domingo, março 11

“TU NÃO NOS QUISESTE ABANDONAR…”

3º Domingo da Quaresma - Ano C

As reflexões propostas pelo Samelo, e que já se tornaram essenciais para a nossa caminhada quaresmal, foram antecedidas por dois pequenos textos, que partilhamos também.

Deus, eu e o cuidado

«Eu sou o que sou (...). [Eu sou aquele que serei]1

A realidade e mesmo a maneira como Deus pode ser um eu para Deus é para nós do domínio da metáfora. Mas metáfora é a essência da nossa relação connosco e com o Real, o que permite «compreender» imaginariamente para poder compreender aos poucos o que desde o início está presente. Nós só temos a experiência de um eu como não-deus. Todavia o sentido dela recorta-se nessa Ausência, é feito dessa ausência que nos constitui, nos invade, nos precede e nos solicita. A clara visão dela é o lugar em que a expressão «Deus» cobra para nós o único sentido possível. De uma Ausência não podemos fazer uma Presença. Não temos pois de «Deus», através da experiência de nós mesmos, um verdadeiro conhecimento. Isto nos impede, radicalmente, de «pensar segundo Deus», quer dizer, de nos colocar naquele ponto que permite uma teologia outra que positiva, isto é, injustificável. Mas não há outra.»

Eduardo Lourenço, "Do discurso «Sobre Deus»...", Nice, Junho 1968, in Tempo e o modo, 3. Deus o que é? 1968, p. 110.

1 Outra tradução possível. Nunca "eu sou aquele que é", como constava nos Septuaginta (tradução grega do Pentateuco). Nota d@ compilador@.


«Cuidar das coisas implica ter intimidade, senti-las dentro, acolhê-las, respeitá-las, dar-lhes sossego e repouso. Cuidar é entrar em sintonia com, auscultar-lhes o ritmo e afinar-se com ele. (...) Este modo-de-ser no mundo, na forma de cuidado, permite ao ser humano viver a experiência fundamental do valor, daquilo que tem importância e definitivamente conta. Não do valor utilitarista, só para o seu uso, mas do valor intrínseco às coisas. A partir desse valor substantivo emerge a dimensão de alteridade, de respeito, de sacralidade, de reciprocidade e de complementaridade.
(...) No modo-de-ser-cuidado ocorrem resistências e emergem perplexidades. Mas elas são superadas pela paciência perseverante. No lugar da agressividade, há a convivência amorosa. Em vez da dominação há a companhia afectuosa, ao lado e junto com o outro.»

Leonardo Boff, Saber Cuidar, 1999



Quaresma: dupla dimensão penitencial e baptismal… Assim, a partir do 3º domingo a Mesa da Palavra ou mais penitencial ou mais baptismal…


“TU NÃO NOS QUISESTE ABANDONAR…”


O Deus perto de nós e que caminha connosco - o Deus connosco.
Conversão: Deus onde estás?


O Deus insondável
Hoje não só se afirma: “não há Deus” [Sl 14 (13), 1], como também: “Deus é como tu e eu, um igual a nós”. Ante a negação ou a banalização de Deus, importa ter clara a resposta a uma pergunta que é hoje tão actual como no tempo do salmista: “onde está o teu Deus?” [Sl 42 (41), 11].
A primeira resposta é: Deus “habita numa luz inacessível” (1 Tm 6, 16), Ele é “o mistério escondido ao longo das gerações” (Cl 1, 26), a quem “jamais alguém viu” (Jo 1, 17). Afirmar a transcendência radical de Deus é a condição primeira e fundamental do crente.

Deus na história
Entretanto, a tradição judaico-cristã diz-nos que Deus, sem deixar de ser Deus, se revelou na história e que é nela que O podemos encontrar. Deus é “o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacob" (Ex 3, 6).
De Abraão até hoje, a história do cristianismo é a de todos aqueles que têm encontrado Deus nos afazeres ambíguos da história das pessoas.
A história é o que se faz, o que se constrói, dinamizado totalmente pelo futuro. É, assim, simultaneamente projecto e tarefa concreta.
Esta entrega de Deus no fazer e desfazer das pessoas é para muitos uma fonte permanente de escândalo. Da história humana pode sair algo bom? Nós dizemos: da história saiu Deus e na Sua história encontra-se a possibilidade do nosso encontro com Ele.

A leitura crente da realidade
A história, sem esquecer a história como possibilidade de transformação, é presença. É aqui que se encontra o lugar da leitura crente. A leitura crente supõe, pois, uma experiência activa. Não é unicamente uma reflexão sobre os acontecimentos, mas um esforço por ver como a nossa acção é também uma experiência de Deus, pois Cristo quis identificar-se com ela. O seguimento de Cristo convida-nos a construir a história e a torná-la transparente. A pessoa não possui a história, constrói-a. A leitura crente acompanha a construção da história de Deus e propõe-se discernir nela o Deus da história, os “sinais dos tempos”.

Leitura crente e oração
A leitura crente não é unicamente uma reflexão. Ela é também oração. O crente não é alguém que descobre na realidade significados ocultos. Não é, tão pouco, o pensador que espreme do real gotas de sabedoria. Ele é capaz de ver Deus onde outros só vêem causalidade, processos históricos, equações económicas. É aquele que experimenta a realidade como uma grande parábola de Deus, que “vê brilhar a luz do Evangelho da glória de Cristo, que é imagem de Deus” (2 Cor 4, 4).
Assim se explica que esta aproximação crente à história das pessoas termine num silêncio, numa invocação, numa esperança, num pedido de perdão. Não apenas porque descobrimos que o Senhor fez (e faz) maravilhas em nós (cf Lc 1, 49), mas também porque nos deu (e dá) a possibilidade de O descobrir. «Só se permanecer um lugar onde a oração, a contemplação, a adoração do Deus vivo puderem desenvolver-se, a Igreja poderá intervir eficazmente na instauração da justiça no mundo» (Karl RAHNER, teólogo cristão católico alemão). No caminho do encontro crente, Deus está tanto frente a nós como em nós: “é nEle que vivemos, nos movemos e existimos" (Act 17, 28).

A esperança
Por isso, a esperança é o motor da história para o crente, de tal modo que S. Paulo pôde definir os cristãos como “os que têm esperança” (1 Ts 4, 13). A esperança une futuro e presente e ajuda a descobrir que nem sequer mesmo agora será possível privar-nos da experiência do amor de Deus presente em Cristo Jesus. Surge então a acção de graças, o pedido de ajuda, o silêncio contemplativo. Para quem nunca fez esta experiência é loucura ou fuga. Para quem a fez é poder e sabedoria de Deus (cf 1 Cor 1, 25). Os seus frutos de vida são “amor, alegria, paz, bondade, fidelidade, mansidão, auto-domínio” (Gal 5, 22-23). E também paciência (a paciência da esperança), perseverança, tolerância, firmeza, um amor apaixonado por esta história humana “que geme e sofre as dores de parto” (Rom 8, 22).
C. F. BARBERA, "Lectura creyente y oración", in: Cuadernos de Oración, nº 39 (1986) - adaptado.

Conversão [metanóia] porque “Eu sou Aquele que sou” (Ex 3, 14)
“Eu sou Aquele que sou” (Ex 3, 14) significa: “Sou parte convosco na Aliança”, “Estou convosco, amo-vos em todas as circunstâncias”. Esta revelação do nome divino institui a Aliança e é a fonte da conversão (voltar) [da metanóia (mudança de mentalidade)] - conversão contínua e radical (não “como que aplicando um verniz superficial” (Evangelii Nuntiandi, n. 20) dos “critérios de julgar, dos valores que contam, (...) das linhas de pensamento, das fontes inspiradoras e dos modelos de vida” (Evangelii Nuntiandi, n. 19). “E (assim) A MINHA IGREJA OPTOU”…


NÓS CREMOS, SENHOR, QUE TU NOS DÁ A MÃO
CADA INSTANTE, CADA DIA;
NÓS CREMOS, SENHOR, QUE TEMOS TEU AMOR
A VIVER DENTRO DE NÓS!
NÓS CREMOS, SENHOR, QUE A TERRA VAI P’RA TI,
CADA INSTANTE, CADA DIA;
NÓS CREMOS, SENHOR, QUE VIVES ENTRE NÓS
NO AMOR QUE NOS UNIU!

1. Quando caem as fronteiras
E se calam os canhões;
Quando a espr’ança florescer
Nós sabemos que Tu vens!
Quando p’ra findar a guerra
Nem vencidos nem vencedores;
Quando a paz vem do amor
Nós sabemos que Tu vens!

2. Quando não há mais impérios
Nem separações raciais;
Quando se pode escolher
Nós sabemos que Tu vens!
Quando o pão chega p’ra todos,
A escola e a habitação;
Quando os pobres são promovidos
Nós sabemos que Tu vens!

3. Quando o salário é justo
E há trabalho p’ra cada lar;
Quando o lucro é dividido
Nós sabemos que Tu vens!
Quando dispensada a esmola,
A justiça triunfar
Verdadeira caridade
Nós sabemos que Tu vens!

4. Quando há chefes responsáveis
E seu lema é só servir
E há p’ra todos liberdade
Nós sabemos que Tu vens!
Se o cristão se compromete
Este mundo transformar;
Quando a igreja tem coragem
Nós sabemos que Tu vens!


E a minha Igreja optou: e ela optou pelo "próximo".
E a minha Igreja escolheu: e ela escolheu o "outro".
E a minha Igreja votou: e ela elegeu "o que está longe".
E a minha Igreja entrou no mundo do "outro".
E entrou, assim, num mundo conflituoso, duro, selvagem,
totalmente diferente do da sacristia.
E ela foi à busca do "outro" nos campos, nas plantações,
nas fábricas, nas escolas, nos escritórios, nos mercados.
E ela consciencializou este "outro".
E ela fez-lhe ver que ele é uma pessoa humana,
uma imagem de Deus.
E ela fez-lhe ver que deve defender a sua dignidade humana.
E..., pouco a pouco, o "outro" começou a levantar a cabeça!

(in: América Latina em prece, Éditions du Cerf, Paris, 1981)
António Samelo

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