A segunda leitura da Celebração de hoje levanta-nos questões profundas. O José pediu a três mulheres, casadas, que reflectissem sobre este "dilema", esta [aparente] separação destes "dois mundos". A leitura é esta:
«Leitura da Primeira Epístola do apóstolo S. Paulo aos Coríntios
Irmãos: Não queria que andásseis preocupados. Quem não é casado preocupa-se com as coisas do Senhor, com o modo de agradar ao Senhor. Mas aquele que se casou preocupa-se com as coisas do mundo, com a maneira de agradar à esposa, e encontra-se dividido. Da mesma forma, a mulher solteira e a virgem preocupam-se com os interesses do Senhor, para serem santas de corpo e espírito. Mas a mulher casada preocupa-se com as coisas do mundo, com a forma de agradar ao marido. Digo isto no vosso próprio interesse e não para vos armar uma cilada. Tenho em vista o que mais convém e vos pode unir ao Senhor sem desvios.»
Aqui ficam, agora, as reflexões da Carminho e da Rute (a que mais tarde se juntará a da Kuki):
«1. Se S. Paulo vivesse hoje talvez a sua mensagem fosse diferente.
A valorização da capacidade feminina para a multiplicidade de tarefas simultâneas talvez o levasse a encarar a possibilidade de nelas incluir a dedicação às “coisas do Senhor”, como algo próprio das mulheres...
2. A criatividade, as emoções mas também a luta diária pelo cuidado e pela sobrevivência dos que estão mais próximos não são, em primeira análise, manifestações dessa dedicação às causas mais nobres da Boa Nova de Jesus Cristo?
3. A defesa do celibato como base da exclusividade na dedicação às “coisas do Pai” não faz sentido num mundo cheio de pluralidade de opções, de oferta de caminhos e apelos diversificados. Não será prioritariamente, por certo, a dedicação ao marido (ou à mulher) o contraponto à dedicação às “coisas do Senhor”
4. E há quem faça opções radicais – homens e mulheres – que depois de uma vida cheia no mundo dos negócios, p.ex., deixe tudo para se dedicar a causas humanitárias, ao voluntariado, à clausura, mantendo (ou não) as relações conjugais entretanto desenvolvidas. E não são estas, manifestações reais da dedicação às “coisas do Senhor”? Com ou sem celibato! Para homens e mulheres.
Comunidade João XXIII, 1 Fevereiro de 2009
Contributo para a partilha (Carminho)»
«Comentários suscitados pela 1ª Carta de S. Paulo aos Coríntios – 7, 32-25
Trata-se de um texto sobre a “divisão do trabalho” na comunidade de Corinto, no qual sobressai, em primeiro lugar, o contraste entre dois grupos sociais e as tarefas que lhes estão acometidas:
1. Os celibatários (homens e mulheres) apresentados como aqueles que trabalham para “as coisas do Senhor”, que estão preocupados em “agradar ao Senhor”/com os “interesses do Senhor”; elas, mulheres, com o objectivo específico de “serem santas de corpo e espírito”.
2. Os casados, segundo o autor, “preocupam-se com as coisas do mundo”, “com a forma de agradar à esposa/ao marido”.
Alguns têm visto/verão nesta antinomia de funções o primado do celibato/dos celibatários nas coisas de Deus e uma concepção do casamento como algo voltado exclusivamente para o mundo e, consequentemente, desligado das coisas de Deus.
As questões que importa colocar são, a meu ver, as seguintes:
a) Seria S. Paulo um “macho chauvinista”, como costumava afirmar a minha professora de Cultura Inglesa casada com um irlandês católico?
b) Haverá neste texto, apesar da dureza das palavras, apenas a apologia de uma divisão de tarefas escatologicamente motivada? – S. Paulo acreditava que o “fim dos tempos” estava próximo; era, portanto, urgente passar a mensagem e fazia sentido que o fizessem os que estavam em dedicação exclusiva – os celibatários;
c) Não dizemos nós, Igreja de hoje, que temos de, enquanto Igreja, ter uma face voltada para o mundo? Não encontramos na dimensão social da Igreja o modo de muitos cristãos se identificarem com Cristo e com as interpelações mais radicais que Ele nos fez/faz? Serão os cristãos casados deste texto essa face?
A minha experiência pessoal o que diz é que, depois das coisas do mundo, não resta muito tempo em exclusividade para as coisas de Deus e que, nesta medida, só faz sentido que as coisas de Deus se misturem com a minha vida no mundo[, de tal modo que não haja distinção entre coisas de Deus e coisas do mundo].
Questionável é, parece-me, a distinção maniqueísta entre “coisas de Deus” e “coisas do mundo”, que talvez seja epocalmente compreensível, mas que não deve ser extrapolada para os dias de hoje, nomeadamente quando se trata de separar entre ministérios de primeira e de segunda categoria, sacerdotais e laicais, por exemplo.
Lamentável é que se retire de algumas afirmações de S. Paulo, ainda nos nossos dias, a fundamentação para excluir as mulheres de cargos eclesiais e/ou de lugares de referência no discurso teológico, etc., perpetuando a lógica androcêntrica ainda dominante na sociedade civil, como se pode ler nas palavras da teóloga Elisabeth Schüssler Fiorenza:
As mulheres como Igreja são invisíveis não por acidente nem por nossa negligência, mas pela lei patriarcal que nos exclui dos cargos eclesiásticos por causa do sexo. (Fiorenza 1985/86: 9)
Referências bibliográficas:
Cothenet, Edouard (1983), “S. Paulo no seu Tempo”, Cadernos Bíblicos 13, Lisboa: Difusora Bíblica, pp. 54-55.
Fiorenza, Elisabeth Schüssler (1985/86), “Quebrando o silêncio: a mulher se torna visível”, Elisabeth Schüssler Fiorenza et al., A Mulher — Invisível na Teologia e na Igreja, Petrópolis: Editora Vozes. [reedição em livro da revista Concilium/202 – 1985/6: Teologia Feminista]
Rute Soares»
Junto a estes testemunhos a cópia do texto, citado pela Rute, de Edouard Cothenet, que poderão descarregar.
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