sexta-feira, março 30

Igreja portuguesa: Das inquietações, às perguntas; do nosso desconforto à nossa responsabilidade.

Pedimos ao José Vieira Lourenço que partilhasse connosco os apontamentos da reflexão que a Comunidade promoveu e em que tivemos o apoio do Anselmo Borges, do António Marujo, do José Dias da Silva e da Paula Abreu, com a moderação do José Pureza.
A Sala da Luz esteve cheia... de inquietações e de responsabilidade, de desconfortos, mas também de alegria e de esperança.



Já demos conta, nas mais diversas situações, das nossas inquietações e do nosso desconforto relativamente à Igreja portuguesa. Mas também sabemos da nossa responsabilidade e estamos cientes de que às vezes formulamos perguntas incómodas ou desafiantes. Alguém nos chamou comunidade de risco. E nós até não convivemos mal com o título, já que a capacidade de aceitar o risco e o desafio é uma das maiores marcas de qualquer ser humano.

No dia 27 de Março de 2007, juntámos ao serão um grupo de amigos que connosco quiseram partilhar as suas inquietações e perguntas. Estiveram connosco o Zé Dias da Silva, a Paula Abreu, o António Marujo e o Anselmo Borges. E a moderar o debate esteve o Zé Manuel Pureza.

Dado o pontapé de saída pelo moderador, que recordou as nossas inquietações e o nosso desejo infinito de procura, usou da palavra o Zé Dias que começou por defender que a Igreja portuguesa ainda não percebeu o que é estar no século XXI. Duas grandes dificuldades contribuem para isso: a falta de formação e a falta de diálogo. As consequências destas faltas são claras: temos dificuldade em descobrir quem somos (o problema da identidade); temos dificuldade em discernir e consequentemente temos dificuldade em cumprir a missão a que fomos chamados. Se há falta de diálogo não podemos assacar as culpas só à hierarquia. A culpa tem de ser repartida entre leigos e hierarquia, embora esta muitas vezes contribua exemplarmente para isso com a sua postura de desconfiança em relação aos leigos e com o seu comportamento recorrente que podemos sintetizar na velha máxima latina: Roma locuta, causa finita (isto é Roma, falou, está falado, a causa acabou e não se discute mais!). A solução, propõe o Zé Dias, seria instaurar o diálogo entre todos, para o que muito contribuiria a existência de uma opinião pública forte dentro da Igreja. Só com essa opinião pública activa se aplicaria o sensus fide (o sentido da fé) de que fala a constituição Lumen Gentium do Concílio Vaticano II e seria possível superar uma comunicação que muitas vezes é de sentido único. Convém recordar, acrescentou o Zé, que o povo de Deus não pode ser apenas um receptor de ordens. E enquanto a Igreja não fôr capaz de superar um certo autismo, enquanto não ultrapassar certos problemas internos, enquanto não fôr capaz de falar uma linguagem do nosso tempo, que seja inteligível por todos os homens e mulheres, não cumpre cabalmente a sua missão. Por outro lado a Igreja tem de perceber que não pode ter soluções para tudo e que cada vez estamos mais longe da máxima: fora da Igreja não há salvação. É que de facto, fora da Igreja também há salvação e a Igreja só tem a lucrar quando fôr capaz de desenvolver uma pastoral mais criativa e inovadora, respeitando o que há de bom no coração de cada cultura. E por isso uma Igreja normativa e doutrinária, apostada no sentido único, deve hoje ceder urgentemente o lugar a uma Igreja plural que consiga abarcar tudo o que de bom exista nos corações humanos. Quando fizer isto, a Igreja ganhará outra credibilidade e outro rigor e aprofundará ainda mais a sua fé.

O testemunho seguinte foi-nos oferecido pela Paula Abreu que começou por recordar que o seu olhar não pode ser entendido se não considerarmos o lugar de que fala: ela não pode fugir à sua formação de socióloga. Começou por recordar que os censos nos dizem que cerca de 90% da população é católica. Em 2001, 84,5 % dos portugueses declara-se católico. Mas será que esta realidade numérica corresponde à verdadeira realidade? É que uma coisa são estes 84,5 que se declaram católicos e outra coisa são os indicadores de prática e de frequência da Igreja. E o modelo torna-se ainda mais complexo se considerarmos alguns indicadores cruzando com outras respostas dos inquéritos e que são relativas a valores ou a crenças. Daí que a Paula pergunte: Como é que é possível que a Igreja portuguesa não se questione sobre estes valores? Quando é que a Igreja portuguesa entende que para muitos ser católico é apenas um traço duma matriz cultural? Será que estes dados sociológicos não deviam merecer, da parte da Igreja, um estudo e análise mais profunda? Ou a Igreja (portuguesa e a igreja em geral) pode continuar a desconfiar duma disciplina como a Sociologia? E quando é que a Igreja portuguesa entende que a sociedade contemporânea é cada vez mais pragmática? Provavelmente quando o entender não ficará tão surpreendida com os resultados de alguns referendos, como por exemplo deste último sobre o aborto.

O António Marujo começou por nos brindar com uma declaração que nos deve envaidecer: aceitou o convite porque a amizade assim o ditou! E recordou as comunidades dos primeiros cristãos que não tinham estrutura (nós temos hoje estrutura a mais!) mas que eram espaços onde a palavra amizade e solidariedade tinham profundo sentido. E a Igreja devia, segundo ele, continuar a ter essas profundas marcas. Mas a portuguesa nem sempre tem sido e às vezes parece muito distraída e até ignorante relativamente ao 1/5 dos portugueses que vivem com dificuldade. Usando sempre um tom coloquial e vivencial, António Marujo citou-nos alguns exemplos e testemunhos que considerou marcantes e que nos podem servir de farol.
Por isso nos falou da experiência radical de Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), teólogo protestante, executado pelo nazismo, defensor de um cristianismo de desnudamento total e radical na experiência do outro que nos prefigura sempre Jesus Cristo. Por isso nos recordou os belos exemplos do Irmão Roger, defensor duma Igreja cada vez mais ecuménica e aberta ou o cativante exemplo de Martim Luther King, esse sonhador dum mundo novo mais justo e mais fraterno ou ainda a experiência dum Bispo da Igreja católica melquita (Elia Shakur) que nos mostra que apesar das diferenças, judeus, palestinianos, católicos e árabes podem viver solidariamente juntos, ou ainda a experiência das sementes da paz criadas pela obra de Moamed Yunus.

E por fim tivemos o testemunho do padre, filósofo e teólogo Anselmo Borges, nosso convidado já noutra ocasião. Para Anselmo Borges toda a religião tem no seu início uma experiência de vida. E todas as religiões procuram indicar-nos o caminho para a vida eterna, que temos de entender hoje como uma procura de vida humana com sentido, com horizonte. E logo aqui a Igreja católica tem de entender que não pode ser o único farol que indica aos humanos a vida eterna. Há outros olhares. Há outras perspectivas. Como os próprios evangelhos que são afinal quatro perspectivas, quatro horizontes, um pouco descaracterizados ao longo dos séculos. E se calhar o primeiro golpe que descaracterizou o evangelho foi a constantinização da própria eclesia nascente. E depois deste golpe veio facilmente a dogmatização e a necessidade duma forte hierarquização que conduziu forçosamente à coisificação de tudo. E talvez seja aqui que começam os tais paradoxos, que ainda hoje se arrastam, e que nos dão conta duma Igreja de massas muito preocupada com o número de inscritos, com número de praticantes, enfim, uma Igreja mais quantitativa do que verdadeiramente qualitativa. Mas curiosamente, como dizia o nosso convidado, esta é, paradoxalmente, uma Igreja que canoniza facilmente os três pastorinhos, mas que tem mais dificuldade em canonizar o Padre Américo! A Igreja, por essência, é plural. Ela é por isso eclesia, povo convocado, e tem também raiz no grego legein, reunião na diferença. Ora, esta igreja de reunião na diferença tem de entender que há um só mundo mas que há muitas perspectivas, muitos modos diferentes de procurar e alcançar a vida eterna. Só este pluralismo eclesial, só esta superação da cisão entre a Igreja e o mundo, criarão condições para termos uma Igreja Viva e para que o projecto de Jesus Cristo aconteça verdadeiramente.

Seguiu-se depois o momento do debate, mas confesso não ser capaz de registar tudo o que se disse. Primeiro, porque não tirei notas suficientes. Depois, porque me parece que tudo o que foi dito ou mesmo aquilo que não foi dito e podia ter sido dito, foi apenas um reforço destes quatro tocantes testemunhos.
O nosso obrigado à Paula, ao Zé Dias, ao António Marujo, ao Anselmo Borges e ao Zé Manuel Pureza.
José Vieira Lourenço

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