segunda-feira, fevereiro 9

D. Hélder Câmara: quando o deserto é fértil

Roubei este título e o texto que se segue (com uma ligeiríssima alteração no primeiro parágrafo) ao António Marujo, que o publicou no blog onde colabora:

«Dom Hélder nasceu há 100 anos, completados este sábado – e morreu em 1999, fará em Agosto 10 anos. Na TSF, está um registo do espectáculo da Missa dos Quilombos, feito em 1993 e reproduzido de novo este sábado, onde Dom Hélder faz a invocação a Maria. Quem quiser ver imagens do espectáculo, pode ir já aqui abaixo. A seguir, em jeito de homenagem e memória, fica o texto publicado no Janus 2007.

A sua utopia de um mundo mais justo e solidário ficou expressa no título de um dos seus livros: O deserto é fértil. Hélder Pessoa Câmara (Fortaleza, 7 de Fevereiro de 1909 – Recife, 27 de Agosto de 1999) foi a figura mais carismática do episcopado brasileiro do século XX. Arcebispo do Recife, a sua opção em favor dos mais pobres e do desenvolvimento fez florir muitos desertos em todo o mundo.
Corpo franzino e frágil, a sotaina de cor creme agigantava-se com o seu gesto largo abarcando o horizonte, discurso feito de braços dançantes, mãos abertas, olhos brilhantes. Quem alguma vez o escutou ao vivo pôde sentir a profunda convicção de cada palavra. Citava as estatísticas do subdesenvolvimento, colocava nomes e rostos concretos em histórias de miséria, apelava a não desanimar perante nenhuma dificuldade, bradava pela certeza de um mundo com mais esperança para todos.
Ia buscar à fé cristã os fundamentos para esse agir: “Quando dou comida aos pobres chamam-me de santo. Quando pergunto por que eles são pobres chamam-me de comunista.” “Sempre que procura defender os sem-vez e sem-voz, a Igreja é acusada de fazer política.” Uma das suas histórias conhecidas é de um telefonema para uma esquadra de polícia, quando um homem estava sendo espancado – vivia-se o tempo da ditadura militar no Brasil: “Aqui é Dom Hélder. Está preso aí o meu irmão.” O agente espanta-se: “Seu irmão, eminência?” Resposta pronta: “É, apesar da diferença de nomes, somos filhos do mesmo Pai.”

“O padre tem que se gastar”
O pai – o de sangue – era jornalista, empregado de comércio. A mãe era professora primária. Décimo primeiro de treze filhos (só oito sobreviveram), Hélder Câmara ainda terá ouvido o pai, mação, perguntar-lhe: “Meu filho, você sabe o que é ser padre? Padre e egoísmo nunca podem andar juntos. O padre tem que se gastar, se deixar devorar.” Ordenado em 1931, em Fortaleza, seria nomeado bispo auxiliar do Rio de Janeiro em 1952, aos 43 anos de idade. Doze anos depois, em Março de 1964, foi transferido para a sé de Olinda e Recife, onde esteve até resignar, em 1985. Morreu com 90 anos.
Nos primeiros anos de sacerdócio ainda adopta ideias integralistas. Mas cedo evolui. No Rio de Janeiro, cria a Cruzada de São Sebastião e o Banco da Providência, para apoio a habitantes das favelas e a famílias pobres. Na mesma altura, é um dos impulsionadores da colegialidade e da colaboração episcopal, na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (onde foi o primeiro secretário-geral, entre 1952 e 1964) – e no Conselho Episcopal Latino-Americano.
Quando é nomeado para arcebispo de Olinda e Recife, o Brasil já vive em plena “ditadura dos coronéis”. Alarga a sua acção à defesa dos direitos humanos e da liberdade política, ao mesmo tempo que contesta a grande concentração da riqueza brasileira (e mundial) nas mãos de poucas famílias. Um dos seus últimos actos públicos seria mesmo o lançamento, com a Fundação Joaquim Nabuco, da campanha Ano 2000 Sem Miséria. A fome, a miséria e a guerra eram os seus grandes inimigos: seria uma vergonha o mundo chegar ao ano 2000 com milhões a viver presos dessas realidades.
Eram essas atitudes e opiniões que o catalogavam, em muitos meios, como o “bispo vermelho” ou “comunista”. O próprio brinca com as acusações e repete a frase antes citada. Nos anos de chumbo do Brasil, sofre retaliações, os militares assassinam-lhe o secretário, fica sem acesso aos meios de comunicação. Obstáculos que ele ultrapassa falando, no estrangeiro, da realidade do Brasil – e do mundo, nunca esquecido. A importância de toda essa actividade – a que se juntam mais de duas dezenas de livros publicados e traduzidos em várias línguas – leva a que lhe sejam atribuídas mais de seiscentas condecorações e títulos honorários, vinte e cinco prémios da paz e dos direitos humanos. Proposto para Nobel da Paz, a ditadura militar conseguiu obstar a que o galardão lhe fosse dado.
Nas suas andanças pelo mundo, faz muitas perguntas: Que fazer perante a miséria do mundo? Como lutar quando 20 por cento da humanidade concentra 80 por cento da riqueza? Como criar alternativas não-violentas quando os países mais poderosos gastam em armamento o que serviria para erradicar do planeta a doença e a fome? E as respostas vinham num sentido: lutar contra a resignação, denunciar injustiças, ser solidário, adoptar um estilo de vida sóbrio e que não afronte quem nada tem.

Um abrigo para refugiados
A coerência da sua vida foi até ao ponto de deixar o palácio episcopal, substituindo-o por uma pequena casa onde todos podiam entrar. Nela se refugiavam perseguidos políticos e pobres. Organizou a Operação Esperança, que permitiu a criação de conselhos de moradores para resolver os problemas das populações ribeirinhas afectadas por problemas de cheias periódicas.
No Concílio Vaticano II (1962-65), a acção de Hélder Câmara, juntamente com outros bispos e cardeais, acaba por ser decisiva na recusa dos esquemas e organização preparados pela Cúria Romana e na adopção de um modelo de debate colegial. Vigoroso adepto da teologia da libertação, acabaria imerecidamente castigado por João Paulo II: ao contrário do que muitas pessoas pediam, nunca foi feito cardeal; pior ainda, o seu sucessor na diocese de Olinda e Recife acabou com todas as vertentes de acção social na formação do clero.
Após o concílio, Dom Hélder envolve-se em três projectos de natureza bem diversa: pede ao padre e compositor suíço Pierre Kaelin que componha um oratório sobre São Francisco de Assis. Nasce a “Sinfonia dos Dois Mundos”, em seis andamentos. No último, “tudo termina na esperança”, descreverá Dom Hélder. “Quanto mais sombria é a noite, mais bela é a aurora que ela carrega no seio.” Depois, encontra-se com o bailarino Maurice Béjart e este cria, a partir das sugestões do bispo, a “Missa para o Tempo Futuro”. Finalmente, na “Missa dos Quilombos”, Milton Nascimento coloca-o a declamar um longo poema à Virgem.
Num dos seus textos sobre a paz, escreve Dom Hélder em Abril de 1980: “Preciso levar aos homens o ramo de oliveira que o Senhor Deus me confiou!/ Por enquanto não há lugar nenhum onde pousar: (…) Voarei a qualquer preço... Enquanto eu não cair de cansaço. (…) voarei, voarei, voarei...”
».

Na nossa Celebração começámos por ser acolhidos pelo cântico de Milton Nascimento

Milton Nascimento - A de O (Estamos chegando)


No momento da partilha, lemos dois textos: o primeiro, escrito por D. Hélder e Abbé Pierre em 18/08/96 (por ocasião dos 65 anos de sacerdócio do Bispo de Olinda e Recife e da inauguração da Comunidade Emaús), construído como um Apelo, é dirigido aos Jovens, aos Políticos e à Igreja, os três destinatários habituais das comunicações de D. Hélder. O segundo, escrito apenas por D. Hélder, é uma pequena oração/desafio. Foram ambos retirados de http://www.agencia.ecclesia.pt/noticia_all.asp?noticiaid=69193&seccaoid=9&tipoid=161 (último acesso em 8/02/09).

«No dia 07 de Fevereiro de 1909 nasceu em Fortaleza-CE aquele que, em 1952, se tornou um dos Bispos de maior destaque e prestígio no Brasil e no mundo, Hélder Pessoa Câmara, que faleceu com 90 anos de vida e 68 de sacerdócio a serviço dos Direitos Humanos, da Justiça e da Paz. Três públicos-alvo de Dom Hélder foram os Jovens, os políticos e a Igreja; por isso, julgamos oportuno publicar este texto escrito em parceria com Abbé Pierre em 18/08/96.

Apelo aos Humanos
"Por motivo dos 65 anos de sacerdócio de um de nós e da inauguração da Comunidade Emaús, reunimo-nos durante uma semana no Recife. Mais uma vez juntos, para dar graças a Deus e para servir aos pobres.
Partilhámos momentos muito fortes. Cansativos, mas enriquecedores no plano pessoal, humano e espiritual.
Considerando a nossa idade e a responsabilidade que temos pela confiança depositada em nós por uma multidão de pobres no mundo, antes de nos separarmos fisicamente, ousamos lançar este apelo a todos os humanos.

AOS JOVENS
Vocês são a esperança do amanhã. O terceiro milénio é vosso. Há ainda muita miséria no mundo. É preciso que vocês trabalhem sem cessar, em favor da partilha e não da competitividade, seja esta a regra das vossas vidas. Sem partilha (partilha dos bens, das riquezas, do trabalho, do tempo livre, do saber, do saber fazer) não haverá justiça nem felicidade para todos. E, sobretudo os mais fracos, os mais pobres, os menos dotados sofrerão mais. Empenhem-se vocês que são jovens! Trabalhem sem cessar! Sejam competentes na vossa profissão... Lavrador ou motorista, advogado ou médico, vocês serão ouvidos somente se forem considerados competentes. Mas não esqueçam a regra de toda paz, de toda justiça, de toda solidariedade: servir e fazer que sejam servidos, primeiro e em todo lugar, os mais pobres...

AOS POLÍTICOS
A mundialização é a realidade de hoje. O mundo tornou-se uma "pequena aldeia global" onde somos condenados a conhecer tudo, onde o que acontece num canto do mundo tem consequências em todo canto. Mas em lugar de facilitar o encontro entre as pessoas por maior justiça para todos, a mundialização, até o momento, tem aumentado a divisão, cria novos conflitos e a miséria instala-se em toda parte, inclusive nos países ricos e industrializados. Ricos sempre mais ricos, pobres sempre mais miseráveis.
Isso não pode continuar. Não é justo! Não é humano!
Ajudem a organizar o mundo de forma diferente. Na partilha e não na competitividade. Na solidariedade, não na busca incessante de interesse de uma minoria de privilegiados.
Lembrem-se: a beleza de uma cidade não está na beleza dos seus teatros, na grandeza dos seus estádios, dos seus jardins, dos seus monumentos, no esplendor da sua catedral... A beleza de uma cidade realiza-se quando todos têm uma casa digna de ser habitada por pessoas humanas, quando há água potável para todos, a saúde garantida para todos, a possibilidade de frequentar a escola para todos, a possibilidade do lazer para todos, para que o desabrochar da dignidade de cada um possa tornar-se uma realidade viva e completa.
Não fiquem fechados nos vossos confortáveis escritórios ou nas mansões das vossas cidades... visitem as pessoas onde elas estão, onde vivem, onde sofrem, nas favelas, nos bairros populares da América Latina, na África e na Ásia.

À IGREJA
O terceiro milénio aproxima-se. A encarnação do Filho de Deus aconteceu há 2000 anos. Há ainda demasiada miséria no mundo, num mundo de riquezas! E, o que é grave e insuportável, é o facto de que a minoria dos privilegiados, os mais ricos, são, pelo menos na sua origem, cristãos.
O que fizemos com a mensagem de Cristo? De que maneira a multidão dos pobres, dos excluídos, dos marginalizados, dos sem-casa, dos sem-terra, dos sem-nada, pode acreditar que o Criador é o Pai que os ama, se nós, que nos dizemos cristãos, que temos mais, continuamos a deixar o prato deles vazio, embora declarando-nos a favor da Paz e do Amor?
Não sejamos somente crentes... Sejamos ACREDITÁVEIS!
Assim o mundo será como uma Hóstia voltada para o Senhor, uma imensa Hóstia de acção de graças a Deus, na felicidade de todos os Humanos. Porque a felicidade dos Homens é a Glória de Deus.
Nós vivemos mais que 80 anos... Ainda há muito que fazer para pôr ordem no mundo. Com as poucas forças que ainda nos restam, continuamos o nosso combate à miséria, em todo lugar onde for possível: que seja junto com todos vocês!"
D. Hélder Câmara, Abbé Pierre (adaptado)


MISSÃO É PARTIR
"Missão é partir, caminhar, deixar tudo, sair de si, quebrar a crosta do egoísmo que nos fecha no nosso Eu.
É parar de dar volta ao redor de nós mesmos, como se fôssemos o centro do mundo e da vida.
É não se deixar bloquear nos problemas do pequeno mundo a que pertencemos: a humanidade é maior.
Missão é sempre partir, mas não devorar quilómetros.
É sobretudo abrir-se aos outros como irmãos, descobri-los e encontrá-los.
E, se para encontrá-los e amá-los é preciso atravessar os mares e voar lá nos céus, então Missão é partir até os confins do mundo."
D. Hélder Câmara

À Comunhão cantámos

Milton Nascimento - Ofertorio



Como Acção de Graças, rezámos este belíssimo poema de D. Hélder (O Deserto é Fértil, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira S.A., 1976, p. 109)

Que toda palavra

nasça
da ação e da meditação.
Sem ação
ou tendência à ação
ela será apenas teoria
que se juntará
ao excesso de teoria
que está levando os jovens
ao desespero.
Se ela é apenas ação
sem meditação
ela acabará no ativismo
sem fundamento,
sem conteúdo,
sem força...
Presta honras ao Verbo eterno
servindo-te da palavra
de forma
a recriar o mundo.



No final, ouvimos a
Invocação a Mariama, poderosa prece rezada
no final da Missa dos Quilombos por D. Hélder.

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