coronéis”. Alarga a sua acção à defesa dos direitos humanos e da liberdade política, ao mesmo tempo que contesta a grande concentração da riqueza brasileira (e mundial) nas mãos de poucas famílias. Um dos seus últimos actos públicos seria mesmo o lançamento, com a Fundação Joaquim Nabuco, da campanha Ano 2000 Sem Miséria. A fome, a miséria e a guerra eram os seus grandes inimigos: seria uma vergonha o mundo chegar ao ano 2000 com milhões a viver presos dessas realidades.
Eram essas atitudes e opiniões que o catalogavam, em muitos meios, como o “bispo vermelho” ou “comunista”. O próprio brinca com as acusações e repete a frase antes citada. Nos anos de chumbo do Brasil, sofre retaliações, os militares assassinam-lhe o secretário, fica sem acesso aos meios de comunicação. Obstáculos que ele ultrapassa falando, no estrangeiro, da realidade do Brasil – e do mundo, nunca esquecido. A importância de toda essa actividade – a que se juntam mais de duas dezenas de livros publicados e traduzidos em várias línguas – leva a que lhe sejam atribuídas mais de seiscentas condecorações e títulos honorários, vinte e cinco prémios da paz e dos direitos humanos. Proposto para Nobel da Paz, a ditadura militar conseguiu obstar a que o galardão lhe fosse dado.
Nas suas andanças pelo mundo, faz muitas perguntas: Que fazer perante a miséria do mundo? Como lutar quando 20 por cento da humanidade concentra 80 por cento da riqueza? Como criar alternativas não-violentas quando os países mais poderosos gastam em armamento o que serviria para erradicar do planeta a doença e a fome? E as respostas vinham num sentido: lutar contra a resignação, denunciar injustiças, ser solidário, adoptar um estilo de vida sóbrio e que não afronte quem nada tem.
Um abrigo para refugiados
A coerência da sua vida foi até ao ponto de deixar o palácio episcopal, substituindo-o por uma pequena casa onde todos podiam entrar. Nela se refugiavam perseguidos políticos e pobres. Organizou a Operação Esperança, que permitiu a criação de conselhos de moradores para resolver os problemas das populações ribeirinhas afectadas por problemas de cheias periódicas.
No Concílio Vaticano II (1962-65), a acção de Hélder Câmara, juntamente com outros bispos e cardeais, acaba por ser decisiva na recusa dos esquemas e organização preparados pela Cúria Romana e na adopção de um modelo de debate colegial. Vigoroso adepto da teologia da libertação, acabaria imerecidamente castigado por João Paulo II: ao contrário do que muitas pessoas pediam, nunca foi feito cardeal; pior ainda, o seu sucessor na diocese de Olinda e Recife acabou com todas as vertentes de acção social na formação do clero.
Após o concílio, Dom Hélder envolve-se em três projectos de natureza bem diversa: pede ao padre e compositor suíço Pierre Kaelin que componha um oratório sobre São Francisco de Assis. Nasce a “Sinfonia dos Dois Mundos”, em seis andamentos. No último, “tudo termina na esperança”, descreverá Dom Hélder. “Quanto mais sombria é a noite, mais bela é a aurora que ela carrega no seio.” Depois, encontra-se com o bailarino Maurice Béjart e este cria, a partir das sugestões do bispo, a “Missa para o Tempo Futuro”. Finalmente, na “Missa dos Quilombos”, Milton Nascimento coloca-o a declamar um longo poema à Virgem.
Num dos seus textos sobre a paz, escreve Dom Hélder em Abril de 1980: “Preciso levar aos homens o ramo de oliveira que o Senhor Deus me confiou!/ Por enquanto não há lugar nenhum onde pousar: (…) Voarei a qualquer preço... Enquanto eu não cair de cansaço. (…) voarei, voarei, voarei...” ».
Na nossa Celebração começámos por ser acolhidos pelo cântico de Milton Nascimento
Milton Nascimento - A de O (Estamos chegando)
No momento da partilha, lemos dois textos: o primeiro, escrito por D. Hélder e Abbé Pierre em 18/08/96 (por ocasião dos 65 anos de sacerdócio do Bispo de Olinda e Recife e da inauguração da Comunidade Emaús), construído como um Apelo, é dirigido aos Jovens, aos Políticos e à Igreja, os três destinatários habituais das comunicações de D. Hélder. O segundo, escrito apenas por D. Hélder, é uma pequena oração/desafio. Foram ambos retirados de http://www.agencia.ecclesia.pt/noticia_all.asp?noticiaid=69193&seccaoid=9&tipoid=161 (último acesso em 8/02/09).
«No dia 07 de Fevereiro de 1909 nasceu em Fortaleza-CE aquele que, em 1952, se tornou um dos Bispos de maior destaque e prestígio no Brasil e no mundo, Hélder Pessoa Câmara, que faleceu com 90 anos de vida e 68 de sacerdócio a serviço dos Direitos Humanos, da Justiça e da Paz. Três públicos-alvo de Dom Hélder foram os Jovens, os políticos e a Igreja; por isso, julgamos oportuno publicar este texto escrito em parceria com Abbé Pierre em 18/08/96.
Apelo aos Humanos
"Por motivo dos 65 anos de sacerdócio de um de nós e da inauguração da Comunidade Emaús, reunimo-nos durante uma semana no Recife. Mais uma vez juntos, para dar graças a Deus e para servir aos pobres.
Partilhámos momentos muito fortes. Cansativos, mas enriquecedores no plano pessoal, humano e espiritual.
Considerando a nossa idade e a responsabilidade que temos pela confiança depositada em nós por uma multidão de pobres no mundo, antes de nos separarmos fisicamente, ousamos lançar este apelo a todos os humanos.
AOS JOVENS
Vocês são a esperança do amanhã. O terceiro milénio é vosso. Há ainda muita miséria no mundo. É preciso que vocês trabalhem sem cessar, em favor da partilha e não da competitividade, seja esta a regra das vossas vidas. Sem partilha (partilha dos bens, das riquezas, do trabalho, do tempo livre, do saber, do saber fazer) não haverá justiça nem felicidade para todos. E, sobretudo os mais fracos, os mais pobres, os menos dotados sofrerão mais. Empenhem-se vocês que são jovens! Trabalhem sem cessar! Sejam competentes na vossa profissão... Lavrador ou motorista, advogado ou médico, vocês serão ouvidos somente se forem considerados competentes. Mas não esqueçam a regra de toda paz, de toda justiça, de toda solidariedade: servir e fazer que sejam servidos, primeiro e em todo lugar, os mais pobres...
AOS POLÍTICOS
A mundialização é a realidade de hoje. O mundo tornou-se uma "pequena aldeia global" onde somos condenados a conhecer tudo, onde o que acontece num canto do mundo tem consequências em todo canto. Mas em lugar de facilitar o encontro entre as pessoas por maior justiça para todos, a mundialização, até o momento, tem aumentado a divisão, cria novos conflitos e a miséria instala-se em toda parte, inclusive nos países ricos e industrializados. Ricos sempre mais ricos, pobres sempre mais miseráveis.
Isso não pode continuar. Não é justo! Não é humano!
Ajudem a organizar o mundo de forma diferente. Na partilha e não na competitividade. Na solidariedade, não na busca incessante de interesse de uma minoria de privilegiados.
Lembrem-se: a beleza de uma cidade não está na beleza dos seus teatros, na grandeza dos seus estádios, dos seus jardins, dos seus monumentos, no esplendor da sua catedral... A beleza de uma cidade realiza-se quando todos têm uma casa digna de ser habitada por pessoas humanas, quando há água potável para todos, a saúde garantida para todos, a possibilidade de frequentar a escola para todos, a possibilidade do lazer para todos, para que o desabrochar da dignidade de cada um possa tornar-se uma realidade viva e completa.
Não fiquem fechados nos vossos confortáveis escritórios ou nas mansões das vossas cidades... visitem as pessoas onde elas estão, onde vivem, onde sofrem, nas favelas, nos bairros populares da América Latina, na África e na Ásia.
À IGREJA
O terceiro milénio aproxima-se. A encarnação do Filho de Deus aconteceu há 2000 anos. Há ainda demasiada miséria no mundo, num mundo de riquezas! E, o que é grave e insuportável, é o facto de que a minoria dos privilegiados, os mais ricos, são, pelo menos na sua origem, cristãos.
O que fizemos com a mensagem de Cristo? De que maneira a multidão dos pobres, dos excluídos, dos marginalizados, dos sem-casa, dos sem-terra, dos sem-nada, pode acreditar que o Criador é o Pai que os ama, se nós, que nos dizemos cristãos, que temos mais, continuamos a deixar o prato deles vazio, embora declarando-nos a favor da Paz e do Amor?
Não sejamos somente crentes... Sejamos ACREDITÁVEIS!
Assim o mundo será como uma Hóstia voltada para o Senhor, uma imensa Hóstia de acção de graças a Deus, na felicidade de todos os Humanos. Porque a felicidade dos Homens é a Glória de Deus.
Nós vivemos mais que 80 anos... Ainda há muito que fazer para pôr ordem no mundo. Com as poucas forças que ainda nos restam, continuamos o nosso combate à miséria, em todo lugar onde for possível: que seja junto com todos vocês!"
D. Hélder Câmara, Abbé Pierre (adaptado)
MISSÃO É PARTIR
"Missão é partir, caminhar, deixar tudo, sair de si, quebrar a crosta do egoísmo que nos fecha no nosso Eu.
É parar de dar volta ao redor de nós mesmos, como se fôssemos o centro do mundo e da vida.
É não se deixar bloquear nos problemas do pequeno mundo a que pertencemos: a humanidade é maior.
Missão é sempre partir, mas não devorar quilómetros.
É sobretudo abrir-se aos outros como irmãos, descobri-los e encontrá-los.
E, se para encontrá-los e amá-los é preciso atravessar os mares e voar lá nos céus, então Missão é partir até os confins do mundo."
D. Hélder Câmara
À Comunhão cantámos
Milton Nascimento - Ofertorio
Como Acção de Graças, rezámos este belíssimo poema de D. Hélder (O Deserto é Fértil, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira S.A., 1976, p. 109)
Que toda palavra
nasça
da ação e da meditação.
Sem ação
ou tendência à ação
ela será apenas teoria
que se juntará
ao excesso de teoria
que está levando os jovens
ao desespero.
Se ela é apenas ação
sem meditação
ela acabará no ativismo
sem fundamento,
sem conteúdo,
sem força...
Presta honras ao Verbo eterno
servindo-te da palavra
de forma
a recriar o mundo.
No final, ouvimos a Invocação a Mariama, poderosa prece rezada no final da Missa dos Quilombos por D. Hélder.
domingo, fevereiro 1
as "coisas do Senhor" e as "as coisas do Mundo" – IV Domingo Comum
A segunda leitura da Celebração de hoje levanta-nos questões profundas. O José pediu a três mulheres, casadas, que reflectissem sobre este "dilema", esta [aparente] separação destes "dois mundos". A leitura é esta:
«Leitura da Primeira Epístola do apóstolo S. Paulo aos Coríntios
Irmãos: Não queria que andásseis preocupados. Quem não é casado preocupa-se com as coisas do Senhor, com o modo de agradar ao Senhor. Mas aquele que se casou preocupa-se com as coisas do mundo, com a maneira de agradar à esposa, e encontra-se dividido. Da mesma forma, a mulher solteira e a virgem preocupam-se com os interesses do Senhor, para serem santas de corpo e espírito. Mas a mulher casada preocupa-se com as coisas do mundo, com a forma de agradar ao marido. Digo isto no vosso próprio interesse e não para vos armar uma cilada. Tenho em vista o que mais convém e vos pode unir ao Senhor sem desvios.»
Aqui ficam, agora, as reflexões da Carminho e da Rute (a que mais tarde se juntará a da Kuki):
«1. Se S. Paulo vivesse hoje talvez a sua mensagem fosse diferente.
A valorização da capacidade feminina para a multiplicidade de tarefas simultâneas talvez o levasse a encarar a possibilidade de nelas incluir a dedicação às “coisas do Senhor”, como algo próprio das mulheres...
2. A criatividade, as emoções mas também a luta diária pelo cuidado e pela sobrevivência dos que estão mais próximos não são, em primeira análise, manifestações dessa dedicação às causas mais nobres da Boa Nova de Jesus Cristo?
3. A defesa do celibato como base da exclusividade na dedicação às “coisas do Pai” não faz sentido num mundo cheio de pluralidade de opções, de oferta de caminhos e apelos diversificados. Não será prioritariamente, por certo, a dedicação ao marido (ou à mulher) o contraponto à dedicação às “coisas do Senhor”
4. E há quem faça opções radicais – homens e mulheres – que depois de uma vida cheia no mundo dos negócios, p.ex., deixe tudo para se dedicar a causas humanitárias, ao voluntariado, à clausura, mantendo (ou não) as relações conjugais entretanto desenvolvidas. E não são estas, manifestações reais da dedicação às “coisas do Senhor”? Com ou sem celibato! Para homens e mulheres.
Comunidade João XXIII, 1 Fevereiro de 2009
Contributo para a partilha (Carminho)»
«Comentários suscitados pela 1ª Carta de S. Paulo aos Coríntios – 7, 32-25
Trata-se de um texto sobre a “divisão do trabalho” na comunidade de Corinto, no qual sobressai, em primeiro lugar, o contraste entre dois grupos sociais e as tarefas que lhes estão acometidas:
1. Os celibatários (homens e mulheres) apresentados como aqueles que trabalham para “as coisas do Senhor”, que estão preocupados em “agradar ao Senhor”/com os “interesses do Senhor”; elas, mulheres, com o objectivo específico de “serem santas de corpo e espírito”.
2. Os casados, segundo o autor, “preocupam-se com as coisas do mundo”, “com a forma de agradar à esposa/ao marido”.
Alguns têm visto/verão nesta antinomia de funções o primado do celibato/dos celibatários nas coisas de Deus e uma concepção do casamento como algo voltado exclusivamente para o mundo e, consequentemente, desligado das coisas de Deus.
As questões que importa colocar são, a meu ver, as seguintes:
a) Seria S. Paulo um “macho chauvinista”, como costumava afirmar a minha professora de Cultura Inglesa casada com um irlandês católico?
b) Haverá neste texto, apesar da dureza das palavras, apenas a apologia de uma divisão de tarefas escatologicamente motivada? – S. Paulo acreditava que o “fim dos tempos” estava próximo; era, portanto, urgente passar a mensagem e fazia sentido que o fizessem os que estavam em dedicação exclusiva – os celibatários;
c) Não dizemos nós, Igreja de hoje, que temos de, enquanto Igreja, ter uma face voltada para o mundo? Não encontramos na dimensão social da Igreja o modo de muitos cristãos se identificarem com Cristo e com as interpelações mais radicais que Ele nos fez/faz? Serão os cristãos casados deste texto essa face?
A minha experiência pessoal o que diz é que, depois das coisas do mundo, não resta muito tempo em exclusividade para as coisas de Deus e que, nesta medida, só faz sentido que as coisas de Deus se misturem com a minha vida no mundo[, de tal modo que não haja distinção entre coisas de Deus e coisas do mundo].
Questionável é, parece-me, a distinção maniqueísta entre “coisas de Deus” e “coisas do mundo”, que talvez seja epocalmente compreensível, mas que não deve ser extrapolada para os dias de hoje, nomeadamente quando se trata de separar entre ministérios de primeira e de segunda categoria, sacerdotais e laicais, por exemplo.
Lamentável é que se retire de algumas afirmações de S. Paulo, ainda nos nossos dias, a fundamentação para excluir as mulheres de cargos eclesiais e/ou de lugares de referência no discurso teológico, etc., perpetuando a lógica androcêntrica ainda dominante na sociedade civil, como se pode ler nas palavras da teóloga Elisabeth Schüssler Fiorenza:
As mulheres como Igreja são invisíveis não por acidente nem por nossa negligência, mas pela lei patriarcal que nos exclui dos cargos eclesiásticos por causa do sexo. (Fiorenza 1985/86: 9)
Referências bibliográficas:
Cothenet, Edouard (1983), “S. Paulo no seu Tempo”, Cadernos Bíblicos 13, Lisboa: Difusora Bíblica, pp. 54-55.
Fiorenza, Elisabeth Schüssler (1985/86), “Quebrando o silêncio: a mulher se torna visível”, Elisabeth Schüssler Fiorenza et al., A Mulher — Invisível na Teologia e na Igreja, Petrópolis: Editora Vozes. [reedição em livro da revista Concilium/202 – 1985/6: Teologia Feminista]
Rute Soares»
Junto a estes testemunhos a cópia do texto, citado pela Rute, de Edouard Cothenet, que poderão descarregar.
«Leitura da Primeira Epístola do apóstolo S. Paulo aos Coríntios
Irmãos: Não queria que andásseis preocupados. Quem não é casado preocupa-se com as coisas do Senhor, com o modo de agradar ao Senhor. Mas aquele que se casou preocupa-se com as coisas do mundo, com a maneira de agradar à esposa, e encontra-se dividido. Da mesma forma, a mulher solteira e a virgem preocupam-se com os interesses do Senhor, para serem santas de corpo e espírito. Mas a mulher casada preocupa-se com as coisas do mundo, com a forma de agradar ao marido. Digo isto no vosso próprio interesse e não para vos armar uma cilada. Tenho em vista o que mais convém e vos pode unir ao Senhor sem desvios.»
Aqui ficam, agora, as reflexões da Carminho e da Rute (a que mais tarde se juntará a da Kuki):
«1. Se S. Paulo vivesse hoje talvez a sua mensagem fosse diferente.
A valorização da capacidade feminina para a multiplicidade de tarefas simultâneas talvez o levasse a encarar a possibilidade de nelas incluir a dedicação às “coisas do Senhor”, como algo próprio das mulheres...
2. A criatividade, as emoções mas também a luta diária pelo cuidado e pela sobrevivência dos que estão mais próximos não são, em primeira análise, manifestações dessa dedicação às causas mais nobres da Boa Nova de Jesus Cristo?
3. A defesa do celibato como base da exclusividade na dedicação às “coisas do Pai” não faz sentido num mundo cheio de pluralidade de opções, de oferta de caminhos e apelos diversificados. Não será prioritariamente, por certo, a dedicação ao marido (ou à mulher) o contraponto à dedicação às “coisas do Senhor”
4. E há quem faça opções radicais – homens e mulheres – que depois de uma vida cheia no mundo dos negócios, p.ex., deixe tudo para se dedicar a causas humanitárias, ao voluntariado, à clausura, mantendo (ou não) as relações conjugais entretanto desenvolvidas. E não são estas, manifestações reais da dedicação às “coisas do Senhor”? Com ou sem celibato! Para homens e mulheres.
Comunidade João XXIII, 1 Fevereiro de 2009
Contributo para a partilha (Carminho)»
«Comentários suscitados pela 1ª Carta de S. Paulo aos Coríntios – 7, 32-25
Trata-se de um texto sobre a “divisão do trabalho” na comunidade de Corinto, no qual sobressai, em primeiro lugar, o contraste entre dois grupos sociais e as tarefas que lhes estão acometidas:
1. Os celibatários (homens e mulheres) apresentados como aqueles que trabalham para “as coisas do Senhor”, que estão preocupados em “agradar ao Senhor”/com os “interesses do Senhor”; elas, mulheres, com o objectivo específico de “serem santas de corpo e espírito”.
2. Os casados, segundo o autor, “preocupam-se com as coisas do mundo”, “com a forma de agradar à esposa/ao marido”.
Alguns têm visto/verão nesta antinomia de funções o primado do celibato/dos celibatários nas coisas de Deus e uma concepção do casamento como algo voltado exclusivamente para o mundo e, consequentemente, desligado das coisas de Deus.
As questões que importa colocar são, a meu ver, as seguintes:
a) Seria S. Paulo um “macho chauvinista”, como costumava afirmar a minha professora de Cultura Inglesa casada com um irlandês católico?
b) Haverá neste texto, apesar da dureza das palavras, apenas a apologia de uma divisão de tarefas escatologicamente motivada? – S. Paulo acreditava que o “fim dos tempos” estava próximo; era, portanto, urgente passar a mensagem e fazia sentido que o fizessem os que estavam em dedicação exclusiva – os celibatários;
c) Não dizemos nós, Igreja de hoje, que temos de, enquanto Igreja, ter uma face voltada para o mundo? Não encontramos na dimensão social da Igreja o modo de muitos cristãos se identificarem com Cristo e com as interpelações mais radicais que Ele nos fez/faz? Serão os cristãos casados deste texto essa face?
A minha experiência pessoal o que diz é que, depois das coisas do mundo, não resta muito tempo em exclusividade para as coisas de Deus e que, nesta medida, só faz sentido que as coisas de Deus se misturem com a minha vida no mundo[, de tal modo que não haja distinção entre coisas de Deus e coisas do mundo].
Questionável é, parece-me, a distinção maniqueísta entre “coisas de Deus” e “coisas do mundo”, que talvez seja epocalmente compreensível, mas que não deve ser extrapolada para os dias de hoje, nomeadamente quando se trata de separar entre ministérios de primeira e de segunda categoria, sacerdotais e laicais, por exemplo.
Lamentável é que se retire de algumas afirmações de S. Paulo, ainda nos nossos dias, a fundamentação para excluir as mulheres de cargos eclesiais e/ou de lugares de referência no discurso teológico, etc., perpetuando a lógica androcêntrica ainda dominante na sociedade civil, como se pode ler nas palavras da teóloga Elisabeth Schüssler Fiorenza:
As mulheres como Igreja são invisíveis não por acidente nem por nossa negligência, mas pela lei patriarcal que nos exclui dos cargos eclesiásticos por causa do sexo. (Fiorenza 1985/86: 9)
Referências bibliográficas:
Cothenet, Edouard (1983), “S. Paulo no seu Tempo”, Cadernos Bíblicos 13, Lisboa: Difusora Bíblica, pp. 54-55.
Fiorenza, Elisabeth Schüssler (1985/86), “Quebrando o silêncio: a mulher se torna visível”, Elisabeth Schüssler Fiorenza et al., A Mulher — Invisível na Teologia e na Igreja, Petrópolis: Editora Vozes. [reedição em livro da revista Concilium/202 – 1985/6: Teologia Feminista]
Rute Soares»
Junto a estes testemunhos a cópia do texto, citado pela Rute, de Edouard Cothenet, que poderão descarregar.
domingo, janeiro 25
"Senhor, eu creio mas aumenta a minha fé!"
A convite do José Pureza, a Ana Rita e o João Luís partilharam, hoje, connosco, a experiência de Oração que têm construído na vida deles e de cada um (ou vice-versa). Aqui fica o testemunho deles:
«Senhor, eu creio mas aumenta a minha fé!
Senhor, ensina-me a rezar!
Cara comunidade,
Desinstalaram-nos! E isso é bom.
De que nos vale ter uma experiência/vivência de fé se não a sabemos partilhar? Uma vez ouvimos um amigo dizer que a Bíblia era um conjunto de textos que relatavam as histórias da revelação de Deus aos Homens de várias épocas e sociedades, por isso, formavam um conjunto tão rico que merecia ser partilhado e rezado…
Saibamos nós, na nossa humildade literária, ir escrevendo mais umas páginas para juntar à história da revelação de Deus aos Homens por Ele amados. Porque fazemos parte da Sua criação e sabemos que esta “história nunca pode ser travada”.
Partimos de uma ideia base de que a oração é forma por excelência de estar em relação com Deus. Relação de amizade/amor em que existe um enorme bem-querer, como um Amigo próximo que conhecemos há muitos anos, que ora vai estando, mas que nem sempre está presente de uma forma visível. Contudo sabemos estar sempre disponível para nós e nós para ele. Ainda que não nos dediquemos como gostaríamos, quando algo de muito bom ou de menos bom acontece rapidamente nos lembramos Dele, agradecemos as conquistas ou partilhamos as tristezas.
Ana Rita e João Luís
25 de Janeiro de 2008
Deixo-vos para reflexão uma série de frases que fui escrevendo, porque encontro nelas alguma base para poder partilhar convosco a minha aprendizagem contínua e inacabada de oração. Não tenho por hábito escrever o que rezo, nem dedico horas a fio à oração como fiz nos exercícios espirituais de santo Inácio (donde retirei as frases que seguem).
Rezo no meio da confusão mas é no Silêncio, naquele que in ou felizmente não se encontra todos os dias, que melhor O reconheço. E são esses encontros, aqueles que realmente nos marcam, que me fazem ir rezando, num jeito desajeitado, só ou acompanhado, tal como vós!
Outubro de 2002
“Nem sempre é fácil ouvir-Te… Acho que ainda não conheço bem a tua voz (...) Mas queria e quero ouvir-Te… Procurei o espaço certo, a posição certa – difíceis de encontrar! Do quarto, para a capela (…) só senti frio e desconcentração… sentei-me no chão e nada, deitei-me na cama (e não sei se adormeci)
(…) acordei e cantei:
“Quem aguarda pelo noivo
A chama acesa mantém
Não se assusta com a demora
Pois sabe que o noivo vem”
“Obrigado pela coragem, por saber que é bom viver em Verdade (…) Se tem que ser, que seja agora!.. Se é um “jogo”, então que jogue com o baralho todo!”
Junho de 2008
“Confesso-me ainda com medo de por todas as cartas em cima da mesa… E se Deus me troca as voltas? (…) Onde fica a minha liberdade? Será uma simples escolha entre o bem e o mal? (...) Ou haverá um bem e um bem maior? Está escrito e acredito (…) “o vosso Pai sabe que tendes necessidades. Procurai, antes, o Seu Reino e o resto vos será dado por acréscimo”.
“Senhor gostava de te servir lá, mas sinto ser aqui onde agora mais me chamas a trabalhar… Obrigado pela paz e pela clareza destas linhas. Que o bem em mim por Ti criado, não estagne! Que continue a semear esperança ainda que veja o futuro qb mais incerto! Seja feita a Vossa vontade, porque ela é de amor e de bem!”
“Durante a adoração do Santíssimo foi difícil focar no central – Cristo ali mesmo à frente (…) e duvidava como poderia Ele estar ali. Levantei os olhos e fixei-me no Seu corpo por nós entregue (…) Ainda há muito mais por trabalhar (…) Mesmo com a casa meio desarrumada tenho gosto em Te receber…”
“Perante o túmulo vazio, o que Jesus amava acreditou que Jesus está vivo! E eu em que acredito? Tudo somado o que parece ter acontecido? Jesus aparece às pessoas, e deixa-se tocar (no caso de Tomé). Pedro e Paulo partem para Roma, eles que temeram e duvidaram.”
Dezembro de 2008
“Chegamos à parte difícil… ouvir o querer de Deus! Contudo quero acreditar e sei que a vontade de Deus é o melhor para mim e para a construção do Reino… Mas onde me coloco? Sair de mim!”
“Não busco a um Deus dos aflitos indecisos, seria reduzir a minha relação conTigo… Quero-Te presente na minha vida… nas relações que construo… no modo como as construo, as reparo, as renovo! (…)”
“Sei, mas ao certo não sei se sei… Sinto que cada vez que peco me afasto daquele que é o meu maior projecto de vida… Então é difícil recomeçar, aproximar… aumento a distância aos outros... e a Deus também!
Ajuda-me a perceber porque mesmo sabendo te viro as costas?
Obrigado por todos aqueles que pões no meu caminho e que me ajudam a perceber qual o caminho para Ti… Ensina-me a amar quem tanto me dá!”
“Nestes dias fui experimentando o ruído mais do que o silêncio profundo… Sei que as respostas do “Altíssimo” vêm a nós… Basta a nossa atenção, a capacidade para a acolher.”
“Deixa-me escrever a certeza que trago, para que nos momentos mais difíceis não desespere e compreenda que esta é a forma de ser + Humano. Obrigado Senhor por esta grande oportunidade que é Amar (...)”
«Senhor, eu creio mas aumenta a minha fé!
Senhor, ensina-me a rezar!
Cara comunidade,
Desinstalaram-nos! E isso é bom.
De que nos vale ter uma experiência/vivência de fé se não a sabemos partilhar? Uma vez ouvimos um amigo dizer que a Bíblia era um conjunto de textos que relatavam as histórias da revelação de Deus aos Homens de várias épocas e sociedades, por isso, formavam um conjunto tão rico que merecia ser partilhado e rezado…
Saibamos nós, na nossa humildade literária, ir escrevendo mais umas páginas para juntar à história da revelação de Deus aos Homens por Ele amados. Porque fazemos parte da Sua criação e sabemos que esta “história nunca pode ser travada”.
Partimos de uma ideia base de que a oração é forma por excelência de estar em relação com Deus. Relação de amizade/amor em que existe um enorme bem-querer, como um Amigo próximo que conhecemos há muitos anos, que ora vai estando, mas que nem sempre está presente de uma forma visível. Contudo sabemos estar sempre disponível para nós e nós para ele. Ainda que não nos dediquemos como gostaríamos, quando algo de muito bom ou de menos bom acontece rapidamente nos lembramos Dele, agradecemos as conquistas ou partilhamos as tristezas.
Ana Rita e João Luís
25 de Janeiro de 2008
Deixo-vos para reflexão uma série de frases que fui escrevendo, porque encontro nelas alguma base para poder partilhar convosco a minha aprendizagem contínua e inacabada de oração. Não tenho por hábito escrever o que rezo, nem dedico horas a fio à oração como fiz nos exercícios espirituais de santo Inácio (donde retirei as frases que seguem).
Rezo no meio da confusão mas é no Silêncio, naquele que in ou felizmente não se encontra todos os dias, que melhor O reconheço. E são esses encontros, aqueles que realmente nos marcam, que me fazem ir rezando, num jeito desajeitado, só ou acompanhado, tal como vós!
Outubro de 2002
“Nem sempre é fácil ouvir-Te… Acho que ainda não conheço bem a tua voz (...) Mas queria e quero ouvir-Te… Procurei o espaço certo, a posição certa – difíceis de encontrar! Do quarto, para a capela (…) só senti frio e desconcentração… sentei-me no chão e nada, deitei-me na cama (e não sei se adormeci)
(…) acordei e cantei:
“Quem aguarda pelo noivo
A chama acesa mantém
Não se assusta com a demora
Pois sabe que o noivo vem”
“Obrigado pela coragem, por saber que é bom viver em Verdade (…) Se tem que ser, que seja agora!.. Se é um “jogo”, então que jogue com o baralho todo!”
Junho de 2008
“Confesso-me ainda com medo de por todas as cartas em cima da mesa… E se Deus me troca as voltas? (…) Onde fica a minha liberdade? Será uma simples escolha entre o bem e o mal? (...) Ou haverá um bem e um bem maior? Está escrito e acredito (…) “o vosso Pai sabe que tendes necessidades. Procurai, antes, o Seu Reino e o resto vos será dado por acréscimo”.
“Senhor gostava de te servir lá, mas sinto ser aqui onde agora mais me chamas a trabalhar… Obrigado pela paz e pela clareza destas linhas. Que o bem em mim por Ti criado, não estagne! Que continue a semear esperança ainda que veja o futuro qb mais incerto! Seja feita a Vossa vontade, porque ela é de amor e de bem!”
“Durante a adoração do Santíssimo foi difícil focar no central – Cristo ali mesmo à frente (…) e duvidava como poderia Ele estar ali. Levantei os olhos e fixei-me no Seu corpo por nós entregue (…) Ainda há muito mais por trabalhar (…) Mesmo com a casa meio desarrumada tenho gosto em Te receber…”
“Perante o túmulo vazio, o que Jesus amava acreditou que Jesus está vivo! E eu em que acredito? Tudo somado o que parece ter acontecido? Jesus aparece às pessoas, e deixa-se tocar (no caso de Tomé). Pedro e Paulo partem para Roma, eles que temeram e duvidaram.”
Dezembro de 2008
“Chegamos à parte difícil… ouvir o querer de Deus! Contudo quero acreditar e sei que a vontade de Deus é o melhor para mim e para a construção do Reino… Mas onde me coloco? Sair de mim!”
“Não busco a um Deus dos aflitos indecisos, seria reduzir a minha relação conTigo… Quero-Te presente na minha vida… nas relações que construo… no modo como as construo, as reparo, as renovo! (…)”
“Sei, mas ao certo não sei se sei… Sinto que cada vez que peco me afasto daquele que é o meu maior projecto de vida… Então é difícil recomeçar, aproximar… aumento a distância aos outros... e a Deus também!
Ajuda-me a perceber porque mesmo sabendo te viro as costas?
Obrigado por todos aqueles que pões no meu caminho e que me ajudam a perceber qual o caminho para Ti… Ensina-me a amar quem tanto me dá!”
“Nestes dias fui experimentando o ruído mais do que o silêncio profundo… Sei que as respostas do “Altíssimo” vêm a nós… Basta a nossa atenção, a capacidade para a acolher.”
“Deixa-me escrever a certeza que trago, para que nos momentos mais difíceis não desespere e compreenda que esta é a forma de ser + Humano. Obrigado Senhor por esta grande oportunidade que é Amar (...)”
domingo, janeiro 11
1º Domingo do Tempo Comum - 11 de Janeiro
O mundo celebrou, no dia 1 de Janeiro (em cada ano assim é...), o Dia Mundial da Paz!
Entretanto, começou a guerra em Gaza...
(as imagens foram retiradas, da Net, pelo Zé; a música, é de Jordi Savall [Fanfare de Jericho, 1200 av. J.C.], do seu recente trabalho Jérusalem: La Ville de deus Paix: La Paix céleste et la Paix terrestre. Umas e outra aqui reproduzimos com o devido respeito aos múltiplos autores.)
Rezámos por tudo isto, também com a ajuda dos poemas de Mahmud Darwish* (em traduções de Albano Martins para a Campo das Letras). Aqui ficam:
Bilhete de Identidade
Escreve!
Sou árabe
e o meu bilhete de identidade é o cinquenta mil;
tenho oito filhos
e o nono chegará no final do Verão.
Vais zangar-te?
Escreve!
Sou árabe.
Trabalho na pedreira
com os meus companheiros de infortúnio.
Arranco das rochas o pão,
as roupas e os livros
para os meus oito filhos.
Não mendigo caridade à tua porta,
nem me humilho nas tuas antecâmaras.
Vais zangar-te?
Escreve!
Sou árabe.
Sou um homem sem título.
Espero, paciente, num país
em que tudo o que há existe em raiva.
As minhas raízes,
foram enterradas antes do início dos tempos
antes da abertura das eras,
antes dos pinheiros e das oliveiras,
antes que tivesse nascido a erva.
O meu pai descende do arado,
e não de senhores poderosos.
O meu avô foi lavrador,
sem honras nem títulos,
e ensinou-me o orgulho do sol
antes de me ensinar a ler.
A minha casa é uma cabana,
feita de ramos e de canas.
Estás feliz com o meu estatuto?
Tenho um nome, não tenho título.
Escreve!
Sou árabe.
Roubaste os pomares dos meus antepassados
e a terra que eu cultivava com os meus filhos;
não me deixaste nada,
apenas estas rochas;
O governo vai tirar-me as rochas,
como me disseram?
Escreve, então,
no cimo da primeira página:
a ninguém odeio, a ninguém roubo.
Mas, se tiver fome,
devorarei a carne do usurpador.
Tem cuidado!
Cuidado com a minha fome,
Cuidado com a minha ira!
Os pássaros morrem na Galileia
Voltaremos a ver-nos em breve.
Dentro dum ano
ou dois
ou numa geração.
Em seguida ela guardou, precipitadamente, na sua máquina fotográfica
vinte jardins,
os pássaros da Galileia,
e partiu, para além dos mares, em busca
dum novo sentido para a verdade.
— A minha pátria é uma corda de estender roupa
para os lenços de sangue derramado
a cada momento.
E estendi-me na praia,
areia e... palmeiras.
Sobre isso, ela nada sabe.
— Rita! A morte e eu revelámos-te
o segredo da alegria murcha às portas das alfândegas.
A morte e eu renovámo-nos
na tua fronte primitiva
e na tua janela.
A morte e eu, duas faces.
Porque foges agora da minha?
Porquê?
Porque foges do que faz do trigo
os cílios da terra,
do vulcão, um outro rosto de jasmim?
Porque foges?
Sozinho, o seu silêncio fatigava-me de noite,
quando se alongava diante da minha porta
como se fosse a rua... o velho bairro.
Que a tua vontade seja feita, Rita!
Que o silêncio seja machado,
cercaduras de estrelas
ou terreno propício ao nascimento da árvore.
Eu saboreio o beijo
no fio das lâminas.
Vem, adiramos aos massacres!
Como folhas supérfluas,
os enxames de pássaros
caíram no poço do tempo.
E eu recolho as asas azuis.
Rita,
eu sou a pedra tumular da sepultura que cresce.
Rita,
eu sou aquele em cuja carne
as searas cavam
o rosto duma pátria...
* Morreu no passado dia 9 de Agosto [de 2008], nos Estados Unidos, o poeta palestiniano Mahmud Darwish, aos 67 anos, um dos mais importantes poetas árabes contemporâneos, cuja actividade literária e política o tornaram no poeta nacional da Palestina.
Mahmud Darwish nasceu na Palestina em 1941. Em 1948 a sua aldeia foi atacada pelos sionistas e os habitantes levados para outros lugares. Aos sete anos Darwish fugiu para o Líbano à procura de notícias da sua família que, no entanto, não conseguiu encontrar. Um ano depois o poeta retornou à Palestina, onde encontrou a sua aldeia totalmente arrasada e ocupada pelos israelitas. Darwish escreveu os seus primeiros textos poéticos quando ensinava na aldeia de Der Al Asad. Foi detido e preso pelos israelitas em diversas alturas ao longo da sua infância e adolescência, tendo mais tarde sido proibido de leccionar no ensino superior. Entretanto, foi para Moscovo em 1970, e para o Cairo no ano seguinte. Desde então organizou várias publicações e centros de pesquisa palestinianos. Foi presidente da Sociedade de Escritores e Poetas Palestinianos e foi várias vezes indicado para o Prémio Nobel.
Em Abril de 1988 o então primeiro-ministro Isaac Shamir iniciou uma ofensiva contra Darwish devido ao seu poema "Aqueles que passam entre as palavras passageiras", que, segundo Shamir era "a expressão exacta dos objectivos do bando de assassinos organizados debaixo do guarda-chuva da OLP". Na verdade, o poema é um pedido dirigido aos israelitas para que deixem as terras ocupadas.
Em Abril de 2002 o exército israelita atacou e destruiu o Centro Cultural Jalil Sakatini (Ramalá), dirigido por Darwish. Antes, o edifício tinha sido saqueado pelas forças militares de Israel que levaram arquivos, documentos e obras de arte e a seguir o destruíram com explosões de cargas de dinamite. O edifício também era sede da prestigiosa revista literária palestiniana Al Karmel, também dirigida por Darwish. Horas mais tarde a operação continuou com a invasão da casa do poeta, que residia em Paris, onde continuava a editar a revista literária Al Karmel.
Com livros traduzidos em mais de 20 idiomas e vários prémios internacionais, Mahmud Darwish é o autor da Declaração de Independência Palestiniana, escrita em 1988 e lida por Iasser Arafat quando declarou unilateralmente a criação do Estado Palestiniano.
Darwish ganhou notoriedade ainda nos anos 60, com a publicação do seu primeiro livro "Pássaro sem asas", uma colectânea de poemas que inclui "Bilhete de Identidade". Escrito na primeira pessoa, o poema descreve o momento em que um árabe fornece os números do seu documento de identificação numa barreira israelita, na tentativa de retornar à sua terra.
Em Portugal, a editora Campo das Letras publicou em 2002 o livro "O Jardim Adormecido e Outros Poemas", com selecção e tradução de Albano Martins. Os poemas deste livro foram extraídos dos volumes "La terre nous est étroite et autres poèmes" (antologia organizada pelo próprio poeta, antecedida de um prefácio inédito do autor, publicada, em 2000, pela editora Gallimard), "Plus rares sont les roses" (Les Éditions de Minuit, 1989) e "Poèmes palestiniens" (Les Éditions du Cerf, 1989).
(http://porosidade-eterea.blogspot.com/2008/08/mahmoud-darwish-1941-2008.html)
No poema Os pássaros morrem na Galileia "[…] Rita é a amada israelita, que, desiludida, parte numa viagem em busca da verdade e deixa o poeta para trás. O poema tornou-se numa das canções mais populares da Palestina."
(http://porosidade-eterea.blogspot.com/2008/10/leitura-mundial-de-mahmud-darwich_05.html)
Entretanto, começou a guerra em Gaza...
(as imagens foram retiradas, da Net, pelo Zé; a música, é de Jordi Savall [Fanfare de Jericho, 1200 av. J.C.], do seu recente trabalho Jérusalem: La Ville de deus Paix: La Paix céleste et la Paix terrestre. Umas e outra aqui reproduzimos com o devido respeito aos múltiplos autores.)
Rezámos por tudo isto, também com a ajuda dos poemas de Mahmud Darwish* (em traduções de Albano Martins para a Campo das Letras). Aqui ficam:
Bilhete de Identidade
Escreve!
Sou árabe
e o meu bilhete de identidade é o cinquenta mil;
tenho oito filhos
e o nono chegará no final do Verão.
Vais zangar-te?
Escreve!
Sou árabe.
Trabalho na pedreira
com os meus companheiros de infortúnio.
Arranco das rochas o pão,
as roupas e os livros
para os meus oito filhos.
Não mendigo caridade à tua porta,
nem me humilho nas tuas antecâmaras.
Vais zangar-te?
Escreve!
Sou árabe.
Sou um homem sem título.
Espero, paciente, num país
em que tudo o que há existe em raiva.
As minhas raízes,
foram enterradas antes do início dos tempos
antes da abertura das eras,
antes dos pinheiros e das oliveiras,
antes que tivesse nascido a erva.
O meu pai descende do arado,
e não de senhores poderosos.
O meu avô foi lavrador,
sem honras nem títulos,
e ensinou-me o orgulho do sol
antes de me ensinar a ler.
A minha casa é uma cabana,
feita de ramos e de canas.
Estás feliz com o meu estatuto?
Tenho um nome, não tenho título.
Escreve!
Sou árabe.
Roubaste os pomares dos meus antepassados
e a terra que eu cultivava com os meus filhos;
não me deixaste nada,
apenas estas rochas;
O governo vai tirar-me as rochas,
como me disseram?
Escreve, então,
no cimo da primeira página:
a ninguém odeio, a ninguém roubo.
Mas, se tiver fome,
devorarei a carne do usurpador.
Tem cuidado!
Cuidado com a minha fome,
Cuidado com a minha ira!
Os pássaros morrem na Galileia
Voltaremos a ver-nos em breve.
Dentro dum ano
ou dois
ou numa geração.
Em seguida ela guardou, precipitadamente, na sua máquina fotográfica
vinte jardins,
os pássaros da Galileia,
e partiu, para além dos mares, em busca
dum novo sentido para a verdade.
— A minha pátria é uma corda de estender roupa
para os lenços de sangue derramado
a cada momento.
E estendi-me na praia,
areia e... palmeiras.
Sobre isso, ela nada sabe.
— Rita! A morte e eu revelámos-te
o segredo da alegria murcha às portas das alfândegas.
A morte e eu renovámo-nos
na tua fronte primitiva
e na tua janela.
A morte e eu, duas faces.
Porque foges agora da minha?
Porquê?
Porque foges do que faz do trigo
os cílios da terra,
do vulcão, um outro rosto de jasmim?
Porque foges?
Sozinho, o seu silêncio fatigava-me de noite,
quando se alongava diante da minha porta
como se fosse a rua... o velho bairro.
Que a tua vontade seja feita, Rita!
Que o silêncio seja machado,
cercaduras de estrelas
ou terreno propício ao nascimento da árvore.
Eu saboreio o beijo
no fio das lâminas.
Vem, adiramos aos massacres!
Como folhas supérfluas,
os enxames de pássaros
caíram no poço do tempo.
E eu recolho as asas azuis.
Rita,
eu sou a pedra tumular da sepultura que cresce.
Rita,
eu sou aquele em cuja carne
as searas cavam
o rosto duma pátria...
* Morreu no passado dia 9 de Agosto [de 2008], nos Estados Unidos, o poeta palestiniano Mahmud Darwish, aos 67 anos, um dos mais importantes poetas árabes contemporâneos, cuja actividade literária e política o tornaram no poeta nacional da Palestina.
Mahmud Darwish nasceu na Palestina em 1941. Em 1948 a sua aldeia foi atacada pelos sionistas e os habitantes levados para outros lugares. Aos sete anos Darwish fugiu para o Líbano à procura de notícias da sua família que, no entanto, não conseguiu encontrar. Um ano depois o poeta retornou à Palestina, onde encontrou a sua aldeia totalmente arrasada e ocupada pelos israelitas. Darwish escreveu os seus primeiros textos poéticos quando ensinava na aldeia de Der Al Asad. Foi detido e preso pelos israelitas em diversas alturas ao longo da sua infância e adolescência, tendo mais tarde sido proibido de leccionar no ensino superior. Entretanto, foi para Moscovo em 1970, e para o Cairo no ano seguinte. Desde então organizou várias publicações e centros de pesquisa palestinianos. Foi presidente da Sociedade de Escritores e Poetas Palestinianos e foi várias vezes indicado para o Prémio Nobel.
Em Abril de 1988 o então primeiro-ministro Isaac Shamir iniciou uma ofensiva contra Darwish devido ao seu poema "Aqueles que passam entre as palavras passageiras", que, segundo Shamir era "a expressão exacta dos objectivos do bando de assassinos organizados debaixo do guarda-chuva da OLP". Na verdade, o poema é um pedido dirigido aos israelitas para que deixem as terras ocupadas.
Em Abril de 2002 o exército israelita atacou e destruiu o Centro Cultural Jalil Sakatini (Ramalá), dirigido por Darwish. Antes, o edifício tinha sido saqueado pelas forças militares de Israel que levaram arquivos, documentos e obras de arte e a seguir o destruíram com explosões de cargas de dinamite. O edifício também era sede da prestigiosa revista literária palestiniana Al Karmel, também dirigida por Darwish. Horas mais tarde a operação continuou com a invasão da casa do poeta, que residia em Paris, onde continuava a editar a revista literária Al Karmel.
Com livros traduzidos em mais de 20 idiomas e vários prémios internacionais, Mahmud Darwish é o autor da Declaração de Independência Palestiniana, escrita em 1988 e lida por Iasser Arafat quando declarou unilateralmente a criação do Estado Palestiniano.
Darwish ganhou notoriedade ainda nos anos 60, com a publicação do seu primeiro livro "Pássaro sem asas", uma colectânea de poemas que inclui "Bilhete de Identidade". Escrito na primeira pessoa, o poema descreve o momento em que um árabe fornece os números do seu documento de identificação numa barreira israelita, na tentativa de retornar à sua terra.
Em Portugal, a editora Campo das Letras publicou em 2002 o livro "O Jardim Adormecido e Outros Poemas", com selecção e tradução de Albano Martins. Os poemas deste livro foram extraídos dos volumes "La terre nous est étroite et autres poèmes" (antologia organizada pelo próprio poeta, antecedida de um prefácio inédito do autor, publicada, em 2000, pela editora Gallimard), "Plus rares sont les roses" (Les Éditions de Minuit, 1989) e "Poèmes palestiniens" (Les Éditions du Cerf, 1989).
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No poema Os pássaros morrem na Galileia "[…] Rita é a amada israelita, que, desiludida, parte numa viagem em busca da verdade e deixa o poeta para trás. O poema tornou-se numa das canções mais populares da Palestina."
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