sexta-feira, março 30

Igreja portuguesa: Das inquietações, às perguntas; do nosso desconforto à nossa responsabilidade.

Pedimos ao José Vieira Lourenço que partilhasse connosco os apontamentos da reflexão que a Comunidade promoveu e em que tivemos o apoio do Anselmo Borges, do António Marujo, do José Dias da Silva e da Paula Abreu, com a moderação do José Pureza.
A Sala da Luz esteve cheia... de inquietações e de responsabilidade, de desconfortos, mas também de alegria e de esperança.



Já demos conta, nas mais diversas situações, das nossas inquietações e do nosso desconforto relativamente à Igreja portuguesa. Mas também sabemos da nossa responsabilidade e estamos cientes de que às vezes formulamos perguntas incómodas ou desafiantes. Alguém nos chamou comunidade de risco. E nós até não convivemos mal com o título, já que a capacidade de aceitar o risco e o desafio é uma das maiores marcas de qualquer ser humano.

No dia 27 de Março de 2007, juntámos ao serão um grupo de amigos que connosco quiseram partilhar as suas inquietações e perguntas. Estiveram connosco o Zé Dias da Silva, a Paula Abreu, o António Marujo e o Anselmo Borges. E a moderar o debate esteve o Zé Manuel Pureza.

Dado o pontapé de saída pelo moderador, que recordou as nossas inquietações e o nosso desejo infinito de procura, usou da palavra o Zé Dias que começou por defender que a Igreja portuguesa ainda não percebeu o que é estar no século XXI. Duas grandes dificuldades contribuem para isso: a falta de formação e a falta de diálogo. As consequências destas faltas são claras: temos dificuldade em descobrir quem somos (o problema da identidade); temos dificuldade em discernir e consequentemente temos dificuldade em cumprir a missão a que fomos chamados. Se há falta de diálogo não podemos assacar as culpas só à hierarquia. A culpa tem de ser repartida entre leigos e hierarquia, embora esta muitas vezes contribua exemplarmente para isso com a sua postura de desconfiança em relação aos leigos e com o seu comportamento recorrente que podemos sintetizar na velha máxima latina: Roma locuta, causa finita (isto é Roma, falou, está falado, a causa acabou e não se discute mais!). A solução, propõe o Zé Dias, seria instaurar o diálogo entre todos, para o que muito contribuiria a existência de uma opinião pública forte dentro da Igreja. Só com essa opinião pública activa se aplicaria o sensus fide (o sentido da fé) de que fala a constituição Lumen Gentium do Concílio Vaticano II e seria possível superar uma comunicação que muitas vezes é de sentido único. Convém recordar, acrescentou o Zé, que o povo de Deus não pode ser apenas um receptor de ordens. E enquanto a Igreja não fôr capaz de superar um certo autismo, enquanto não ultrapassar certos problemas internos, enquanto não fôr capaz de falar uma linguagem do nosso tempo, que seja inteligível por todos os homens e mulheres, não cumpre cabalmente a sua missão. Por outro lado a Igreja tem de perceber que não pode ter soluções para tudo e que cada vez estamos mais longe da máxima: fora da Igreja não há salvação. É que de facto, fora da Igreja também há salvação e a Igreja só tem a lucrar quando fôr capaz de desenvolver uma pastoral mais criativa e inovadora, respeitando o que há de bom no coração de cada cultura. E por isso uma Igreja normativa e doutrinária, apostada no sentido único, deve hoje ceder urgentemente o lugar a uma Igreja plural que consiga abarcar tudo o que de bom exista nos corações humanos. Quando fizer isto, a Igreja ganhará outra credibilidade e outro rigor e aprofundará ainda mais a sua fé.

O testemunho seguinte foi-nos oferecido pela Paula Abreu que começou por recordar que o seu olhar não pode ser entendido se não considerarmos o lugar de que fala: ela não pode fugir à sua formação de socióloga. Começou por recordar que os censos nos dizem que cerca de 90% da população é católica. Em 2001, 84,5 % dos portugueses declara-se católico. Mas será que esta realidade numérica corresponde à verdadeira realidade? É que uma coisa são estes 84,5 que se declaram católicos e outra coisa são os indicadores de prática e de frequência da Igreja. E o modelo torna-se ainda mais complexo se considerarmos alguns indicadores cruzando com outras respostas dos inquéritos e que são relativas a valores ou a crenças. Daí que a Paula pergunte: Como é que é possível que a Igreja portuguesa não se questione sobre estes valores? Quando é que a Igreja portuguesa entende que para muitos ser católico é apenas um traço duma matriz cultural? Será que estes dados sociológicos não deviam merecer, da parte da Igreja, um estudo e análise mais profunda? Ou a Igreja (portuguesa e a igreja em geral) pode continuar a desconfiar duma disciplina como a Sociologia? E quando é que a Igreja portuguesa entende que a sociedade contemporânea é cada vez mais pragmática? Provavelmente quando o entender não ficará tão surpreendida com os resultados de alguns referendos, como por exemplo deste último sobre o aborto.

O António Marujo começou por nos brindar com uma declaração que nos deve envaidecer: aceitou o convite porque a amizade assim o ditou! E recordou as comunidades dos primeiros cristãos que não tinham estrutura (nós temos hoje estrutura a mais!) mas que eram espaços onde a palavra amizade e solidariedade tinham profundo sentido. E a Igreja devia, segundo ele, continuar a ter essas profundas marcas. Mas a portuguesa nem sempre tem sido e às vezes parece muito distraída e até ignorante relativamente ao 1/5 dos portugueses que vivem com dificuldade. Usando sempre um tom coloquial e vivencial, António Marujo citou-nos alguns exemplos e testemunhos que considerou marcantes e que nos podem servir de farol.
Por isso nos falou da experiência radical de Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), teólogo protestante, executado pelo nazismo, defensor de um cristianismo de desnudamento total e radical na experiência do outro que nos prefigura sempre Jesus Cristo. Por isso nos recordou os belos exemplos do Irmão Roger, defensor duma Igreja cada vez mais ecuménica e aberta ou o cativante exemplo de Martim Luther King, esse sonhador dum mundo novo mais justo e mais fraterno ou ainda a experiência dum Bispo da Igreja católica melquita (Elia Shakur) que nos mostra que apesar das diferenças, judeus, palestinianos, católicos e árabes podem viver solidariamente juntos, ou ainda a experiência das sementes da paz criadas pela obra de Moamed Yunus.

E por fim tivemos o testemunho do padre, filósofo e teólogo Anselmo Borges, nosso convidado já noutra ocasião. Para Anselmo Borges toda a religião tem no seu início uma experiência de vida. E todas as religiões procuram indicar-nos o caminho para a vida eterna, que temos de entender hoje como uma procura de vida humana com sentido, com horizonte. E logo aqui a Igreja católica tem de entender que não pode ser o único farol que indica aos humanos a vida eterna. Há outros olhares. Há outras perspectivas. Como os próprios evangelhos que são afinal quatro perspectivas, quatro horizontes, um pouco descaracterizados ao longo dos séculos. E se calhar o primeiro golpe que descaracterizou o evangelho foi a constantinização da própria eclesia nascente. E depois deste golpe veio facilmente a dogmatização e a necessidade duma forte hierarquização que conduziu forçosamente à coisificação de tudo. E talvez seja aqui que começam os tais paradoxos, que ainda hoje se arrastam, e que nos dão conta duma Igreja de massas muito preocupada com o número de inscritos, com número de praticantes, enfim, uma Igreja mais quantitativa do que verdadeiramente qualitativa. Mas curiosamente, como dizia o nosso convidado, esta é, paradoxalmente, uma Igreja que canoniza facilmente os três pastorinhos, mas que tem mais dificuldade em canonizar o Padre Américo! A Igreja, por essência, é plural. Ela é por isso eclesia, povo convocado, e tem também raiz no grego legein, reunião na diferença. Ora, esta igreja de reunião na diferença tem de entender que há um só mundo mas que há muitas perspectivas, muitos modos diferentes de procurar e alcançar a vida eterna. Só este pluralismo eclesial, só esta superação da cisão entre a Igreja e o mundo, criarão condições para termos uma Igreja Viva e para que o projecto de Jesus Cristo aconteça verdadeiramente.

Seguiu-se depois o momento do debate, mas confesso não ser capaz de registar tudo o que se disse. Primeiro, porque não tirei notas suficientes. Depois, porque me parece que tudo o que foi dito ou mesmo aquilo que não foi dito e podia ter sido dito, foi apenas um reforço destes quatro tocantes testemunhos.
O nosso obrigado à Paula, ao Zé Dias, ao António Marujo, ao Anselmo Borges e ao Zé Manuel Pureza.
José Vieira Lourenço

domingo, março 25

O Deus de Jesus é um Deus frágil e “inútil”: o Deus das surpresas!

5º Domingo da Quaresma - Ano C

Um dia entre as montanhas

(Ricardo Cantalapiedra)


1. Um dia entre as montanhas apareceu um Peregrino, apareceu um Peregrino.
Aproximando-se de todos acariciava os pequeninos, acariciava os pequeninos.

IA DIZENDO PELOS CAMINHOS:
AMIGO VEM! SOU TEU AMIGO! (bis)

2. Suas mãos não empunham armas, Suas palavras são de vida, Suas palavras são de vida.
Chorando com os que choram, comparte a alegria, e comparte a alegria.

3. Reparte o pão entre todos, a ninguém nega o Seu vinho, a ninguém nega o Seu vinho.
Está perto dos que O procuram e consola os mendigos, e consola os mendigos.

4. E aqueles que O viam contavam aos seus vizinhos, contavam aos seus vizinhos:
Anda um Homem p’las estradas que quer ser nosso Amigo, que quer ser nosso Amigo;
nda um Homem p’las estradas que leva a Paz conSigo, que leva a Paz conSigo.


“E o Verbo fez-se carne” (Jo 1, 14),
isto é, fez-se débil, frágil, limitado (significado de “sarx”=“carne” em S. João).

“Tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus:
Ele, que é de condição divina, (…) esvaziou-se a si mesmo,
assumiu a condição de servo, (…) humilhou-se
e foi obediente até à morte e morte de cruz!” (Fl 2, 5-6.7.8).

Primeira surpresa: fragilidade. O Deus revelado por Cristo Jesus comporta-se não só de modo contrário às previsões humanas, mas também de modo diferente do que previam os escribas e os fariseus. A uma religião reduzida à justiça da pessoa humana e à interpretação de escribas e fariseus, Jesus opõe uma fé baseada na misericórdia divina: Deus é muito maior que o pecado de quem errou e não condena ninguém - que surpresa para a mentalidade dos escribas e fariseus e até para a mentalidade humana!
As simpatias de Jesus e do Deus por Ele manifestado são pelos pecadores, os desprezados, os "excomungados" do seu tempo, aqueles com quem as pessoas de bem não ousavam conviver para não se contaminarem: o Deus que Jesus vem “dizer” e “mostrar” é o Deus dos pobres e dos desprotegidos, o Deus frágil, acolhedor e solidário com todos os que estão de mãos vazias - no evangelho de hoje (cf Jo 8, 1-11) é acolhedor e solidário com uma mulher apanhada em adultério que devia, segundo a Lei, ser apedrejada: apresentada a Jesus para que decida sobre o que fazer, Ele faz silêncio…, interrompe-o («quem de entre vós estiver limpo atire a primeira pedra!»)... e volta ao silêncio… libertador para a mulher e provocador nos escribas e fariseus de um silêncio completo, envergonhado e espantado com a fragilidade de Deus.
Esta abertura de Cristo Jesus e do Seu e nosso Pai a toda a humanidade pecadora, oferecendo a salvação a todos, encontra resistência e suscita escândalo ainda hoje. De facto, nos nossos dias ainda existe uma tendência a fechar-se em pequenos oásis de fervor religioso, a desejar uma Igreja feita de "puros"!...
Outra surpresa: “inutilidade”. O Deus revelado por Cristo Jesus é o Deus da gratuitidade, para quem a pessoa humana é o mais importante e em relação à qual tem sempre a iniciativa primeira.
A propósito, não resisto a citar (e a subscrever) um testemunho muito belo de Joseph MOINGT, jesuíta e teólogo católico francês, inserido numa obra (que aconselho vivamente!) com um título sugestivo: AA. VV., A mais bela história de Deus. Quem é o Deus da Bíblia?, Edições ASA, Porto, 19982, pp. 121.122-124.125.166-167 (obra que contém ainda o testemunho de um assiriologista e de um rabino filósofo). Interrogado, Joseph Moingt vai dizendo:
No começo da sua primeira Carta aos Coríntios (capítulo 1, versículo 23), escrita por volta do ano 55 da nossa era, Paulo afirma que «Cristo crucificado é escândalo para os judeus e loucura para os pagãos».
Onde está o escândalo, onde está a loucura? Não resultam do facto de Jesus atacar a religião do seu povo. Não era o único a fazê-lo. Resultam, antes, de ele desordenar, destruir e, na minha opinião, continuar a desordenar e a destruir as referências a que as pessoas religiosas costumam conceder a confiança delas. A liberdade da sua palavra e da sua busca de Deus desestabilizava as instituições religiosas, lançava o descrédito sobre as práticas religiosas demasiado seguras de si mesmas; desviava o curso das tradições religiosas recebidas e aceites.

Esse questionamento da religião não será paradoxal? Jesus era um homem religioso!
A religião tende sempre a colocar-se no lugar de Deus, a obrigar as pessoas a passar por ela para encontrarem Deus. No entender de muita gente, encontra-se Deus no culto ou nas cerimónias religiosas, e em nenhum outro lado. A religião reduz-se assim às obrigações e às tradições religiosas, com as quais se julga ter acesso a Deus ou contentar Deus. Foi com uma tal concepção religiosa que Jesus rompeu. (…)
O amor e a justiça para com o próximo são o amor a Deus e vêm substituir todos os preceitos da legislação judaica, a Tora no seu conjunto.
É isto que produz a ruptura e vai, inexoravelmente, conduzir ao processo (da Sua morte). Tanto mais que outros elementos do ensinamento de Jesus criticam igualmente a religião. Assim, ele recomenda a cada um que procure a vontade de Deus, como se esta não estivesse já dada e escrita na Lei. Convida cada um a orar na intimidade do seu coração, como se o Templo já não fosse o lugar privilegiado da oração, o lugar onde a oração é acolhida por Deus. Pede, aliás, que todos se reconciliem com o próximo antes de irem orar no Templo. Ainda por cima, parece anunciar a destruição do Templo e substituir-se ele próprio ao Templo: palavras perigosas, que desempenharão um papel essencial na altura do seu processo, pois é uma autêntica blasfémia.
Na realidade, e seja qual for a porção de palavras integradas no texto evangélico ou endurecidas após a morte de Jesus, tem-se a impressão de que, desde o início, o conflito que irá levá-lo ao processo e à morte se trava em volta da interpretação da religião. Em Mateus, Jesus comenta a Lei, em especial no célebre «Sermão da Montanha» (capítulos 5 a 7). Mas fá-lo sob uma forma muito crua para os seus interlocutores: «Ouvistes o que foi dito... Eu, porém, digo-vos...» Mateus não inventou certamente esta passagem. Além disso, de uma maneira geral, Jesus tem pouca estima pelo clero, os sacerdotes, os doutores da Lei: chega mesmo a provocá-los e eles devem ter-se sentido altamente depreciados por Jesus. Acabarão por pedir a sua condenação à morte. Mas, para lá deles, foi a religião que condenou Jesus à morte.

A religião condenou Jesus à morte?
Sim, no processo e na morte de Jesus, vislumbro uma saída de Deus para fora da religião, e uma entrada de Deus no mundo profano dos homens. Esta saída e esta entrada serão ainda acrescidas quando, no momento do Pentecostes, o Espírito «se derrama por toda a carne» ao descer não só sobre os judeus, mas também sobre os pagãos, e se profana, por assim dizer, na carne de todos os homens, inclusive dos homens impuros. Eis, para mim, a Boa Nova: Deus sai do recinto do sagrado onde estava encerrado. Já não se acha confinado em lugares (a montanha, o templo); já não nos relacionamos com Ele unicamente por meio de sacrifícios ou da obediência às suas leis. Deus liberta-nos do peso da religião e do sagrado, com todos os terrores que a tal estão ligados e todas as servidões que daí decorrem. (…)
Eu diria mesmo: o homem pode libertar-se do culto de Deus, pois Deus não precisa disso. De resto, nunca precisou e não o exige. O melhor culto que se pode prestar-Lhe é o serviço do próximo, o amor aos outros, a justiça feita a todos, na esteira do próprio Jesus. Eis o Evangelho, ou seja, traduzido literalmente, a «Boa Nova».

Poderíamos então dizer que a religião chega ao fim?
A religião, sim, mas no sentido em que a defini anteriormente. A meu ver, a novidade cristã está no facto de a salvação ser alcançada na vida profana; não depende do acatamento dos inumeráveis preceitos de Deus, mas do serviço prestado ao próximo. Tornarmo-nos servidores dos outros: tal é a via do Evangelho. (…) É também uma mensagem de salvação universal, visto não estar ligado a qualquer culto e não rejeitar ninguém da salvação: é salvo todo aquele que se constitui próximo de todos os próximos, a exemplo do próprio Jesus. Em certos casos, isto pode requerer o sacrifício da nossa vida, indo assim muito longe... (…)

O que é Deus numa vida humana? Afinal de contas, para que serve Ele?
Para que serve Deus? Deveríamos começar por desembaraçar-nos dessa ideia de que Ele é «útil». Não, Ele não é um objecto «útil», e ainda menos hoje, nas condições do mundo moderno, do que ontem. É o ser gratuito por excelência, que nem sequer nos impõe a sua presença. Mas quando sentimos em nós esta presença, podemos fazer a experiência da gratuitidade, da alegria, da bondade.
Neste sentido, as coisas invertem-se. Para os que compreenderam que a existência é gratuitidade, Deus torna-se soberanamente indispensável, pois é Ele que de modo permanente nos coloca em tal sentimento de gratuitidade: arranca-nos a tudo o que nos «prende», impede-nos de nos absorvermos nas coisas do mundo, de açambarcar os objectos dele, de nos servirmos primeiro em vez de estar ao serviço de todos.
A ideia de Deus, ou a fé n’Ele, dá assim ensejo a uma resistência. Permite-nos idealizar e construir uma humanidade que é, por vezes, contrária aos modelos que nos propõem e que nós próprios temos em mente. Contrária, em particular, aos modelos que desejaria impor-nos uma humanidade que se desembaraçou de Deus — sem, no entanto, ser meu intuito acusar, nem ao de leve, aqueles para quem Deus já não conta. Relativamente a eles, aliás, o importante não é mostrar que «Deus conta», coisa que fazem com inépcia, ainda hoje, muitos «missionários». Mais valeria tentar fazer entender este sentimento de gratuitidade que a existência de Deus proporciona: talvez se restituísse, assim, algum crédito a Deus...
Não que eu julgue indispensável, em si mesmo, que os homens pensem em Deus para serem salvos: podem sê-lo de outra maneira. Mas, para viver uma vida humana, concebida segundo o modo da liberdade de espírito, acho, em compensação, que é preciso chegar a esse sentimento da gratuitidade da existência. Se Deus «serve» para alguma coisa, é essencialmente para isto, talvez unicamente para isto.

Onde estão os profetas
(Ricardo Cantalapiedra)

Onde estão os profetas
Que noutros tempos nos deram
As esperanças e forças para andar
Onde estão os profetas
Que noutros tempos nos deram
As esperanças e forças para andar... para andar

Refrão
E NAS CIDADES
E NOS CAMPOS
ENTRE NÓS ESTÃO (bis)
NA CIDADE - ONDE ESTÃO
E NO MAR - ONDE ESTÃO
NA CIDADE - ONDE ESTÃO... ONDE ESTÃO

Simples coisa é a morte
Difícil coisa é a vida
Quando não tem sentido já lutar
Onde estão os profetas
Que noutros tempos nos deram
As esperanças e forças para andar... para andar
Refrão

Ensinaram-nos normas
Para nos suportarmos
E nunca nos ensinaram a amar
Onde estão os profetas
Que noutros tempos nos deram
As esperanças e forças para andar... para andar
Refrão
António Samelo

sexta-feira, março 23

Ainda se mantém a interdição da carne nas sextas-feiras da Quaresma?

Um pouco de hermenêutica para distinguir o “depósito da fé” e a “forma”, isto é, a cultura (em sentido antropológico-cultural - cf Evangelii Nuntiandi, n. 19) de viver esse “depósito”

Orientação fundante, originária: Mt 6, 1-6.16-18 (os versículos 7-15 apresentam-nos o Pai-nosso) que abrange todo o nosso ser em relação
* com os outros… e a natureza (“esmola” = partilha),
* com Deus (“oração”) e
* connosco (“jejum”).

A pastoral da Igreja teve e ainda tem muito a marca da ruralidade e um pouco de “feudalismo”!...

Até aos anos 60 do século passado, uma refeição de carne era uma refeição de ricos (eu ainda sou do tempo em que um frango assado no forno era só uma vez por ano na festa do padroeiro!) e o peixe era a refeição dos pobres…

Então, nas sextas-feiras da Quaresma não se comia carne (que era a refeição dos ricos) para ir criando o espírito de partilha com os mais necessitados, concretizado no valor monetário dessa refeição. Nas restantes 6as feiras do ano podia-se comer carne desde que se pagasse a bula… (já abolida pela Igreja…).

Hoje: uma refeição de carne é mais barata do que uma refeição de peixe… (por isso, não tem sentido nenhum uma pessoa numa sexta-feira da Quaresma não comer uma refeição de carne e comer uma refeição de marisco, por exemplo…) - o que interessa é o espírito e não a letra.

Assim, em união com a Paixão do Senhor Jesus e em espírito de conversão mais visível, nas sextas-feiras da Quaresma deve escolher-se uma alimentação simples e pobre, que poderá concretizar-se em várias formas.... (cf Normas da CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA em 28-01-1985).
No meu caso, a carne para mim é o tabaco; para outros pode ser o vinho; para outros o chocolate; para outros o automóvel (como lembraram os Bispos alemães!) … - cada um é que sabe qual a forma para ir criando mais espírito de partilha e um estilo de vida simples e pobre “ao jeito de Jesus de Nazaré” (cf 1º Domingo da Quaresma).
António Samelo

domingo, março 18

Salvos pelo amor do Pai que espera o regresso do filho. Amor maior e mais forte do que o pecado

4º Domingo da Quaresma - Ano C


Salvos pelo amor do Pai que espera o regresso do filho.
Amor maior e mais forte do que o pecado


Não é fácil aceitarmo-nos como pecadores. Geralmente tentamos recusá-lo, e alguns acreditam que o conseguem; mas, de repente, sentimos, na nossa vida e na do mundo que nos cerca, uma profunda culpabilidade: guerras e exploração, ódio racial e fome, incapacidade de sermos nós mesmos, de amar o outro desinteressadamente, de perdoar. Uma história de pecados pessoais e pecados de um povo.
À luz da fé, o pecado da pessoa surge sobretudo como uma recusa de amor, um afastamento da corrente do amor de que Deus é a fonte. Mas Deus manifesta-se infinitamente maior do que a recusa que lhe opomos; vai ao encontro da pessoa mesmo no seu pecado; perdoando, vence o ódio e dá início à história da misericórdia, da humanidade reconciliada.

Jesus é o início de uma nova e singular história de perdão: declara não ter vindo “para condenar o mundo, mas o salvar” (Jo 12, 47); declara ter vindo não para os que se crêem justos, mas para os pecadores. Toda a vida de Jesus, especialmente a Sua morte na cruz, foi expressão de uma misericórdia sem limites.
Os privilegiados da misericórdia, os preferidos de Jesus, são os pobres, as mulheres abandonadas, os estrangeiros, isto é, os marcados por uma interdição e repelidos pela sociedade. Para Jesus, o filho pródigo é sempre esperado. Essa atitude provoca o espanto e a indignação dos fariseus - cf Lc 15, 1-3.11-32.

Um comentário sobre Lc 15, 1-3.11-32
A parábola é conhecida como «do filho pródigo». Este título não é bom. A história não fala só do filho mais novo; há o irmão mais velho, que ocupa toda a segunda parte, e há, sobretudo, o pai, que é sem dúvida a personagem mais importante. Que tal, então, um título assim: “Um pai e dois filhos que não o entendiam»?
Para compreender o sentido da parábola, é importante saber a quem foi dirigida. Os vv. 2-3 dão-nos a resposta: «Os fariseus e os escribas criticavam Jesus e diziam: Este acolhe os pecadores e come com eles. Ele, então, contou-lhes esta parábola...».
O objectivo de Jesus não era, portanto, convencer os pecadores a deixar o mau caminho. Era aos fariseus, aos «justos», que Ele queria dar uma lição.
Na parábola, estes são representados pelo irmão mais velho: observavam fielmente todas as leis, desprezavam os outros, consideravam-se perfeitos, não aceitavam sentar-se à mesa com os pecadores e condenavam aqueles que, como Jesus, eram amigos desta categoria de pessoas. Estes cavalheiros deviam compreender que estavam a correr o grande risco de ficar fora da festa, se não mudassem rapidamente a sua maneira de pensar e não se conformassem com a do Pai.
Vamos, agora, comentar a história. O irmão mais novo, certo dia, deixou a casa. O pai não fez resistência, não disse uma palavra. Este é o sinal do respeito que Deus tem pela “liberdade” do homem.
Nas nossas famílias existe o mesmo respeito pela liberdade dos filhos que alcançaram a maioridade?
Porque é que se foi embora? É difícil dizer. Um dos motivos deve ter sido o facto de que na casa do pai não podia fazer aquilo que queria. As disposições e os conselhos do pai deviam irritá-lo bastante. Deviam parecer-lhe uma injusta limitação da sua liberdade.
Este pode ser o motivo pelo qual muitas pessoas ou não querem saber nada da Igreja ou não querem entrar nela ou saem dela. Seria injusto, porém, afirmar que esse é o único motivo. Os irmãos mais velhos que ficam em casa têm, geralmente, muita culpa nestas saídas. O ambiente que criam na casa do Pai é, às vezes, intolerável e pouco conforme com os projectos do Pai. Constroem uma religião sem amor, feita de exterioridades e formalismos, uma liturgia, que é só teatro, porque desligada da vida do povo. Celebram a Eucaristia no meio de divisões, de ódios, de críticas, de conversas mesquinhas e de ruptura entre a fé e a vida. É evidente que, na casa do Pai o ar torna-se muito pesado, as pessoas não conseguem respirar e é natural que alguém decida ir embora.
Talvez tenhamos de examinar honestamente quais foram as nossas responsabilidades no abandono das pessoas que nos deixaram e só depois preocupar-nos com eles.
Longe da própria casa, no entanto, o filho mais novo não encontrou a felicidade que procurava... deu conta que estava a passar mal («Eu, aqui, morro de fome!»)… caiu em si.
Mas estava ou não arrependido daquilo que tinha feito?
Parece que não estava. A parábola só diz que ele tinha fome e que, para não morrer, arranjou umas frases bonitas para convencer o pai. Não há nada que faça pensar no arrependimento ou no desgosto por ter magoado o pai e o irmão.
Aliás, era mesmo este o aspecto escandaloso de toda a questão. Se Jesus tivesse acolhido os pecadores arrependidos, não teria feito nada de estranho. Aquilo que irritava os fariseus era o facto de Jesus acolher e jantar com os pecadores, que continuavam sendo pecadores.
É este, acho eu, o ponto mais importante de toda a parábola. Jesus mostra que Deus não gosta só dos bons e dos pecadores arrependidos. Ama a todos e sempre, sem pôr condições. Alguns, encontrando Jesus, mudaram de vida, mas a maioria ficou como era; e Ele continuou a ser seu amigo. Não foi Ele chamado «o amigo dos publicanos e dos pecadores» (Lc 7, 34; cf Mt 9, 12-13)?
Cabe então perguntar: «Até quando ficará Jesus amigo dos pecadores?» Haverá uma data e uma hora em que Ele mudará, de repente, os Seus sentimentos para com eles, tornando-se seu juiz severo?
Pois claro, dirão alguns, será no dia da morte. Mas não acham bastante estranha esta mudança de coração? Não seria uma espécie de cilada, uma traição por parte do melhor amigo?
Só que, diz-se ainda, não será Cristo a condenar; será o próprio pecador a condenar-se sozinho.
Ah, Deus santo! Corno é possível que o encontro com o Senhor, em vez de iluminar e purificar o homem, o torne eternamente teimoso no mal e na infelicidade? Como é possível que chegue o tempo em que o amor de Cristo seja incapaz de salvar um amigo? Como é possível que, a certa altura, o mal ganhe (eternamente!) contra o amor de Deus?
Este desejo de ver condenado quem fez mal nasce dos sentimentos de vingança (e, porque não, de sadismo) que se encontram no coração do homem. Os «justos», isto é, os irmãos mais velhos, no fundo do seu coração, estão convencidos de que o irmão que peca está a gozar da vida e, por isso, sentem ciúme e inveja. Não dão conta de que mesmo que não houvesse paraíso nem inferno, a vida melhor e mais feliz seria sempre a que está conforme ao projecto do Deus de Cristo Jesus. Não compreendendo isso, procuram fazer sofrer ainda mais o irmão que já sofreu bastante longe da casa do Pai.
Não repetem estes «justos» as atitudes do irmão mais velho? As palavras que este filho disse ao pai estavam todas certas (um pouco malcriadas, mas certas). Só havia um problema: depois de tantos anos, ele não tinha percebido ainda nada do coração do pai. Aliás, não é por acaso que, ao longo da parábola ele nunca lhe chama «pai», enquanto o filho mais novo por 5 vezes fala do seu «pai».
«Filhos mais velhos» são todos os cristãos que, depois de muitos anos de catequese, estão convencidos de que sabem tudo sobre Deus. Afinal, ainda não chegaram a compreender a coisa mais importante: que Deus é Amor e que salva a pessoa toda e todas as pessoas.
Mais do que «filhos» estes são «empregados». Só sabem trabalhar e cumprir ordens. Deus, para eles, não é Pai, é dono. Relacionam-se com Ele como servos dum patrão. Não recebem nada de graça: ganham, merecem. Conquistam o paraíso com muitos esforços. Como haveriam de gostar que, no fim, o Pai deixasse entrar a todos?...
Nem são filhos, nem tampouco são irmãos. Os homens que falharam, para eles, já não são irmãos. Veja-se bem como o filho mais velho fala ao pai; não diz «este meu irmão», diz: «este teu filho», como se nem sequer o conhecesse. A ele o pai responde: «Filho... este teu irmão...». Bom ou mau, o homem continua sempre um irmão para nós e um filho para Deus.
Os «irmãos mais velhos» são, às vezes, uma chatice: como não podem ainda mandar no céu, pretendem, pelo menos, ser donos, aqui, na terra. A Igreja é deles, e constituem, frequentemente, um grande empecilho ao regresso dos irmãos que falharam. Humilham-nos e tomam atitudes que os fazem sentirem-se envergonhados. Como na parábola, os irmãos que se afastaram só podem regressar quando estes «donos» não estão em casa...

(ARMELLINI Fernando, Vinde todos...à minha Festa!, Edições Paulistas - África, Lisboa - Kampala, 1988, pp. 93-96 - adaptado)

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Não basta ter permanecido sempre na casa do pai para participar no banquete: é preciso saber perdoar. Não basta nada ter feito de reprovável nem ter observado as leis da Igreja e do Estado: é necessário também esperar e desejar a vinda daquele que se afastou de casa. A Igreja não é a comunidade dos que não erram, dos que não caem, mas dos pecadores que querem voltar ao Pai, sem pretensões; a comunidade dos que compreendem o outro e, se este cai, o ajudam a retomar o caminho juntos; a comunidade dos que celebram o perdão do Pai, acolhendo-o e oferecendo-o aos irmãos - o perdão mútuo entre nós é exigência fundamental e condição absoluta para nos podermos dirigir ao Pai comum a fim de que nos perdoe: Quando fores levar a tua oferenda a Deus, se te lembrares que o teu semelhante tem algo contra ti, deixa a tua oferenda diante do altar e vai fazer as pazes com ele (cf Mt 5, 23-24).


A casa do meu Amigo
(Ricardo Cantalapiedra)

A casa do meu Amigo não era grande
A casa era pequena
Na casa do meu Amigo havia alegria
E flores na porta
A todos ajudava nos trabalhos
Seus actos eram justos
O meu Amigo nunca quis mal a ninguém
Partilhava nossas dores (bis)

O meu Amigo nunca teve nada seu
Suas coisas eram nossas
A “terra” do meu Amigo era a vida
Amor era a sua “terra”
Alguns não quiseram o meu Amigo
Expulsaram-no da terra
Sua ausência foi chorada p’los humildes
Penosa foi Sua ausência
(bis)

A casa do meu Amigo tornou-se grande
E nela entrou muita gente
Na casa do meu Amigo entraram leis
E normas e condenações
A casa encheu-se de hipócritas
De negociantes
A casa encheu-se de negociantes
Correram as moedas
(bis)

A casa do meu Amigo está mui limpa
Mas... faz frio nela...
Já não canta o canário p’la manhã
Nem há flores na porta
Fizeram da casa do meu Amigo
Uma obscura caverna
Onde ninguém se ama nem se ajuda
Onde não há Primavera (bis)

Saímos de casa do meu Amigo
Em busca dos Seus passos
E já estamos vivendo noutra casa
Uma casa pequena
Onde se come o Pão e bebe o Vinho
Sem leis nem condenações
E já encontrámos nosso Amigo
E seguimos Seus passos
(bis)
António Samelo

domingo, março 11

“TU NÃO NOS QUISESTE ABANDONAR…”

3º Domingo da Quaresma - Ano C

As reflexões propostas pelo Samelo, e que já se tornaram essenciais para a nossa caminhada quaresmal, foram antecedidas por dois pequenos textos, que partilhamos também.

Deus, eu e o cuidado

«Eu sou o que sou (...). [Eu sou aquele que serei]1

A realidade e mesmo a maneira como Deus pode ser um eu para Deus é para nós do domínio da metáfora. Mas metáfora é a essência da nossa relação connosco e com o Real, o que permite «compreender» imaginariamente para poder compreender aos poucos o que desde o início está presente. Nós só temos a experiência de um eu como não-deus. Todavia o sentido dela recorta-se nessa Ausência, é feito dessa ausência que nos constitui, nos invade, nos precede e nos solicita. A clara visão dela é o lugar em que a expressão «Deus» cobra para nós o único sentido possível. De uma Ausência não podemos fazer uma Presença. Não temos pois de «Deus», através da experiência de nós mesmos, um verdadeiro conhecimento. Isto nos impede, radicalmente, de «pensar segundo Deus», quer dizer, de nos colocar naquele ponto que permite uma teologia outra que positiva, isto é, injustificável. Mas não há outra.»

Eduardo Lourenço, "Do discurso «Sobre Deus»...", Nice, Junho 1968, in Tempo e o modo, 3. Deus o que é? 1968, p. 110.

1 Outra tradução possível. Nunca "eu sou aquele que é", como constava nos Septuaginta (tradução grega do Pentateuco). Nota d@ compilador@.


«Cuidar das coisas implica ter intimidade, senti-las dentro, acolhê-las, respeitá-las, dar-lhes sossego e repouso. Cuidar é entrar em sintonia com, auscultar-lhes o ritmo e afinar-se com ele. (...) Este modo-de-ser no mundo, na forma de cuidado, permite ao ser humano viver a experiência fundamental do valor, daquilo que tem importância e definitivamente conta. Não do valor utilitarista, só para o seu uso, mas do valor intrínseco às coisas. A partir desse valor substantivo emerge a dimensão de alteridade, de respeito, de sacralidade, de reciprocidade e de complementaridade.
(...) No modo-de-ser-cuidado ocorrem resistências e emergem perplexidades. Mas elas são superadas pela paciência perseverante. No lugar da agressividade, há a convivência amorosa. Em vez da dominação há a companhia afectuosa, ao lado e junto com o outro.»

Leonardo Boff, Saber Cuidar, 1999



Quaresma: dupla dimensão penitencial e baptismal… Assim, a partir do 3º domingo a Mesa da Palavra ou mais penitencial ou mais baptismal…


“TU NÃO NOS QUISESTE ABANDONAR…”


O Deus perto de nós e que caminha connosco - o Deus connosco.
Conversão: Deus onde estás?


O Deus insondável
Hoje não só se afirma: “não há Deus” [Sl 14 (13), 1], como também: “Deus é como tu e eu, um igual a nós”. Ante a negação ou a banalização de Deus, importa ter clara a resposta a uma pergunta que é hoje tão actual como no tempo do salmista: “onde está o teu Deus?” [Sl 42 (41), 11].
A primeira resposta é: Deus “habita numa luz inacessível” (1 Tm 6, 16), Ele é “o mistério escondido ao longo das gerações” (Cl 1, 26), a quem “jamais alguém viu” (Jo 1, 17). Afirmar a transcendência radical de Deus é a condição primeira e fundamental do crente.

Deus na história
Entretanto, a tradição judaico-cristã diz-nos que Deus, sem deixar de ser Deus, se revelou na história e que é nela que O podemos encontrar. Deus é “o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacob" (Ex 3, 6).
De Abraão até hoje, a história do cristianismo é a de todos aqueles que têm encontrado Deus nos afazeres ambíguos da história das pessoas.
A história é o que se faz, o que se constrói, dinamizado totalmente pelo futuro. É, assim, simultaneamente projecto e tarefa concreta.
Esta entrega de Deus no fazer e desfazer das pessoas é para muitos uma fonte permanente de escândalo. Da história humana pode sair algo bom? Nós dizemos: da história saiu Deus e na Sua história encontra-se a possibilidade do nosso encontro com Ele.

A leitura crente da realidade
A história, sem esquecer a história como possibilidade de transformação, é presença. É aqui que se encontra o lugar da leitura crente. A leitura crente supõe, pois, uma experiência activa. Não é unicamente uma reflexão sobre os acontecimentos, mas um esforço por ver como a nossa acção é também uma experiência de Deus, pois Cristo quis identificar-se com ela. O seguimento de Cristo convida-nos a construir a história e a torná-la transparente. A pessoa não possui a história, constrói-a. A leitura crente acompanha a construção da história de Deus e propõe-se discernir nela o Deus da história, os “sinais dos tempos”.

Leitura crente e oração
A leitura crente não é unicamente uma reflexão. Ela é também oração. O crente não é alguém que descobre na realidade significados ocultos. Não é, tão pouco, o pensador que espreme do real gotas de sabedoria. Ele é capaz de ver Deus onde outros só vêem causalidade, processos históricos, equações económicas. É aquele que experimenta a realidade como uma grande parábola de Deus, que “vê brilhar a luz do Evangelho da glória de Cristo, que é imagem de Deus” (2 Cor 4, 4).
Assim se explica que esta aproximação crente à história das pessoas termine num silêncio, numa invocação, numa esperança, num pedido de perdão. Não apenas porque descobrimos que o Senhor fez (e faz) maravilhas em nós (cf Lc 1, 49), mas também porque nos deu (e dá) a possibilidade de O descobrir. «Só se permanecer um lugar onde a oração, a contemplação, a adoração do Deus vivo puderem desenvolver-se, a Igreja poderá intervir eficazmente na instauração da justiça no mundo» (Karl RAHNER, teólogo cristão católico alemão). No caminho do encontro crente, Deus está tanto frente a nós como em nós: “é nEle que vivemos, nos movemos e existimos" (Act 17, 28).

A esperança
Por isso, a esperança é o motor da história para o crente, de tal modo que S. Paulo pôde definir os cristãos como “os que têm esperança” (1 Ts 4, 13). A esperança une futuro e presente e ajuda a descobrir que nem sequer mesmo agora será possível privar-nos da experiência do amor de Deus presente em Cristo Jesus. Surge então a acção de graças, o pedido de ajuda, o silêncio contemplativo. Para quem nunca fez esta experiência é loucura ou fuga. Para quem a fez é poder e sabedoria de Deus (cf 1 Cor 1, 25). Os seus frutos de vida são “amor, alegria, paz, bondade, fidelidade, mansidão, auto-domínio” (Gal 5, 22-23). E também paciência (a paciência da esperança), perseverança, tolerância, firmeza, um amor apaixonado por esta história humana “que geme e sofre as dores de parto” (Rom 8, 22).
C. F. BARBERA, "Lectura creyente y oración", in: Cuadernos de Oración, nº 39 (1986) - adaptado.

Conversão [metanóia] porque “Eu sou Aquele que sou” (Ex 3, 14)
“Eu sou Aquele que sou” (Ex 3, 14) significa: “Sou parte convosco na Aliança”, “Estou convosco, amo-vos em todas as circunstâncias”. Esta revelação do nome divino institui a Aliança e é a fonte da conversão (voltar) [da metanóia (mudança de mentalidade)] - conversão contínua e radical (não “como que aplicando um verniz superficial” (Evangelii Nuntiandi, n. 20) dos “critérios de julgar, dos valores que contam, (...) das linhas de pensamento, das fontes inspiradoras e dos modelos de vida” (Evangelii Nuntiandi, n. 19). “E (assim) A MINHA IGREJA OPTOU”…


NÓS CREMOS, SENHOR, QUE TU NOS DÁ A MÃO
CADA INSTANTE, CADA DIA;
NÓS CREMOS, SENHOR, QUE TEMOS TEU AMOR
A VIVER DENTRO DE NÓS!
NÓS CREMOS, SENHOR, QUE A TERRA VAI P’RA TI,
CADA INSTANTE, CADA DIA;
NÓS CREMOS, SENHOR, QUE VIVES ENTRE NÓS
NO AMOR QUE NOS UNIU!

1. Quando caem as fronteiras
E se calam os canhões;
Quando a espr’ança florescer
Nós sabemos que Tu vens!
Quando p’ra findar a guerra
Nem vencidos nem vencedores;
Quando a paz vem do amor
Nós sabemos que Tu vens!

2. Quando não há mais impérios
Nem separações raciais;
Quando se pode escolher
Nós sabemos que Tu vens!
Quando o pão chega p’ra todos,
A escola e a habitação;
Quando os pobres são promovidos
Nós sabemos que Tu vens!

3. Quando o salário é justo
E há trabalho p’ra cada lar;
Quando o lucro é dividido
Nós sabemos que Tu vens!
Quando dispensada a esmola,
A justiça triunfar
Verdadeira caridade
Nós sabemos que Tu vens!

4. Quando há chefes responsáveis
E seu lema é só servir
E há p’ra todos liberdade
Nós sabemos que Tu vens!
Se o cristão se compromete
Este mundo transformar;
Quando a igreja tem coragem
Nós sabemos que Tu vens!


E a minha Igreja optou: e ela optou pelo "próximo".
E a minha Igreja escolheu: e ela escolheu o "outro".
E a minha Igreja votou: e ela elegeu "o que está longe".
E a minha Igreja entrou no mundo do "outro".
E entrou, assim, num mundo conflituoso, duro, selvagem,
totalmente diferente do da sacristia.
E ela foi à busca do "outro" nos campos, nas plantações,
nas fábricas, nas escolas, nos escritórios, nos mercados.
E ela consciencializou este "outro".
E ela fez-lhe ver que ele é uma pessoa humana,
uma imagem de Deus.
E ela fez-lhe ver que deve defender a sua dignidade humana.
E..., pouco a pouco, o "outro" começou a levantar a cabeça!

(in: América Latina em prece, Éditions du Cerf, Paris, 1981)
António Samelo

domingo, março 4

A fé de Abraão e a transfiguração de Jesus


2º Domingo da Quaresma - Ano C


À Mesa da Palavra levámos um texto de Maria de Lourdes Pintasilgo, tão actual nos desafios que nos lança...

A grande empresa é mudar a vida

«A grande empresa não é o plano pensado e repensado, a estrutura gigantesca que, com os seus tentáculos, tudo vai abafar, nem a mentalidade renovada, adaptada, ajustada, conformada. A grande empresa é mudar a vida.
Mudar estruturas mudando-nos. Mudar o olhar que pomos nas coisas e com ele fazer nascer novas possibilidades de relação, de acção, de organização. (...)
Pois que caiam as estruturas, e se pudermos ajudar a desmantelá-las teremos ajudado a que a vida cresça; mas que elas caiam por obsoletas, porque em seu lugar, no espaço aberto que é o mundo da criação, já o nosso pensamento e as nossas mãos criaram, estruturando-a, a verdade do hoje que melhor serve os homens e que melhor torna visível o movimento de Deus na História.
Pois que mudem as mentalidades; mas não por mimetismo simiesco de qualquer última moda, antes porque o horizonte novo, ao revelar novos vales e montanhas, nos situa diferentemente, nos sugere novas imagens, nos obriga a uma síntese, nos dá um impulso para uma nova maneira de ser e de estar. (...)
Mudar a vida é esboçar em cada momento os novos valores e suscitar as condi¬ções de experiência que os tornam reais; é captar na experiência a que a história nos conduz os valores insuspeitados, desconhecidos ou ignorados. (...)
A única via pela qual horizontes novos se podem rasgar [é] aquela em que esco¬lhemos percorrer o próprio trilho da mudança. E quando digo que escolhemos percorrer este trilho, não estou a imaginar um caminho linearmente percorrido sem perigos nem desvios. Pelo contrário, no caminho da mudança, seremos ossos encharcados debaixo da chuva, seremos gestos descontrolados nas areias movediças, seremos passos indecisos a contornar rochas de granito.»

Maria de Lourdes Pintassilgo, "A única mudança real" [Janeiro 1978], in Dimensões da Mudança, prefácio de Eduardo Prado Coelho, Porto, Edições Afrontamento, 1985, pp. 17-19 (adaptado)



Continuámos, depois, com a reflexão proposta pelo Samelo para este Domingo.


A fé de Abraão e a transfiguração de Jesus

“AVISTAR A TERRA JÁ É ALEGRIA…”

O Deus de Jesus é o melhor “aliado” da pessoa humana, pois é o Deus da aliança, o Deus que entra em contacto connosco, o Deus que nos trata por “tu” e a quem podemos tratar por “tu” - e é na Bíblia que encontramos esse Deus “diferente”: as suas promessas são sempre totalmente gratuitas; mesmo que a pessoa humana peque, Ele não rompe a Sua amizade; permanece fiel; o Seu amor é sempre mais forte que qualquer das nossas traições e, não obstante as nossas escolhas erradas, caminha sempre connosco - “TU NÃO NOS QUISESTE ABANDONAR…”

Assim, os cristãos nem são narcisistas nem são masoquistas!...

pois como Abraão confiam incondicionalmente no Deus da aliança - aliança que é o novo sentido da história pessoal de Abraão e do povo que dele nascerá como sinal da fidelidade de Deus: toda a aliança supõe uma saída e uma entrada; um êxodo do Egipto e um ingresso na terra prometida; ou, segundo os profetas, um êxodo do pecado, da injustiça social, do formalismo cultual, para um ingresso no reino messiânico de paz e de fidelidade - e

subindo à montanha (celebrando e orando), não só “escutam” o que Jesus, a Palavra feita carne, lhes diz na sua situação e o que lhes pede para dizer ao Pai, como também O contemplam transfigurado (ressuscitado), transfigurando-se também;

uma vez transfigurados (após terem descoberto na celebração e na oração o caminho a percorrer), põem-se a caminho com Jesus que sobe para Jerusalém para doar a própria vida - descem a montanha (saem do momento celebrativo) para prosseguir a sua caminhada como agentes de transfiguração na “cidade” ao “jeito de Jesus” (ao “jeito do sermão da montanha”) (cf Mt 5─7):

“A prioridade reconhecida à liberdade e à conversão do coração não elimina, de forma alguma, a necessidade de mudança das estruturas injustas. É plenamente legítimo que aqueles que sofrem opressão por parte dos detentores da riqueza ou do poder político reajam, por meios moralmente lícitos, a fim de obter estruturas e instituições nas quais os seus direitos sejam verdadeiramente respeitados.”

(CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Instrução sobre a liberdade cristã e a libertação de 22 de Março de 1986 nº 75)

UM TESTEMUNHO
(cf MORGADO Lopes, Lucas e paz na terra!, Difusora Bíblica, Lisboa, 1988, p. 90)

“Para um povo baptizado que reconhece em Cristo Salvador a sua salvação, que transfiguração solicita a Palavra de Deus em favor da maioria dos camponeses, explorados por uma minoria que retém riquezas, poder de decisão, controle da imprensa?... Muitos baptizados ainda não assimilaram os postulados do Evangelho e, por isso, não estão ainda ‘transfigurados’; a sua mente e o seu coração contrapõem ainda uma barreira de egoísmo à mensagem de Jesus Salvador.”
(Padre Rutílio GRANDE, homilia na festa nacional da Transfiguração, na catedral de El Salvador, com a presença do Governo)

Padre RUTÍLIO GRANDE GARCIA (1928-1977)
Nascido em El Paisnal (EI Salvador), o padre Rutílio entrou para os Jesuítas aos 17 anos e fez os estudos teológicos em Espanha, onde foi ordenado presbítero em 1959, regressando ao seu país em 1963. Nesse mesmo ano tinha sido fundado pelos grandes agrários o Partido da Conciliação Nacional, para manterem a situação permitida pelo regime militar no poder desde 1932: que 60% das terras estivesse nas mãos de uma oligarquia de 40 famílias, correspondentes a 20 % da população, enquanto o resto do país vivia em extrema pobreza. O padre Rutílio trabalhava entre os camponeses, promovendo a sua tomada de consciência da situação à luz da Palavra de Deus. Vendo o desagrado do poder pela sua homilia na festa da Transfiguração, exilou-se voluntariamente no Equador. Mas, tal como Moisés, depressa voltou para o meio dos seus compatriotas pobres. Em 1971 foi nomeado pároco de Aquilares, onde se instalou com uma equipa de colegas, adoptando o método de ler e estudar a Palavra de Deus em grupo. Seu objectivo: “Pequenas comunidades vivas de homens novos, conscientes da própria vocação humana, capazes de se tornarem protagonistas do seu próprio destino individual e social, alavancas de transformação.” Em três anos, o objectivo foi conseguido. A formação cristã foi também integrada por cursos de alfabetização e de cooperativismo. A partir daí, algumas organizações de trabalhadores da terra foram revitalizadas por esses cristãos e espalharam-se por todo o país. O poder económico ergueu-se em força contra a obra “marxista” dos padres “terceiro-mundistas”... Resposta do padre Rutílio: “Aquilo que preocupa estes assim chamados católicos conservadores é o “deus dinheiro”, um deus construído pelas mãos do homem, amassado com o sangue dos irmãos inocentes... Eu amo-os e as acusações gratuitas a nosso respeito não têm fundamento. Estou disposto a dar a vida...”. O padre Bernal, colega da equipa do padre Rutílio, é expulso do país. O padre Rutílio repete a mesma denúncia, a 13 de Fevereiro de 1977, sublinhando: “A Eucaristia que estamos a celebrar alimenta este nosso ideal de uma mesa comum para todos, com um lugar para cada um e Cristo no meio”. A 12 de Março seguinte, quando se dirigia para a sua terra natal com outros cristãos para preparar uma festa religiosa, foi morto por uma rajada de metralhadora. Dom Óscar Romero (arcebispo de São Salvador desde Fevereiro de 1977 até Março de 1980, data em foi assassinado durante uma Eucaristia a que presidia no 1º aniversário da morte da mãe de um jornalista) diria que foi o exemplo do padre Rutílio e a sua morte que o convenceram a pôr-se decididamente ao lado dos pobres de El Salvador.


1. Se me envolve a noite escura
E caminho sobre abismos de amargura,
- Nada temo, porque a LUZ está comigo. (bis)
2. Se me colhe a tempestade
E o mar vai engolir a minha barca,
- Nada temo, porque a PAZ está comigo. (bis)
3. Se me perco no deserto
E de sede me consumo e desfaleço,
- Nada temo, porque a FONTE está comigo. (bis)
4. Se os amigos me deixarem
Em caminhos de miséria e orfandade,
- Nada temo, porque o PAI está comigo. (bis)
5. Se mais nada me restar
E no mundo só achar desilusões,
- Nada temo, porque o CÉU está comigo. (bis)
António Samelo