segunda-feira, março 20

Apelo

Parece-nos importante demais para ficarmos calados!... Para não dizer!... Para não gritar!...
Devemos rezar!...
Com todos os que quiserem!... Com todos os que acreditarem que a Paz é possível! Porque "Pai e Paz começam com a mesma letra!" (ver post da Celebração de ontem...)
É preciso divulgar (ainda que 18 de Março já tenha passado...)! É preciso acordar!
Aqui fica o

Apelo
Dêem uma oportunidade à Paz!


Três anos passaram sobre a invasão do Iraque e a marcha da democracia, triunfalmente anunciada pela Administração Bush, revela-se um terrível embuste. O Iraque sintetiza bem os danos que as doutrinas neo-conservadoras estão a causar à Humanidade, justificando o expansionismo militar em nome da democracia, torturando em nome dos direitos humanos e usando armas químicas em nome da civilização. Hoje, o Iraque está à beira da guerra civil, e a Paz surge cada dia mais distante.

A invasão do Iraque não trouxe nem a democracia nem a Paz ao Médio Oriente. Israelitas e palestinianos parecem mais longe do que nunca de uma Paz justa e duradoura; nenhum passo democrático se descortina nas monarquias teocráticas do petróleo em relação às mulheres e aos direitos dos imigrantes; no Irão, o regime isola-se e choca o mundo com ambições e revisionismos obscenos; no Egipto, o governo manipula abertamente as eleições pondo a nu a hipocrisia do Ocidente; no Afeganistão reorganizam-se os talibans e o comércio do ópio; de Istambul a Carachi e de Ramallah a Rabat, quem se reforça são os islamistas mais sectários.

Três anos depois da invasão do Iraque, o mundo está mais injusto e muito mais perigoso, à beira da proliferação em cascata de armas nucleares de destruição maciça. A falta às obrigações de desarmamento por parte das potências nucleares é, aliás, um incentivo para que novos actores se tentem armar. As relações internacionais encontram-se reféns desta escalada, do desprezo pelo Direito Internacional, do enfraquecimento das Nações Unidas, e do sacrifício dos Direitos Humanos no altar da «guerra contra o terrorismo».

Cientes de que a resposta à banalização da guerra constitui um indeclinável dever de cidadania, e solidári@s com quant@s, a 18 de Março, por todo o mundo, se vão manifestar pelo fim da ocupação do Iraque, @s signatários

- Exigem a fixação de um calendário de retirada das tropas ocupantes do Iraque, condição de uma solução política que garanta a paz e a unidade do Estado iraquiano.
- Apelam a um acordo político sobre o programa nuclear iraniano, que impeça a sua deriva armamentista, exigindo, simultaneamente, das potências nucleares a responsabilidade de se comprometerem com uma estratégia para o seu próprio desarmamento, como o Tratado de Não Proliferação Nuclear prevê no seu artigo VI.
- Rejeitam a amálgama entre Islão e terrorismo, bem como os revisionismos e incitamentos anti-semitas, que os instigadores do "choque de civilizações", a Oriente e Ocidente, vêm utilizando para preparar as respectivas opiniões públicas, quer para futuras acções militares, quer para novas e mais restritivas políticas quanto à imigração.

Antes que seja de novo tarde demais, mobilizemo-nos! Só a Paz traz a Paz!

Subscrevem
Ana Gomes, Padre Anselmo Borges, Boaventura de Sousa Santos, Domingos Lopes, Elisa Ferreira, Fernando Nobre, Frei Bento Domingues, Isabel Allegro, José Manuel Pureza, Luís Moita, Maria João Seixas, Miguel Portas, Pedro Bacelar Vasconcelos, Viriato Soromenho Marques

domingo, março 19

III Domingo da Quaresma – Dia do Pai

A celebração de hoje foi preparada pelos nossos mais novos...
Começaram por juntar os Pais todos no adro e dedicar-lhes uma canção; dizia-nos assim:

Dia do Pai
Com os dedinhos pintei
e ao meu Pai quero dar
esta charmosa gravata.
Acham que ele irá usar?

Como não tenho a certeza
e pelo sim, pelo não...
à gravata vou juntar
beijos e um chi-coração!

in Música no Jardim de Infância
Letra – Lourdes Custódio; Música – Pedro Falacho, Ambar, 2005


No momento de Kirie escutámos o belíssimo grito de Gilberto Gil e Chico Buarque (1978):

Cálice

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada para a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade

Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um facto consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça


A partilha foi enriquecida com a imagem que El Greco pintou sobre o Evangelho de hoje


El Greco, A Purificação do Templo, 1571-76, Óleo s/ Tela, 117 x 150 cm, Institute of Arts, Minneapolis


Lembrámos, ainda, todos os nossos pais (os que simplesmente estiveram hoje ausentes e os que estão já com o Pai e) e rezámos o Pai Nosso cada um com um ramo de oliveira na mão. Foi esse o gesto de Paz que os nossos filhos nos propuseram porque, justificaram, Pai e Paz começam com a mesma letra!
No final, eles tinham mais uma surpresa: ofereceram aos Pais umas pequenas gravatas que eles próprios moldaram e pintaram.

Foi bonito ver a Sala da Luz mais composta!...

Nota: não se esqueçam que podem comentar, dar sugestões, ... clicando na palavra comentários que aparece no fim de cada post!

domingo, março 12

II Domingo da Quaresma


Rafael, A Transfiguração, cerca de 1516, Óleo sobre madeira, 405 x 278 cm, Roma, Pinacoteca Vaticana

domingo, março 5

I Domingo da Quaresma – Trabalho e Voluntariado


Sandro Botticelli, Cena de Sacrifício Judeu e a Tentação de Cristo, cerca de 1481-82, Fresco, 345 x 555 cm,
Roma, Capela Sistina


Este Domingo a nossa celebração teve participações riquíssimas: para além do testemunho que nos foi enviado, por escrito, pela Margarida Gonçalves (voluntária da AFS-Portugal e médica), contámos com a presença da Gabriela Portugal e da Ana Paula Aveleira, que nos vieram falar do projecto Melhorar a Educação de Infância, na Guiné-Bissau (MEI-GB) em que estão envolvidas e para o qual pedem a colaboração da nossa Comunidade; como foi por elas descrito, é urgente a recolha de materiais lúdicos e didácticos para apetrechar os Jardins de Infância que, através da Fundação Educação e Desenvolvimento, o referido projecto apoia, em Bissau.
Juntamos aqui a imagem do "cartaz" e a carta que elas nos dirigiram:


Ex.mos Senhores
Comunidade de Acolhimento João XXIII
Rua dos Combatentes
3030-181 Coimbra


Assunto: Projecto "Melhorar a Educação de Infância, na Guiné-Bissau" (MEI-GB) – recolha de materiais lúdicos e didácticos

Data: 2006-03-07

A Universidade de Aveiro celebrou um Protocolo de Cooperação com a Fundação Educação e Desenvolvimento, da Guiné-Bissau, para a concretização de acções nos domínios da Educação de Infância e Formação de Recursos Humanos para a Educação.
No âmbito desse Protocolo, desenvolveu-se o projecto "Melhorar a Educação de Infância na Guiné-Bissau" enquadrado nas actividades do Departamento de Ciências da Educação e respectiva Unidade de Investigação, tendo-se realizado várias iniciativas de trabalho com vista a formar, apoiar e acompanhar os educadores do terreno. Neste mesmo contexto, pretende-se levar a cabo um movimento de sensibilização e de recolha de materiais lúdicos e didácticos para apetrechamento de um centro de recursos educativos sediado nas instalações da Fundação Educação e Desenvolvimento, em Bissau.

Nesse sentido, solicitamos a divulgação e apoio à iniciativa, no espaço que vos aprouver, sugerindo como elemento de contacto com a organização do movimento a Dra. Maria do Carmo Lopes.

Ao vosso dispor, apresentamos os nossos melhores cumprimentos.

Gabriela Portugal*
(Responsável p/ Projecto MEI-GB)

Gabriela Portugal: 234 370625 ; gabip@dce.ua.pt



(clicar para aumentar)


Quanto ao testemunho que nos foi enviado, ele também aqui fica para nossa reflexão:

Antes de tudo gostava de vos dizer que nunca senti que a minha participação associativa e de voluntariado estivesse ligada ao facto de não ser crente. Penso que o "não acreditar" não condicionou ou modelou essa participação (será que assim é? – uma questão interessante que fica para mim, a partir da vossa sugestão).

Em traços resumidos, o meu percurso de voluntariado começou aos 17 anos quando participei num programa de intercâmbio (AFS), vivendo 11 meses numa família de acolhimento em Wilmington, Delaware, Estados Unidos da América. Foi um ano emocionalmente intenso, cheio de inquietações e descobertas, um ano difícil mas com muitas alegrias.

Quando regressei a Portugal senti uma grande vontade de partilhar a minha experiência e, de alguma forma, contribuir para que outros a pudessem ter. Para tal, envolvi-me na associação juvenil Intercultura AFS Portugal. Mais do que essa vontade, havia ainda necessidade quase absoluta de estar com os amigos, que tinha entretanto feito e que tinham vivido essa mesma experiência no estrangeiro.

No fundo, o motivo que me levou ao voluntariado foi o afecto, a vontade de manter as relações, de partilhar as angústias, as dúvidas, as conquistas e as readaptações de quem vive uma experiência de imersão cultural.

Do afecto, sinto que fui amadurecendo para a participação política: reflectir as questões da interculturalidade, não só no abstracto, mas trazê-las para o quotidiano – da minha vida, da associação, de outros projectos em que, entretanto, me envolvi...

Aquilo que vivi ao longo dos anos como voluntária da Intercultura foi fundamental para o meu percurso pessoal e profissional. Como já disse, parti da experiência pessoal, comecei pelo incentivo do afecto, cresci então para a reflexão, formação e participação associativa, tentando trazer as questões das minorias, do viver com o diferente, da interculturalidade para a ordem do dia. Mas, sobretudo, tentando desenvolver projectos na comunidade, que modificassem o nosso dia-a-dia, "metendo um pauzinho na engrenagem".

É verdade que esta participação me tirou horas de estudo, de diversão, de namoro, de estar com a família e amigos, mas também me trouxe inúmeras horas de alegria, de novos afectos e relações, de discussão e de "aprenderes", que sinto que aplico hoje, diariamente, na minha profissão e no meu "estar". Não só no que diz respeito às experiências e aprendizagens interculturais propriamente ditas, mas também ao aprender a participar em associação, em coordenar projectos e actividades, no fundo, em actuar na Cidade.

Uma das experiências mais gratificantes em que participei na Intercultura, a título de exemplo do que enunciei antes, foi um projecto que envolvia um grupo de jovens de um bairro social dos arredores de Lisboa, quase todos filhos de imigrantes cabo-verdianos, em conjunto com um outro grupo de jovens irlandeses, de um bairro social de Dublin. Este projecto durou quase dois anos. Ao longo deste tempo, semanalmente, os jovens foram trabalhando questões de educação, cidadania, tolerância, racismo e xenofobia, ou seja, como é ser uma minoria (étnica e/ou social) na cidade. Em dois momentos, os jovens viveram um intercâmbio, com acolhimento nas próprias famílias e partilha de experiências e saberes.

Este projecto foi, depois, ponto de partida para outro, que se prolongou por um ano e meio, na área da saúde comunitária (prevenção de doenças sexualmente transmissíveis) no mesmo bairro.

Isto também para dizer que as experiências se vão entrecruzando e que se criam pontes entre os vários universos – pesssoal, de voluntariado, académico e profissional. Mais uma vez percebo que o sempre me motivou e marcou foram as relações que fui criando, com outros voluntários, jovens dos vários projectos, com colegas da faculdade.

Nos últimos dois anos, a minha vida profissional não me permitiu uma participação maior em espaços associativos – e não me consegui organizar para isso. Sinto falta de estar com outros, num espaço que me ajude a reflectir a minha condição de cidadania.

Espero que, mesmo longe e por escrito, sem possibilidade de partilhar um pouco mais das minhas experiências, isto sirva para de algum modo lançar o vosso debate.

Margarida Gonçalves
Lisboa, Março 2006



Nota: como já deu para reparar, estamos a aprender a inserir imagens e outros materiais no nosso blog... esta já está, graças ao Miguel Marujo, que a partir de Lisboa nos ensinou, via telefone. Fica aquele abraço!

domingo, fevereiro 12

Trabalho e Ambiente

Nesta série de celebrações que dedicamos à reflexão sobre diversas questões do trabalho, propusémos ao José António Raimundo que pensasse sobre o Trabalho e o Ambiente. O texto que ele nos trouxe, e que podemos ler a seguir, foi originalmente publicado em 2004 mas continua plenamente actual. Aqui fica:

Pensar Ambiente é Mudar de Rumo
É lícito defender a ideia de que a radicalidade das preocupações ambientais está sempre relacionada com o distanciamento, no tempo e no espaço, que conseguimos ter em relação à realidade, em relação ao mundo, em relação à vida.
O mesmo acontece com o património histórico, artístico ou arquitectónico, perante o qual o gesto da utilização do dia a dia seria irrelevante se o seu horizonte de vida se situasse em 50 ou 100 anos. No entanto, uma vez que se almeja a eternidade, cada acto de deterioração, por mais pequeno que seja, desde que não tenha uma resposta de auto-regeneração, adquire o carácter de drama histórico. Algum dia, alguma geração deixará de usufruir deste bem, em consequência da repetição de actos banais, até frequentemente cuidadosos, de gerações passadas.
A uma universidade exige-se esta capacidade de compreender os extremos - do instante à eternidade, da mais pequena partícula ao Universo, do mais etéreo fenómeno ao mais rudemente materializável - e conseguir, em simultâneo, contribuir para a melhoria da vida em momentos reais, quase vulgares quando observados com uma curta visão histórica.
É pois, deste modo, que desafios aparentemente menores podem ser profundamente radicais numa perspectiva cósmica. Estão nessa situação as iniciativas básicas em que assentam as políticas ambientais de diversas universidades europeias: a gestão da energia e do consumo de água, a política de transportes, mobilidade e acessibilidade, a política de consumíveis reciclados e recicláveis, o controlo das emissões gasosas e a gestão de resíduos.
Naturalmente que, em simultâneo, e numa outra esfera de preocupações, estão todas as actividades de ensino, investigação e prestação de serviços especializados nos mais diversos sub-domínios das ciências ambientais e, mais recentemente, na área do desenvolvimento sustentável.
No domínio dos princípios e dos objectivos gerais não há desacordos significativos nesta matéria e não custa aceitar que, em Coimbra, a Comunidade Universitária conhece e subscreve estas preocupações básicas. Já no domínio da concretização o percurso é mais acidentado, quer pelas contradições do sistema, quer pelo custo do acto ambiental, quer, ainda, pela sensação de perda, quando é necessário renunciar à solução mais imediata, do papel sempre novo, sempre branco, ou do ar condicionado à medida da sensação de conforto individual. A concretização de desafios tão básicos exige maior partilha de informação, maior valorização social e maior visibilidade institucional.
Na promoção de novos edifícios e equipamentos, a bandeira é "o uso racional da energia", acreditando-se que este, quando levado às últimas consequências e aliado a uma "arquitectura de excelência", é garantia suficiente para que fiquem salvaguardas as maiores preocupações ambientais. Acredita-se, assim, que a preocupação energética não esquecerá a minimização do "custo do ciclo de vida", entendido em toda a sua complexidade e extensão, com início na extracção e transformação de matérias primas, percorrendo o longo ciclo de construção, utilização e desactivação, terminando apenas com o retorno à condição elementar de matéria, no mesmo lado da espiral onde assumimos ter iniciado o processo. Em complemento, é preocupação crescente a garantia da durabilidade dos edifícios e da exequibilidade das acções de manutenção, bem como a utilização racional do solo, privilegiando a alternância de zonas construídas com espaços livres, verdes e permeáveis.
Na reabilitação de edifícios acrescenta-se a preocupação da gestão dos resíduos de construção, cuja selecção começa a ser feita de forma criteriosa, potenciando a sua reciclagem e reutilização, diminuindo as exigências de aterro e reduzindo o risco de contaminação generalizada a partir de pequenas quantidades de resíduos perigosos.
Apesar de não ser possível ignorar integralmente as limitações técnicas e financeiras destas opções, é absolutamente iniludível que os maiores constrangimentos são de ordem cultural. A opção pela promoção de uma construção sustentável implica exigir muito dos projectistas, implica resistir à tentação de avaliar as soluções por mera intuição ou empatia com o modo do traço ou da luz, com a moda ou crédito da tendência que se adivinha, com o arrojo ou a ingenuidade da solução.
Este novo desafio é um gume afiado sobre os arquitectos, sobre os engenheiros e sobre os projectistas em geral. Quem não fizer a conversão radical que lhe permita perceber os constrangimentos de um futuro que não é só seu, e sobre o qual tem direitos limitados mas deveres avassaladores, pode em breve desejar que as suas obras não perdurem para que não fiquem como testemunho futuro duma barbárie de rosto civilizado.
Pensar "ambiente" é sempre "mudar de rumo" porque as nossas metas estão e estarão sempre aquém do desejável, limitadas pela condição da nossa temporalidade. Por isso, o desafio desta breve partilha não é o das grandes acções, que a outro tempo se abordarão, mas sim o das grandes atitudes que o ambiente aguarda sofregamente e que a nossa cultura tarda em aceitar.

José A. Raimundo Mendes da Silva
in Rua Larga – Revista da Reitoria da Universidade de Coimbra, Coimbra, Universidade de Coimbra, trimestral, nº 6 – Outubro 2004
http://www.uc.pt/sdp/rualarga98/subseccoes/detalhe.php?PnID=246

domingo, fevereiro 5

Trabalho e Ética

Na celebração de hoje demos início a um conjunto de reflexões temáticas sobre o Trabalho. Para além disso, pedimos a dois membros da nossa Comunidade que partilhassem connosco o que é o seu trabalho concreto, as angústias e as esperanças, as dificuldades e os desafios que vão sentindo no quotidiano.
A reflexão de hoje centra-se no Trabalho e a Ética e o João Maria André (Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra) escreveu para nós o texto que publicamos a seguir; a Carminho e o Zé Pureza deram-nos o seu testemunho, que também publicamos.



Para uma (Est)Ética do Trabalho

"Trabalho" é uma palavra que, na linguagem quotidiana, emerge na sua riqueza semântica nas mais diversas situações: "Que trabalho tão difícil!", Foi uma carga de trabalhos!", "Entrou em trabalho de parto", "Deu-me muito trabalho!", "É um trabalho criador"... Os exemplos poderiam repetir-se e, em todos eles, encontraríamos pontos de um arco que se desenha na tensão entre a sua origem etimológica ("tripalium" – instrumento de tortura formado por três paus) e o seu alcance antropológico, que remete para as formas de realização do homem como ser finito, carente e inconcluso. Se é esta dimensão antropológica que reclama uma ética do trabalho, são os seus contornos dolorosos que impõem, por sua vez, a inscrição dessa ética no pathos da existência.
Se o homem é um dos seres que de modo mais desamparado vem ao mundo, o trabalho é condição tanto da sua sobrevivência (nos limites da pura condição biológica), como da sua vivência numa realização em que se supera a satisfação das simples necessidades básicas e materiais. Neste sentido, o trabalho é a forma, mais simples mas simultaneamente mais abrangente, de realização do humano, tanto no plano da imanência (por um lado, na interacção com o meio, o ambiente, as circunstâncias, a natureza, e, por outro lado, na interacção com os outros que nos rodeiam ou que connosco interagem à distância), como no plano da transcendência (quer ao nível da transcendência religiosa a que muitas crenças humanas dão o nome de Deus, quer ao nível da transcendência estética, mística ou utópica, desde o fundo misterioso do Ser à humanidade redimida dos projectos libertadores).
É pelo trabalho que se dá a mediação entre o homem e a natureza. Marx reconheceu-o quando, nos seus Manuscritos, identificou no trabalho alienado uma das formas supremas de desrealização do humano. O que significa que uma ética do trabalho é, antes de mais, uma ética da desalienação, ou seja, uma ética que é simultaneamente libertadora e reapropriadora: libertadora da prática do trabalho como um "opus alienum", libertadora da relação com as coisas pelo seu carácter de mercadoria que reconfigura também o trabalho como mercadoria, e libertadora da dimensão escravizante do próprio trabalho. Mas, neste sentido, e consequentemente, uma ética do trabalho é também uma ética da reapropriação: o homem deve eticamente lutar por uma relação humanizante com os objectos em que se materializa a sua pulsão de vida e o seu esforço de existir e com o processo dinâmico dessa interacção que tem o nome de trabalho.
Esta ética da libertação e da reapropriação não deixará de ter implicações na relação que o homem mantém com aquilo que se pode considerar o prolongamento do seu corpo orgâ-nico e inorgânico: a natureza. Por esse motivo, uma ética do trabalho é também uma ética da natureza. E como não há ética da natureza sem a dimensão do belo e da harmonia, não pode haver uma ética do trabalho e da natureza sem uma estética da natureza: o trabalho reconfigura-se eticamente pelo "bom", sendo o bem o que funda a sua estru-turação, organização e efectivação. Mas o trabalho deixa-se também esteticamente pola-rizar pelo belo, não podendo haver um trabalho eticamente bom que não reconduza o homem à pro-dução e coprodução da beleza e à sua contemplação. Se, como diziam os antigos e os medie-vais, tudo o que é a partir do bom e do belo, também tudo o que é ao bom e ao belo retorna.
Mas é igualmente pelo trabalho que se dá a mediação entre o homem e os outros homens. Tudo começa pelo trabalho de parto: na aparente imobilidade da mãe se concentra o esforço para dar existência autónoma ao que fazia parte integrante da sua existência. O trabalho de parto é a situação prototípica de uma ética do trabalho assumida, antes de mais nada, como uma ética do cuidado. Trabalhar é cuidar dos outros e com os outros, na gratuidade plena do gesto, na oferta e no dom de si, sem esperar recompensa ou lucros e sem indagar da sua utilidade mercantil. Mas essa ética do cuidado é também uma estética do cuidado. Não é por acaso que a expressão "trabalho de parto" encontra uma das suas mais eloquentes traduções na expressão "dar à luz". E é também significativo que, desde Platão, uma das linhas mais marcantes da estética ocidental é justamente a estética da luz. E se a situação de parto é uma das mais originais situações de trabalho, pode dizer-se, literalmente, que trabalhar é dar à luz, dar à luz com cuidado, cuidar de dar à luz e cuidar de quem ou de quê se dá à luz. O que implica, ao lado do cuidado, a inscrição da harmonia em todas as situações e relações de trabalho que se estabelecem depois do primeiro trabalho, que é o trabalho de parto. Estar eticamente numa relação de trabalho é estar eticamente numa relação de harmonia com os outros e numa relação de equilíbrio com o seu mundo. Estar eticamente no trabalho é, no mais fundo desta expressão, habitá-lo, morar nele e fazer com ele a nossa morada (ou não significasse a palavra grega ethos habitação ou morada). Uma ética do trabalho é uma ética do cuidado, uma ética dos afectos e uma ética da solidariedade, que se funda no Princípio-responsabilidade (Hans Jonas).
Finalmente, o trabalho é também a forma como o homem se transcende a si próprio: naquilo que cria através do trabalho prolonga-se e preserva-se o homem no mundo, na memória do mundo e na memória dos homens. Mas este processo de transcendência é um processo que nos abala na nossa individualidade egóide e auto-suficiente e nos projecta no mistério do ser que nos ultrapassa. Os místicos chamaram-lhe nada, os santos chamaram-lhe deus, os metafísicos chamaram-lhe Grund, Urgrund ou fundamento, e os artistas chamaram-lhe fonte e plenitude de luz e de beleza. E é aqui que reside o carácter paradoxal do trabalho: ao mesmo tempo que é a nossa afirmação, é também a nossa desafirmação, porque é a nossa projecção no mundo do ser e o reconhecimento da nossa finitude, ou seja, do nosso não-ser. Neste sentido, a ética do trabalho é uma ética da ligação com os outros e com o mundo que somos e sabemos, e com os outros, o Outro, o mundo que não somos nem sabemos: a ética do trabalho é, assim, uma ética da re-ligação, ou seja, desemboca numa dimensão religiosa que, tantas vezes, se funde com a dimensão estética. "Se não sabemos do mundo senão o que dele tivermos feito" (Jorge de Sena), o que nele e dele fazemos mais não é do que o mar profundo e infinito do nosso não saber, que é o saber e o sabor dos nossos sentidos e que é também o sentido do nosso saber. E é curioso que tenha sido para falar desse saber e desse sabor dos sentidos que os modernos criaram a palavra estética. O que nos reforça na nossa convicção de que uma ética do trabalho é uma estética do trabalho: a fruição do seu gozo na desalienação do mundo (libertação do mundo), na desalienação dos outros (libertação dos homens), e na desalienação dos sentidos últimos da nossa existência (libertação suprema do bem a que aspiramos e por que esperamos). Uma ética do trabalho não é apenas uma ética fundada no Princípio-responsabilidade. É também um (est)ética da esperança. Fundada no Princípio-esperança (Ernst Bloch). É uma (est)ética da libertação.

Coimbra, Fevereiro de 2006
João Maria André



Testemunhos

Sinto-me privilegiado por ter o trabalho que tenho. Ensino(-me) a ler e a interpretar a realidade do mundo. Ter como profissão uma paixão é isso mesmo: um privilégio. Eu faço o que gosto. E cada vez gosto mais do que faço.
Mas o meu trabalho é muito difícil. Sou capaz de identificar quatro fontes de dificuldade. A primeira é a da complexidade. Trabalho com escalas mundiais e decifro sinais de guerra e de paz. Nestas coisas, quanto mais se abre o campo de análise mais a complexidade invade o nosso olhar e nos impede o uso de receitas redutoras e cómodas. Daqui advém um segundo factor de dificuldade: a exigência de rigor. Ter que identificar as boas fontes de informação, construir e desconstruir narrativas sobre a realidade, aproximarmo-nos o mais possível da exactidão, encontrar serenidade para fazer tudo isto com elevado profssionalismo e profundidade intelectual é uma tarefa de gigante. A terceira dificuldade é não abdicar de casar conhecimento rigoroso com transformação da realidade. Conheço para mudar, não para conservar. E isso faz-me correr o risco do viés, da paixão, do manifesto. Por fim, a dificuldade da sedução. Ensinar é cativar, é tornar atraente o trabalho de ler e de pensar. Há artes cénicas que quem ensina não pode ignorar.
Eu sou um privilegiado por ter esta profissão. Mas estar à altura deste privilégio é muito difícil.

José Manuel Pureza

domingo, novembro 13

Redescoberta do Cuidado pelo Outro

(Texto lido na celebração de Domingo 13/11/2005)

O cuidado pelo outro, uma expressão comum, reflecte pensamentos e emoções simples: torna os humanos capazes de velar pela Natureza, de se interessarem activamente uns pelos outros, e de manterem a sociedade coesa. É o cuidado pelos outros que motiva atitudes e acções que mostram a sua interdependência, assim como a das comunidades e nações; ninguém está isolado, mas sim consciente de uma fundamental alteridade.
“Cuidar de” significa também apreciar e amar; ocupar-se dos outros, seguir de perto, alimentar. “Cuidar de” implica um compromisso que transcende a emoção e se traduz numa acção que ultrapassa o domínio médico ou humanitário (lugares onde o termo cuidado é usado desde há muito). O cuidado pelos outros acrescenta-se à racionalidade para definir os comportamentos. Cuidar é o oposto da indiferença: implica comunicação e uma situação de parceria em que há dar e receber.
Como valor social, o cuidado pelos outros tem sido uma componente do comportamento em todos os estádios da evolução do ser humano. Os cuidados das mães pelos filhos; a atenção prestada aos vulneráveis, aos doentes e velhos. As grandes religiões que surgiram com as civilizações agrárias deram um valor especial aos valores centrais do cuidado, da caridade, até das esmolas, com especial atenção para com os pobres e destituídos, os doentes, as viúvas e os órfãos. O cuidado pelos outros generalizou a compaixão e a partilha, e algumas das religiões estenderam estes sentimentos para além dos humanos e até toda a Natureza.
E apesar disso, verificamos que, de certo modo, as actividades resultantes do cuidado pelo outro tendem a ser menos respeitadas e menos recompensadas do que a actividade produtiva da humanidade. Pior, são muitas vezes invisíveis (talvez porque estão mais intimamente associadas às mulheres).
A comissão pensou que o cuidado pelo outro não deve permanecer escondido. Mesmo quando nenhum valor monetário está associado ao cuidado pelo outro, a sociedade deve estar ciente do custo que teria de suportar se cada manifestação concreta desse cuidado tivesse que ser comprada. A necessidade de tornar visível o cuidado pelo outro não é apenas um imperativo de justiça para aqueles que ajudam os outros a viver e assim absorvem algumas das pressões que se exercem no tecido social. Se o cuidado pelos outros não é considerado como uma dimensão da condição humana, será mais difícil o reajustamento aos nossos diferentes papéis na sociedade - na família, na profissão e nas responsabilidades cívicas. Continuarão as desigualdades entre homens e mulheres se os rapazes e os homens não se empenharem no cuidado pelos outros como fazem as mulheres.
A ética do cuidado pelo outro tem que manifestar-se tanto pública como privadamente. Acabar com a pobreza, restringir o desperdício dos recursos, promover a qualidade de vida dos outros: estes três pontos são a essência do cuidado. E cuidar do ambiente é fundamental para a qualidade de vida e para a sobrevivência, tanto para as outras espécies como para a própria humanidade. Por isso, podemos dizer que a capacidade de carga da Terra depende da capacidade de cuidado da Humanidade.

(Cap. 7 "Responder às Necessidades" de "Cuidar o Futuro: Um Programa Radical para Viver Melhor", Comissão Independente População e Qualidade de Vida - presidida por Maria de Lourdes Pintasilgo. Lisboa, Ed. Trinova, 1998.)