domingo, março 16

Domingo de Ramos

O Mistério de Cristo

Nas “cartas da prisão” Paulo concentra a sua atenção mais directamente no “Mistério de Cristo”, considerado como o centro de todo o plano salvífico de Deus, já desde a criação: esta é a razão profunda pela qual o Ressuscitado não é apenas do passado como os outros enviados de Deus no AT, mas permanece ponto de referência quer para a escatologia quer para o presente da vida cristã - Cristo é o Alfa e o Omega.

A centralidade do mistério de Cristo e as suas implicações surgem com clareza nos grandes “Hinos cristológicos” em Fil 2, 6-11; Col 1, 15-20; Ef 1, 3-14.

Fil 2, 6-11
Muito antigo, testemunho da fé da Igreja primitiva expressa no culto, pois:
* expressões raras e de características não paulinas;
* particularidade estilística no ritmo e andamento das estrofes.
Entretanto, “Paulo” fê-lo seu e adaptou-o ao contexto da sua carta com reflexões pessoais → fê-lo tornar-se significativo na sua própria visão cristológica.

Divisão do hino em duas estrofes:

* Na 1ª (vv. 6-8)

é dominante o movimento de descida = abaixamento da incarnação, da história humana de Jesus, humilhação da cruz, isto é, Jesus renunciou a aparecer na glória da divindade para viver a vida comum da humanidade, com tudo o que ela comportava; “esvaziou-se” = tal como o “Servo de Javé” Jesus não percorre o caminho da afirmação gloriosa de Si, mas o da humildade, do ocultamento, do sofrimento: ao contrário de Adão que buscou a sua realização desobedecendo a Deus, Jesus “humilhou-se” na obediência – doação ao Pai que chega ao auge na morte de cruz (= um dos temas centrais de pregação de Paulo quer em Filipos quer na Galácia – cf. Gal 3, 1.13; 1 Cor 1 — 2).
Na “kenosisde Cristo (nota dominante no hino) sublinha-se não tanto o sentido de que Deus incarnou, mas o sentido de que Deus tendo decidido incarnar (e podia tê-lo feito com uma humanidade fora da nossa história não sujeita à caducidade, à necessidade, à morte = uma condição humana ao nível da Sua condição divina), preferiu uma condição humana em tudo semelhante à nossa (a afirmação do “esvaziamento” faz de antítese quer à afirmação inicial “condição divina” quer à afirmação final “Jesus é o Senhor”).

* Na 2ª (vv. 9-11)

é dominante o movimento de subida = exaltação, glorificação, isto é, referência aos factos que se seguiram à morte de cruz (= ressurreição e ascensão) = àquele que é “exaltado” (note-se que o verbo escolhido é reforçado com uma proposição e como tal sugere que a exaltação supera todo o limite quando confrontada com as humilhações descritas nos vv. anteriores) é conferido um “nome” (= dignidade, autoridade, poder segundo o uso semita do termo) que é superior a qualquer outro que possa ser pronunciado no universo e esse “nome” é o de “Kyrios” (= termo com que os LXX traduzem “Javé”): esta profissão de fé é essencial para qualquer comunidade cristã (cf. Rom 10, 9; 1 Cor 12, 3) - é ela que caracteriza o povo da nova Aliança tal como caracterizava o povo da antiga Aliança [cf. Act 2, 21; 4, 12; 9, 14; 1 Cor 1, 2 – Sl 99 (98), 6] = = face aos reis e imperadores do mundo helenista Jesus é o único e verdadeiro “Kyrios”.

Mas entre estas duas perspectivas (= movimentos) não há corte, antes uma ligação profunda, pois a 2ª é originada pela 1ª (= “por isso”, início do v. 9): é precisamente no ponto mais profundo do “esvaziamento” (= morte de cruz), que se inicia o movimento ascensional = a exaltação de Cristo é fruto do Seu abaixamento e obediência.

DUAS OBSERVAÇÕES:

- No hino não é descrita primariamente a estrutura da pessoa de Jesus, mas sobretudo o caminho que percorreu, a história da qual foi protagonista: é a partir daqui que se pode compreender “quem é” Cristo e aprofundar a Sua realidade última pessoal.

- Não pode ser descurada a amplidão da história e do acontecimento de Jesus, isto é, a Sua condição junto de Deus, a Sua vinda à história da humanidade, a vida obediente, a cruz, a exaltação = o “mistério de Cristo” está encerrado entre o “ter condição divina” e o “tomar a semelhança humana”, entre o ser “servo” e o ser “Senhor”, e cujo conteúdo, como esclarece Paulo, não pode ser dado, prescindindo do acontecimento histórico, concreto de Cristo cujo centro é a Páscoa: esta é a “charneira” entre o “esvaziamento” e a “exaltação”, é o “auge” do “esvaziamento” e da “exaltação”.
Neste contexto
é afirmada
claramente a divindade de Jesus = na Sua glorificação herdou o próprio “nome” de Deus: enquanto Adão, não sendo Deus, quis ter os privilégios divinos, Jesus sendo o Filho (cf. final do hino: “glória de Deus, o Pai”) renunciou e partilhou a nossa situação mortal, manifestando deste modo o Seu ser Deus (= um Deus connosco, que morre por nós) → revela a grandeza do amor do Pai e ensina-nos a fazer o mesmo (cf. Fil 2, 2-5), e
é afirmada também a pré-existência: “Ele tinha a condição divina”.

António Samelo

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