"Há 75 anos nascia a Acção Católica Portuguesa
Paulo Fontes afirma que «celebrar os 75 anos da fundação da ACP não poderá ser feito com o olhar virado apenas para o passado»
Há 75 anos, uma carta do papa Pio XI ao cardeal-patriarca de Lisboa D. Manuel Gonçalves Cerejeira, datada de 10 de Novembro de 1933, assinalava oficialmente o lançamento da Acção Católica Portuguesa (ACP), nova organização do apostolado católico no país. A promulgação das suas Bases Orgânicas pelo episcopado português, a 16 de Novembro do mesmo ano, traduzia o início do processo de institucionalização da ACP como organização nacional, visando integrar todos os sectores do apostolado e cobrindo todas as dioceses do país, de modo a totalizar uma nova forma de presença da Igreja Católica na sociedade, marcada pela visão de um catolicismo militante, em prol do que então se designava pela “reconquista cristã” ou “recristianização cristã” da sociedade. A sua criação resultou de factores internos e externos que favoreceram o seu aparecimento e moldaram a sua identidade no quadro de recomposição do catolicismo nacional e de reestruturação da própria Igreja em Portugal, cujo marco mais significativo fora a realização do Concílio Plenário Português, em 1926.
Desde finais do século XIX que, ao sentimento de fragilidade vivido pelo catolicismo no seio de uma sociedade em processo de secularização, correspondera uma vontade de revitalização e um ímpeto associativo dos católicos, de que a Acção Católica Portuguesa foi, de certo modo, herdeira. A estratégia definida pelo episcopado português em 1926 ia no sentido do reforço da chamada “união católica”, da secundarização de tudo o que dividia os católicos, incluindo a política, e de afirmação da autonomia e capacidade de acção da Igreja na sociedade, sob a direcção dos bispos, enquanto expressão da autoridade católica na sociedade. A “participação dos fiéis leigos no apostolado hierárquico da Igreja” marca o entendimento eclesiológico dos anos 30 e parte dos anos 40. O ideal histórico de uma “nova cristandade” teorizado por Jacques Maritain, afirmando o primado do espiritual, constituía o horizonte de mobilização para os que integravam o que então se designava por “exército de Cristo-Rei”. A teologia de Cristo-Rei foi, aliás, um dos principais pólos de referência doutrinal até, pelo menos, ao final dos anos 50 do século XX; e a ACP fez sua a Festa de Cristo-Rei, instituída em 1925. A ideia de que havia que aliar o “combate interior” de cada um ao “combate exterior” na sociedade era o quadro de compreensão de um apostolado que se pretendia simultaneamente religioso e social. A “questão social”, isto é o conflito capital-trabalho e a “imerecida miséria” em que viviam os novos sectores sociais urbanos, em particular o operariado industrial, estimulavam a procura de nova respostas sociais, para que a doutrina social da Igreja e a então chamada “sociologia cristã” procuravam contribuir, oferecendo referências para a acção social e a participação cívica dos católicos.
A natureza específica da nova Acção Católica assentava, desde o início, na ideia do apostolado organizado, realizado por leigos sob mandato da Hierarquia. Foi necessário esperar pelos seus desenvolvimentos e dificuldades, assim como pelas novas dinâmicas do pós-II Guerra Mundial, a par da reflexão teológica desenvolvida por Yves Congar e outros, para se afirmar a especificidade e autonomia do apostolado dos leigos, que a realização do I e II Congressos Mundiais do Apostolado dos Leigos bem exprimiu (1951 e 1957). No caso português, combinou-se a ideia de um apostolado total, capaz de responder e integrar todos os sectores da sociedade, com uma organização duplamente especializada: segundo o sexo e a idade, dando origem a quatro Organizações (Liga dos Homens da Acção Católica, Liga das Mulheres da Acção Católica, Juventude Católica e Juventude Católica Feminina); e de acordo com os chamados “meios sociais” - agrário, escolar, independente, operário e universitário -, dando origem a 20 Organismos Especilizados. Paralelamente, a hierarquização interna e a centralização em cada um dos três planos em que a organização se estruturava (local ou paroquial, diocesano e nacional) procurava assegurar eficácia a um movimento que visava, simultaneamente, a formação de um “escol” (os militantes e dirigentes) e a influência na “massa”.
Os desenvolvimentos do trabalho de formação e reflexão teológicas, a preocupação com o enraizamento social do trabalho de cristianização, a par da activa participação nas dinâmicas internacionais ou supranacionais do catolicismo, foram factores que contribuíram decisivamente para conferir ao movimento católico português alguns novos traços nos anos 50 a 70, em especial: a formação humana, cívica e religiosa de várias gerações de católicos, conforme a uma espiritualidade mais incarnada e cristocêntrica, pese embora o peso do marianismo nas devoções dos movimentos de Acção Católica; o desenvolvimento de um catolicismo social reformista, partindo do estudo e procura de soluções para a realidade nacional, bloqueada pela persistência política do Estado autoritário após a II Guerra Mundial; o aparecimento de novas elites católicas nos mais diversos sectores da sociedade, em particular universitário, intelectual e cultural, mas também operário e de novos sectores profissionais, a par da emergência de novas lideranças e dinâmicas sociais, a nível da juventude, das mulheres, das famílias e do movimento sindical e patronal, entre outros.
Nos anos 70, o esgotamento do paradigma de movimento católico que a ACP corporizou explica o seu desmembramento como corpo orgânico em 1974, sendo que a realização do II Concílio do Vaticano constituiu um importante ponto de viragem neste processo. Muitas das perspectivas teológicas e pastorais que o Concílio viera reconhecer e proclamar tiveram na vida e trabalho da Acção Católica, em todo o mundo, um pioneirismo e um alicerce que, no longo prazo, explicam a sua secundarização, mormente o reconhecimento do valor pleno do apostolado dos leigos, sem necessidade de recurso ao mandato episcopal ou o valor da liberdade religiosa e do pluralismo eclesial e social. No caso português, o paralelismo cronológico verificado entre a vigência do Estado Novo e a existência da ACP (1933-1974) não deve ser interpretado num registo causal, mas deve procurar-se no húmus cultural e sociológico da realidade portuguesa, que aqui não podemos analisar.
O desmembramento da ACP como corpo orgânico não significou o fim daquela experiência. Ao invés, nalguns casos, traduziu-se no relançamento de parte dos movimentos que entretanto se tinham autonomizado no seu interior, alguns dos quais continuam o seu trabalho nos dias de hoje, embora em contexto e em modalidades bem diversos dos iniciais. De igual modo, muitas das intuições sociais, teológicas e pastorais nascidas no seio da Acção Católica fizeram o seu caminho, encontrando noutras dinâmicas sociais e movimentos eclesiais a sua forma de expressão, nomeadamente: o “apostolado do semelhante pelo semelhante”, preconizado pelo papa Pio XI; o método da “revisão de vida”, aprendido na escola da JOC (Juventude Operária Católica) de Joseph Cardjin, seu fundador e figura emblemática do movimento católico internacional; a afirmação do “apostolado de leigos”, apoiado na presença e acompanhamento dos “assistentes eclesiásticos”, função para que se recrutaram e formaram dezenas de padres em todo o país e a partir donde se projectaram figuras marcantes do catolicismo social; a distinção entre “missão interna” e “missão externa”, conforme a uma visão que muito contribuiu para a reflexão missiológica e a reformulação da própria noção de missão; e, por último, a ideia de “militância católica” que, sendo-lhe anterior, aqui encontrou um lugar privilegiado de expressão ao longo do século XX.
Para todos os que se interessam pela memória e história da ACP, celebrar os 75 anos da fundação da ACP não poderá ser feito com o olhar virado apenas para o passado, mas sobretudo para o presente, numa atitude de abertura ao futuro, na procura dos “caminhos não andados” que, também hoje, necessitam ser descobertos e trilhados, na dupla fidelidade à realidade vivida e à pessoa de Jesus Cristo.
Paulo Fontes, Centro de Estudos de História Religiosa - UCP, autor da tese de doutoramento "Elites Católicas na Sociedade e na Igreja em Portugal: o papel da Acção Católica Portuguesa (1940-1961)", defendida em 2006."
in: http://www.agencia.ecclesia.pt/noticia_all.asp?noticiaid=66160&seccaoid=3&tipoid=236
"O que resta da Acção Católica Portuguesa?
Historiador Paulo Fontes fala dos 75 anos de fundação e do fim deste corpo global do laicado católico no nosso país
Em Novembro de 1933, na Conferência Plenária do Episcopado português foram aprovadas as bases orgânicas da Acção Católica (AC), que assim nascia no nosso país. Era então definida como “o conjunto das organizações do laicado católico português que propõe a difusão e a defesa dos princípios católicos na vida individual, familiar e social, sob a directa e inteira dependência da hierarquia e por mandato desta recebido”.
A primeira obra de cariz científico sobre a Acção Católica Portuguesa (ACP), apresentada no nosso país teve a autoria de Paulo Fontes, membro do Centro de História Religiosa (CEHR) da Universidade Católica Portuguesa. O historiador considera que a ACP há muito chegou ao fim, no nosso país.
“Hoje quando falamos da celebração dos 75 anos (da AC, ndr), falamos da fundação, porque já não há Acção Católica Portuguesa, há que dizê-lo com clareza”, afirma.
Paulo Fontes assinala que “a ACP como corpo global, orgânico, acabou em 1974”. Nesse ano, a então Comissão Executiva entrega aos Bispos a responsabilidade de acompanharem uma multiplicidade de movimentos autónomos.
Em declarações ao Programa ECCLESIA, este especialista - autor da dissertação de Doutoramento com o título "Elites Católicas na Sociedade e na Igreja em Portugal: o papel da Acção Católica Portuguesa (1940-1961)" – explica que a ACP nasceu “de uma preocupação grande da hierarquia católica, a de encontrar uma resposta orgânica, capaz de envolver os católicos do país, numa cruzada de reconquista cristã ou recristianização da sociedade”.
Procurando um novo modo de estar da Igreja em sociedade, tentou-se secundarizar o que separava os católicos, “nomeadamente a questão política” e “estar presente na sociedade para essa tarefa de recristianização”.
Estando perante um dos fenómenos que mais marcou a vida da Igreja Católica em Portugal, no século passado - apenas suplantado, em importância, por Fátima -, Paulo Fontes destaca o seu efeito “mobilizador”, seja na criação de novas elites, seja nas “massas”.
Uma ideia de “acção católica” já se encontrava no século XIX, dada a necessidade de “reencontrar um espaço onde a presença cristã se fizesse sentir” em sociedades que já não se definiam como religiosas.
A Acção Católica pode ser definida, de forma genérica, como a forma organizada de apostolado dos leigos que, no seguimento dos movimentos católicos do séc. XIX, foi incrementada por Pio XI, alcançando grande implantação sobretudo nos países católicos latinos.
Em Portugal, a Acção Católica incluía duas dezenas de "organismos" especializados por sexos, idades e meios sociais, coordenados por quatro "organizações" e por uma "Junta Central", chegando a contar 100 mil associados na década de 50, segundo dados publicados e cartografados pelo então Pe. Manuel Falcão, hoje Bispo emérito de Beja.
Paulo Fontes destaca a ideia da “evangelização do semelhante pelo semelhante”, que levou a “uma cristianização feita a partir da assunção da condição e do protagonismo dos próprios leigos”, para chegar “onde a hierarquia não chegava”.
Daqui surgiram “experiências novas e diversificadas, umas que tiveram o seu tempo e que terminaram, outras que se transformaram”.
Na sua obra, Paulo Fontes apontava dois elementos que esmoreceram e ajudam a explicar o fim do modelo orgânico da ACP: o primeiro, "um certo entendimento da unidade, porque a Acção Católica procurava afirmar a unidade na diversidade, mas uma unidade entendida como união, que se sobrepunha ao que era a particularidade das dioceses ou as particularidades dos meios sociais".
O segundo elemento é a ideia do "mandato", numa visão de Igreja em que "o protagonismo e a iniciativa dos leigos, de algum modo, ainda estava secundarizado ao próprio apostolado hierárquico".
À ECCLESIA, Paulo Fontes assegura que da ideia de Acção Católica resta hoje “muita coisa”, a começar pelos “movimentos e dinâmicas que prolongam experiências que nasceram no interior deste movimento orgânico e que se autonomizaram”.
Outra herança é a “vitalidade presente em intuições pastorais da AC e que se transpuseram” para campos eclesiais e da sociedade, com destaque para a questão do “apostolado dos leigos” dentro da Igreja Católica e o “enraizamento social do cristianismo”."
Octávio Carmo | 19/11/2008 | História da Igreja
in: http://www.agencia.ecclesia.pt/noticia_all.asp?noticiaid=66507&seccaoid=3&tipoid=186
in: http://www.agencia.ecclesia.pt/noticia_all.asp?noticiaid=66507&seccaoid=3&tipoid=186