domingo, março 22

"Se eu me não lembrar de ti, Jerusalém, fique presa a minha língua" - Domingo IV da Quaresma

Que belo mote para a nossa reflexão, ajudada pelo texto de D. Pedro Casaldáliga:

"Os sonhos de um grande profeta"
O cardeal Carlo Maria Martini, jesuíta, biblista, arcebispo que foi de Milão e colega meu de Parkinson, um eclesiástico de diálogo, de acolhimento, de renovação a fundo, tanto na Igreja como na Sociedade, em seu livro de confidências e confissões Colóquios nocturnos em Jerusalém, declara: «Antes eu tinha sonhos acerca da Igreja. Sonhava com uma Igreja que percorre o seu caminho na pobreza e na humildade, que não depende dos poderes deste mundo; na qual se extirpasse de raiz a desconfiança; que desse espaço às pessoas que pensem com mais amplidão; que desse ânimo, especialmente, àqueles que se sentem pequenos ou pecadores. Sonhava com uma Igreja jovem. Hoje não tenho mais esses sonhos». Esta afirmação categórica de Martini não é, não pode ser, uma declaração de fracasso, de decepção eclesial, de renúncia à utopia. Martini continua sonhando nada menos que com o Reino, que é a utopia das utopias, um sonho do próprio Deus. Ele e milhões de pessoas na Igreja sonham com a «outra Igreja possível», ao serviço do «outro Mundo possível». E o cardeal Martini é uma boa testemunha e um bom guia nesse caminho alternativo; tem-no demonstrado.
Tanto na Igreja (na Igreja de Jesus que são várias Igrejas) como na Sociedade (que são vários povos, várias culturas, vários processos históricos) hoje mais do que nunca devemos radicalizar na procura da justiça e da paz, da dignidade humana e da igualdade na alteridade, do verdadeiro progresso dentro da ecologia profunda. E, como diz Bobbio, é preciso instalar a liberdade no coração mesmo da igualdade»; hoje com uma visão e uma acção estritamente mundiais. É a outra globalização, a que reivindicam os nossos pensadores, nossos os militantes, os nossos mártires, os nossos famintos...
A grande crise económica actual é uma crise global de Humanidade que não se resolverá com nenhum tipo de capitalismo, porque não é possível um capitalismo humano; o capitalismo continua a ser homicida, ecocida, suicida. Não há modo de servir simultaneamente ao deus dos bancos e ao Deus da Vida, conjugar a prepotência e a usura com a convivência fraterna. A questão axial é: Trata-se de salvar o Sistema ou trata-se de salvar a Humanidade? As grandes crises, grandes oportunidades. No idioma chinês a palavra crise desdobra-se em dois sentidos: crise como perigo, crise como oportunidade.
Na campanha eleitoral dos EUA apelou-se repetidamente «ao sonho de Luther King», querendo actualizar esse sonho; e, por ocasião dos 50 anos da convocatória do Vaticano II, tem-se recordado, com saudade, o Pacto das Catacumbas da Igreja serva e pobre. No dia 16 de Novembro de 1965, poucos dias antes da clausura do Concílio, 40 Padres Conciliares celebraram a Eucaristia nas catacumbas romanas de Domitila, e firmaram o Pacto das Catacumbas. Dom Helder Câmara, cujo centenário de nascimento estamos a celebrar neste ano, era um dos principais animadores do grupo profético. O Pacto em seus 13 pontos insiste na pobreza evangélica da Igreja, sem títulos honoríficos, sem privilégios e sem ostentações mundanas; insiste na colegialidade e na co-responsabilidade da Igreja como Povo de Deus e na abertura ao mundo e no acolhimento fraterno.
Hoje, nós, na convulsa conjuntura actual, professamos a vigência de muitos sonhos, sociais, políticos, eclesiais, aos quais de nenhum modo podemos renunciar. Seguimos rechaçando o capitalismo neoliberal, o neo-imperialismo do dinheiro e das armas, uma economia de mercado e de consumismo que sepulta na pobreza e na fome uma grande maioria da Humanidade. E continuaremos a rechaçar toda discriminação por motivos de género, de cultura, de raça. Exigimos a transformação substancial dos organismos mundiais (a ONU, o FMI, o Banco Mundial, a OMC...). Comprometemo-nos a viver uma «ecologia profunda e integral», propiciando uma política agrária-agrícola alternativa à política depredadora do latifúndio, da monocultura, do agrotóxico. Participaremos nas transformações sociais, políticas e económicas, para uma democracia de «alta intensidade».
Como Igreja, queremos viver, à luz do Evangelho, a paixão obsessiva de Jesus, o Reino. Queremos ser Igreja da opção pelos pobres, comunidade ecuménica e macroecuménica também. O Deus em quem acreditamos, o Abbá de Jesus, não pode ser de jeito nenhum causa de fundamentalismos, de exclusões, de inclusões absorventes, de orgulho proselitista. Chega de fazermos do nosso Deus o único Deus verdadeiro. «Meu Deus, deixa-me ver a Deus?». Com todo respeito pela opinião do Papa Bento XVI, o diálogo inter-religioso não somente é possível, é necessário. Faremos da co-responsabilidade eclesial a expressão legítima de uma fé adulta. Exigiremos, corrigindo séculos de descriminação, a plena igualdade da mulher na vida e nos ministérios da Igreja. Estimularemos a liberdade e o serviço reconhecido dos nossos teólogos e teólogas. A Igreja será uma rede de comunidades orantes, servidoras, proféticas, testemunhas da Boa Nova: uma Boa Nova de vida, de liberdade, de comunhão feliz. Uma Boa Nova de misericórdia, de acolhimento, de perdão, de ternura, samaritana à beira de todos os caminhos da Humanidade. Continuaremos a fazer com que se viva na prática eclesial a advertência de Jesus: a «Não será assim entre vocês» (Mt 21,26). Seja a autoridade serviço. O Vaticano deixará de ser Estado e o Papa não será mais chefe de Estado. A Cúria terá de ser profundamente reformada e as Igrejas locais cultivarão a inculturação do Evangelho e a ministerialidade compartilhada. A Igreja comprometer-se-á sem medo, sem evasões, com as grandes causas da justiça e da paz, dos direitos humanos e da igualdade reconhecida de todos os povos. Será profecia de anúncio, de denúncia, de consolação. A política vivida por todos os cristãos e cristãs será a «expressão mais alta do amor fraterno» (Pio XI).
Não renunciamos a estes sonhos mesmo quando possam parecer quimera. «Ainda cantamos, ainda sonhamos». Nós atemo-nos à palavra de Jesus: «Fogo vim trazer à Terra; e que mais posso querer senão que arda» (Lc 12,49). Com humildade e coragem, no seguimento de Jesus, tentaremos viver estes sonhos no dia-a-dia das nossas vidas. Continuará a haver crises e a Humanidade, com as suas religiões e as suas Igrejas, seguirá sendo santa e pecadora. Mas não faltarão as campanhas universais de solidariedade, os Foros Sociais, as Vias Campesinas, os movimentos populares, as conquistas dos Sem Terra, os pactos ecológicos, os caminhos alternativos da Nossa América, as Comunidades Eclesiais de Base, os processos de reconciliação entre o Shalom e o Salam, as vitórias indígenas e afro e, em todo o caso, mais uma vez e sempre, «eu me atenho ao dito: a Esperança».
Cada um e cada uma a quem possa chegar esta circular fraterna, em comunhão de fé religiosa ou de paixão humana, receba um abraço do tamanho destes sonhos. Os velhos ainda têm visões, diz a Bíblia (Jl 3,1). Li nestes dias esta definição: «A velhice é uma espécie de pós-guerra»; não exactamente de claudicação. O Parkinson é apenas um percalço do caminho e seguimos Reino adentro.
Pedro Casaldáliga, Circular 2009. [com adaptações] (in: http://www.combonianosbne.org/node/526)

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