domingo, novembro 16

Domingo 33º do Tempo Comum

Para o momento da partilha, a Clara Lourenço e o Raimundo propuseram-nos estas reflexões:

“Quem poderá encontrar uma mulher virtuosa?”
Esta pergunta com que se inicia a primeira leitura do 33º Domingo do tempo comum, retirada do Livro dos Provérbios e frequentemente apresentada como “um poema em louvor da mulher virtuosa”, não pode deixar de nos interpelar e de modo muito particular quando somos mulheres. Com efeito, o carácter interrogativo bem como o uso do determinante indefinido não deixam dúvidas quanto à ideologia de quem coloca a questão, ideologia que a frase seguinte de imediato esclarece. “O seu valor é maior que o das pérolas”. Colocando o valor da mulher virtuosa acima do valor atribuído às pérolas, coisa rara e valiosa por excelência, afirma-se a dificuldade de encontrar alguma mulher que corresponda por inteiro ao que se procura. Logo aqui vemos que, na verdade e contrariamente à ideia de louvor da mulher virtuosa, o que sobressai é a sua raridade e quiçá a possibilidade da sua existência. Mas o texto, que continua fazendo a exaltação das prendas da mulher virtuosa e do modo como ela as coloca ao serviço do bem-estar do marido e dos outros, num gesto de entrega e doação abnegada de si, oferece ainda outros elementos dignos de reflexão. A mulher virtuosa é aquela que zela pelo bem-estar do marido, poupando-o a preocupações, entregando-se ao trabalho de modo a assegurar-lhe tranquilidade e alegria sem se deixar dominar por desejos enganadores e supérfluos. E é também aquela que teme o Senhor estabelecendo-se assim uma assimilação entre os deveres de esposa e os deveres para com o Senhor.
Mas não podemos esquecer que se trata de um texto extraído do Livro dos Provérbios que tem uma função socializadora baseada na sabedoria popular e como tal compreensível no contexto em que foi escrito. Aquilo que já não compreendemos tão facilmente é a forma como este e outros textos sagrados foram utilizados para, ao longo dos tempos e ainda hoje, perpetuar uma ideologia claramente redutora da dignidade da mulher subordinando essa dignidade a uma dimensão funcional de esposa e mãe em vez de relacioná-la com a mulher enquanto ser humano de pleno direito e igual dignidade aos olhos de Deus.
Uma última nota sobre a ideia que subjaz na seguinte afirmação: “a mulher que teme o Senhor é que será louvada.” Onde está a virtude de quem age por temor e não por amor?
Quem é o nosso Deus? Um Deus castigador, vingador, ou um Deus amoroso que a todos acolhe e perdoa?

“Ditoso o que segue o caminho do Senhor.”
Clara Moura Lourenço


Com todo o meu ser
Há muito tempo – não sei precisar desde quando – que fico algo irritado ou, melhor, desconfortável, com a inevitável abordagem da leitura deste Evangelho em que se reforça a importância de pormos a render os “talentos” que nos calharam nesta vida terrena, por fortuna ou azar, de origem mais material ou de inspiração mais divina.
Não gosto particularmente das expressões que Cristo (ou o Evangelista, ou o tradutor) colocam na boca do Senhor/Patrão dos servos quando decide castigar o que nada fez. Não posso deixar de recordar as minhas aulas de “Políticas e técnicas de financiamento da construção” no já longínquo ano de 87, em que nasceu a Luísa e em que comecei o Mestrado no Porto. Nessa cadeira, então tutelada por Miguel Cadilhe – que nunca nos deu a honra da sua presença – aprendia-se que o juro é como tempo: não pára. Um dia em que não se contabiliza a sua valorização é porque estamos perder. Em cada minuto, o dinheiro no meu bolso, parado, não investido, sem produzir algo, está a desvalorizar.
Esta dependência da evolução e do crescimento constante é, no mínimo, assustadora, quando se compara com o recorde de uma marca desportiva que se pode sempre teoricamente superar. Só há um limite: o nadador ou o maratonista não podem chegar antes de partir. Quando se esquece essa regra básica, tudo pode acontecer… no desporto, na banca, no mundo, na nossa vida.
Explicado o motivo do desconforto com a parte final do Evangelho e confessada esta angústia resultante do insuficiente conhecimento dos mecanismos da economia, posso dar-vos o meu testemunho.
Assumo que os talentos devem ser postos a render e não vou perder tempo a discutir quais são e porquê.
Pergunto antes, para quê? Com que objectivo? Servindo os interesses de qual Senhor?
Na Bíblia a resposta é simples porque, dizendo tudo, corre o risco de não dizer nada. O grande sentido, o grande objectivo será: “amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos”. Pois é…! E como é que isso se faz com cada um dos nossos (dos meus talentos)? Onde está o preto e o branco, o certo e o errado, num mundo em que a ciência cada vez mais instala a verdade da dúvida?
O poder não autoritário – a qualquer nível – é um talento que deve ser posto a render o mais possível, não a favor de quem o tem, mas de quem lho entrega, de quem lhe dá razão de ser. Se assim fosse, “poder” era “serviço” e talvez estivesse mais próximo da lógica do Evangelho, independentemente da convicção religiosa de cada um.
Na vida profissional sou engenheiro, sou professor, sou investigador e sou gestor. Tento colocar “todo o meu ser” (expressão que gosto muito) naquilo faço, acreditando que, assim, valorizo os tais talentos que me calharam. Como posso saber se o faço bem, se todos os dias sou confrontado com alegadas contradições e ineficácias? Acredito que esta dúvida é, no mínimo, uma indicação ténue de um bom caminho. Sublinho “um” bom caminho porque insisto em acreditar há vários possíveis e que, provavelmente, o Senhor/Patrão dos servos, se parasse um pouco mais e não respondesse ao imperativo de dar, ali e naquele instante, uma mensagem directa e inequívoca, teria encontrado as boas razões do último servo, apesar de diferentes das suas. Que mais valia terá ele angariado que o Senhor/Patrão não conseguiu vislumbrar?
Não acredito no juro fácil, não acredito na verdade única, não acredito na certeza inabalável. Acredito numa inquietação produtiva, reflectida em comunidade, tantas vezes demasiado cansativa, mas que só tem sentido se o juro dos talentos tiver um destinatário maior do que o meu umbigo, mesmo que ele seja do tamanho do mundo.
Comunidade João XXIII – 16.NOV.08
Raimundo Mendes da Silva

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