Na celebração de hoje demos início a um conjunto de reflexões temáticas sobre o Trabalho. Para além disso, pedimos a dois membros da nossa Comunidade que partilhassem connosco o que é o seu trabalho concreto, as angústias e as esperanças, as dificuldades e os desafios que vão sentindo no quotidiano.
A reflexão de hoje centra-se no Trabalho e a Ética e o João Maria André (Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra) escreveu para nós o texto que publicamos a seguir; a Carminho e o Zé Pureza deram-nos o seu testemunho, que também publicamos.
Para uma (Est)Ética do Trabalho
"Trabalho" é uma palavra que, na linguagem quotidiana, emerge na sua riqueza semântica nas mais diversas situações: "Que trabalho tão difícil!", Foi uma carga de trabalhos!", "Entrou em trabalho de parto", "Deu-me muito trabalho!", "É um trabalho criador"... Os exemplos poderiam repetir-se e, em todos eles, encontraríamos pontos de um arco que se desenha na tensão entre a sua origem etimológica ("tripalium" – instrumento de tortura formado por três paus) e o seu alcance antropológico, que remete para as formas de realização do homem como ser finito, carente e inconcluso. Se é esta dimensão antropológica que reclama uma ética do trabalho, são os seus contornos dolorosos que impõem, por sua vez, a inscrição dessa ética no pathos da existência.
Se o homem é um dos seres que de modo mais desamparado vem ao mundo, o trabalho é condição tanto da sua sobrevivência (nos limites da pura condição biológica), como da sua vivência numa realização em que se supera a satisfação das simples necessidades básicas e materiais. Neste sentido, o trabalho é a forma, mais simples mas simultaneamente mais abrangente, de realização do humano, tanto no plano da imanência (por um lado, na interacção com o meio, o ambiente, as circunstâncias, a natureza, e, por outro lado, na interacção com os outros que nos rodeiam ou que connosco interagem à distância), como no plano da transcendência (quer ao nível da transcendência religiosa a que muitas crenças humanas dão o nome de Deus, quer ao nível da transcendência estética, mística ou utópica, desde o fundo misterioso do Ser à humanidade redimida dos projectos libertadores).
É pelo trabalho que se dá a mediação entre o homem e a natureza. Marx reconheceu-o quando, nos seus Manuscritos, identificou no trabalho alienado uma das formas supremas de desrealização do humano. O que significa que uma ética do trabalho é, antes de mais, uma ética da desalienação, ou seja, uma ética que é simultaneamente libertadora e reapropriadora: libertadora da prática do trabalho como um "opus alienum", libertadora da relação com as coisas pelo seu carácter de mercadoria que reconfigura também o trabalho como mercadoria, e libertadora da dimensão escravizante do próprio trabalho. Mas, neste sentido, e consequentemente, uma ética do trabalho é também uma ética da reapropriação: o homem deve eticamente lutar por uma relação humanizante com os objectos em que se materializa a sua pulsão de vida e o seu esforço de existir e com o processo dinâmico dessa interacção que tem o nome de trabalho.
Esta ética da libertação e da reapropriação não deixará de ter implicações na relação que o homem mantém com aquilo que se pode considerar o prolongamento do seu corpo orgâ-nico e inorgânico: a natureza. Por esse motivo, uma ética do trabalho é também uma ética da natureza. E como não há ética da natureza sem a dimensão do belo e da harmonia, não pode haver uma ética do trabalho e da natureza sem uma estética da natureza: o trabalho reconfigura-se eticamente pelo "bom", sendo o bem o que funda a sua estru-turação, organização e efectivação. Mas o trabalho deixa-se também esteticamente pola-rizar pelo belo, não podendo haver um trabalho eticamente bom que não reconduza o homem à pro-dução e coprodução da beleza e à sua contemplação. Se, como diziam os antigos e os medie-vais, tudo o que é a partir do bom e do belo, também tudo o que é ao bom e ao belo retorna.
Mas é igualmente pelo trabalho que se dá a mediação entre o homem e os outros homens. Tudo começa pelo trabalho de parto: na aparente imobilidade da mãe se concentra o esforço para dar existência autónoma ao que fazia parte integrante da sua existência. O trabalho de parto é a situação prototípica de uma ética do trabalho assumida, antes de mais nada, como uma ética do cuidado. Trabalhar é cuidar dos outros e com os outros, na gratuidade plena do gesto, na oferta e no dom de si, sem esperar recompensa ou lucros e sem indagar da sua utilidade mercantil. Mas essa ética do cuidado é também uma estética do cuidado. Não é por acaso que a expressão "trabalho de parto" encontra uma das suas mais eloquentes traduções na expressão "dar à luz". E é também significativo que, desde Platão, uma das linhas mais marcantes da estética ocidental é justamente a estética da luz. E se a situação de parto é uma das mais originais situações de trabalho, pode dizer-se, literalmente, que trabalhar é dar à luz, dar à luz com cuidado, cuidar de dar à luz e cuidar de quem ou de quê se dá à luz. O que implica, ao lado do cuidado, a inscrição da harmonia em todas as situações e relações de trabalho que se estabelecem depois do primeiro trabalho, que é o trabalho de parto. Estar eticamente numa relação de trabalho é estar eticamente numa relação de harmonia com os outros e numa relação de equilíbrio com o seu mundo. Estar eticamente no trabalho é, no mais fundo desta expressão, habitá-lo, morar nele e fazer com ele a nossa morada (ou não significasse a palavra grega ethos habitação ou morada). Uma ética do trabalho é uma ética do cuidado, uma ética dos afectos e uma ética da solidariedade, que se funda no Princípio-responsabilidade (Hans Jonas).
Finalmente, o trabalho é também a forma como o homem se transcende a si próprio: naquilo que cria através do trabalho prolonga-se e preserva-se o homem no mundo, na memória do mundo e na memória dos homens. Mas este processo de transcendência é um processo que nos abala na nossa individualidade egóide e auto-suficiente e nos projecta no mistério do ser que nos ultrapassa. Os místicos chamaram-lhe nada, os santos chamaram-lhe deus, os metafísicos chamaram-lhe Grund, Urgrund ou fundamento, e os artistas chamaram-lhe fonte e plenitude de luz e de beleza. E é aqui que reside o carácter paradoxal do trabalho: ao mesmo tempo que é a nossa afirmação, é também a nossa desafirmação, porque é a nossa projecção no mundo do ser e o reconhecimento da nossa finitude, ou seja, do nosso não-ser. Neste sentido, a ética do trabalho é uma ética da ligação com os outros e com o mundo que somos e sabemos, e com os outros, o Outro, o mundo que não somos nem sabemos: a ética do trabalho é, assim, uma ética da re-ligação, ou seja, desemboca numa dimensão religiosa que, tantas vezes, se funde com a dimensão estética. "Se não sabemos do mundo senão o que dele tivermos feito" (Jorge de Sena), o que nele e dele fazemos mais não é do que o mar profundo e infinito do nosso não saber, que é o saber e o sabor dos nossos sentidos e que é também o sentido do nosso saber. E é curioso que tenha sido para falar desse saber e desse sabor dos sentidos que os modernos criaram a palavra estética. O que nos reforça na nossa convicção de que uma ética do trabalho é uma estética do trabalho: a fruição do seu gozo na desalienação do mundo (libertação do mundo), na desalienação dos outros (libertação dos homens), e na desalienação dos sentidos últimos da nossa existência (libertação suprema do bem a que aspiramos e por que esperamos). Uma ética do trabalho não é apenas uma ética fundada no Princípio-responsabilidade. É também um (est)ética da esperança. Fundada no Princípio-esperança (Ernst Bloch). É uma (est)ética da libertação.
Coimbra, Fevereiro de 2006
João Maria André
Testemunhos
Sinto-me privilegiado por ter o trabalho que tenho. Ensino(-me) a ler e a interpretar a realidade do mundo. Ter como profissão uma paixão é isso mesmo: um privilégio. Eu faço o que gosto. E cada vez gosto mais do que faço.
Mas o meu trabalho é muito difícil. Sou capaz de identificar quatro fontes de dificuldade. A primeira é a da complexidade. Trabalho com escalas mundiais e decifro sinais de guerra e de paz. Nestas coisas, quanto mais se abre o campo de análise mais a complexidade invade o nosso olhar e nos impede o uso de receitas redutoras e cómodas. Daqui advém um segundo factor de dificuldade: a exigência de rigor. Ter que identificar as boas fontes de informação, construir e desconstruir narrativas sobre a realidade, aproximarmo-nos o mais possível da exactidão, encontrar serenidade para fazer tudo isto com elevado profssionalismo e profundidade intelectual é uma tarefa de gigante. A terceira dificuldade é não abdicar de casar conhecimento rigoroso com transformação da realidade. Conheço para mudar, não para conservar. E isso faz-me correr o risco do viés, da paixão, do manifesto. Por fim, a dificuldade da sedução. Ensinar é cativar, é tornar atraente o trabalho de ler e de pensar. Há artes cénicas que quem ensina não pode ignorar.
Eu sou um privilegiado por ter esta profissão. Mas estar à altura deste privilégio é muito difícil.
José Manuel Pureza
domingo, fevereiro 5
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