segunda-feira, fevereiro 14

A religião oprime quando impede a alegria a nível sexual

Publicamos, aqui, a entrevista concedida por Anselmo Borges a António Marujo e publicada na revista «Pública», no passado domingo 6 de Fevereiro. Quem quiser guardar, ou ler mais demoradamente, pode descarregá-la aqui.


«A Igreja Católica tem muita dificuldade em lidar com o prazer e a autonomia. Não sabe, por isso, como lidar com a sexualidade, diz Anselmo Borges, padre, teólogo e professor de Filosofia na Universidade de Coimbra. Autor de vários livros nas áreas da teologia e da ética, conhecido pelas suas posições críticas de vários aspectos da doutrina oficial católica, Anselmo Borges explica ainda porque é que a Igreja recuperou algumas causas da morte de Jesus, quando propaga a imagem de um Deus que aterroriza.
Entrevista de António Marujo
Ilustração Nuno Saraiva


Os grandes valores da modernidade vêm fundamentalmente da Bíblia e o cristianismo trouxe ao mundo a ideia da dignidade divina de todos os seres humanos. Mas, apesar disso, a Igreja Católica lutou contra ideias como os direitos humanos, a secularização e a separação da Igreja e do Estado. O padre Anselmo Borges, membro da Sociedade Missionária da Boa Nova, admite que a religião tem sido e pode ser opressora, mas que só pode entender-se como força de liberdade e de libertação.
Nascido em 1944, em Resende, Anselmo Borges é uma das vozes singulares do catolicismo português. Dedicado há anos ao ensino da filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, tem privilegiado a ética como área de reflexão. Mas a sua intervenção alarga-se ao campo mediático: colunista semanal do Diário de Notícias, publicou vários livros, entre os quais Janela do (In)visível, Religião: Opressão ou Libertação?, Morte e Esperança, Corpo e Transcendência, Janela do (In)finito. O último, Religião e Diálogo Inter-Religioso, publicado no final de 2010, fala do outro como fascínio e ameaça. “Talvez não seja por acaso que a primeira edição esgotou em três meses”, comenta, porque “as pessoas andam preocupadas com a questão do outro, hoje mais sentido como ameaça”.

Alimentando o gosto do pensar, Anselmo Borges diz que “a grande crise do nosso tempo é que já não há espaço para as grandes perguntas” Afirma que a Igreja precisa de assumir o valor da autonomia, confrontar-se com o pluralismo e com as neurociências, repensar a questão da sexualidade, da lei do celibato obrigatório e do lugar das mulheres. Organizador de dois congressos internacionais de teologia – sobre Deus no Século XXI e o futuro do cristianismo (cujas actas estão publicadas) e, em Outubro, sobre Religião e (In)felicidade – Anselmo Borges reflecte, aqui, sobre as razões da difícil relação do catolicismo com alguns temas da ética e da modernidade. E diz que a eutanásia é um problema em aberto…


P. – Tomo o título de um dos seus livros para perguntar se a religião é opressão ou libertação.

R. – A religião pode ser, tem sido e é, de facto, uma coisa e outra. Quando esmaga o ser humano, quando em nome de Deus se mata ou se impede a crítica ou o desenvolvimento das pessoas, quando em seu nome se cometem injustiças, aí a religião é opressora.

E também oprimiu quando trouxe medos, com coisas como o inferno, com o impedimento da alegria a nível sexual, todo esse universo de pânico. Mas, pela sua própria dinâmica, ela é libertadora. Toda a religião arranca desta pergunta: o quê ou quem liberta e salva? Na sua raiz, ela só pode entender-se enquanto força de liberdade e libertação.

P. – Um dos medos que refere é a sexualidade. O cristianismo tem medo dela?

R. – É importante desfazer equívocos. Uma coisa é a Bíblia e a mensagem originária cristã, com Jesus Cristo. É interessante ver que Jesus, perante a sexualidade, mesmo confrontado com desvios, é tolerante e perdoa. A Igreja parece ter posto o acento no sexo e nos seus desvios, mas Jesus o que condenou de forma veemente foi fundamentalmente a ganância, a avareza, a opressão: “Não podeis servir a Deus e ao dinheiro”.

É necessário distinguir entre a Bíblia, onde se encontra um dos livros mais exaltantes do amor erótico, que é o Cântico dos Cânticos, e, depois, o mal-estar do cristianismo histórico em relação à sexualidade, que provém fundamentalmente dos gnósticos e de Santo Agostinho.

Santo Agostinho é herdeiro de uma escola gnóstica, que é o maniqueísmo, que leva a gnose à radicalidade.

P. – Então, Santo Agostinho trouxe também problemas…

R. – Ele é um génio, mas trouxe ao Ocidente e ao cristianismo histórico verdadeiras tragédias do ponto de vista sexual. Ele era maniqueu e, a partir do maniqueísmo, tinha resolvido o problema do mal: há dois princípios, um do bem e outro do mal. Há uma questão que se coloca sobretudo aos crentes: se Deus é infinitamente bom e omnipotente, como se explica o mal? Através do maniqueísmo, ele tinha resolvido o problema. Mas, uma vez convertido, precisa de encontrar uma solução, pois o cristianismo diz que Deus, quando olhou para o mundo, viu que tudo era bom. Donde vem então o mal? Quando se converte ao cristianismo, Santo Agostinho tem de encontrar a origem do mal. Vai à Carta aos Romanos, de São Paulo, e lê: “Adão, no qual todos pecaram.” Mas o grego (ele só conhecia o latim) diz: “Porque todos pecaram.” Uma coisa é Adão ser o primeiro que peca, outra é dizer que, nele, todos pecaram. E, de tal modo pecaram, que todos transportam esse pecado, que tem uma origem sexual e se transmite sexualmente.

Este é o mal que vem ao Ocidente através da gnose, do maniqueísmo, de Santo Agostinho. Todos são concebidos em pecado e desse pecado original só o baptismo liberta. Assim, não hesitou em “enviar” para o Inferno as crianças não baptizadas, porque vinham com o pecado original…

P. – Num dos seus textos, diz que a Igreja perdeu a credibilidade em termos de doutrina sexual. É assim?

R. – A sexualidade também tem a ver com o prazer e este confronta-se com o poder. Na medida em que a Igreja se tornou uma instituição de poder, tem muita dificuldade em lidar com o prazer e a autonomia. Não sabe, por isso, como lidar com a sexualidade, com as pessoas que estão no mundo de modo autónomo. Essa é uma das questões fundamentais da Igreja.

P. – Por isso surgem as questões relativas ao planeamento familiar, aborto, eutanásia…

R. – A Igreja lutou contra a modernidade embora, por outro lado, os grandes valores da modernidade venham fundamentalmente da Bíblia. Não é por acaso que é no Ocidente que se dá a modernidade, a secularização, a separação da Igreja e do Estado, que tem a ver com a autonomia, os direitos humanos… São valores que vêm da Bíblia, mas que os iluministas tiveram de impor contra a Igreja oficial.

Há um Papa que proibiu a leitura da Bíblia, outro refere-se à “detestável doutrina” dos direitos humanos. No entanto, são valores que vêm fundamentalmente da Bíblia. Afirmam-se a partir da ideia de um Deus transcendente, que cria por amor, livremente. Se Deus cria livremente, só pode criar criaturas autónomas, homens e mulheres livres, e as realidades terrestres seguem as suas leis, sem precisarem da tutela da Igreja. Por outro lado, o cristianismo trouxe ao mundo a ideia da dignidade divina de todos os seres humanos, independentemente da cor, etnia, sexo, posição social, nacionalidade ou religião.

P. – A autonomia relaciona-se com os limites, que a sociedade também coloca, e com a ética, que foi sempre construída também com base religiosa. Hans Küng propõe uma nova ética mundial. Mas se a religião tem problemas com a modernidade, como se faz o equilíbrio entre os limites e o desejo de autonomia inerente ao ser humano?

R. – Quando Hans Küng fala de uma ética mundial, refere-se mais a um ethos – aquela atitude radicalmente humana perante as grandes questões humanas, em que haja um consenso mínimo. Refere-se a um conjunto de bases éticas em que seja possível o acordo de todos os homens, crentes ou não-crentes: o compromisso com o princípio da humanitariedade, que obriga a respeitar a dignidade inviolável da pessoa humana, o compromisso com a não-violência e o respeito pela vida, o compromisso com a justiça e a solidariedade, o compromisso com a igualdade e companheirismo entre homens e mulheres.

Não se pode basear a ética na religião, porque a ética é autónoma, isto é, não é antes de mais uma questão religiosa, mas humana. E é possível e imprescindível um consenso ético mínimo nas questões que hoje nos afligem, como a bioética, a justiça, a ecologia. É possível uma ética autónoma, também porque somos seres racionais e sociais. Sendo livres, somos capazes de nos darmos a nós próprios uma ética na responsabilidade. A liberdade implica a responsabilidade: somos capazes de nos darmos regras, somos capazes de responder por isso.

A religião relaciona-se com a ética, mas vincula-se a ela devido a outros problemas, que têm a ver com a culpa, com as vítimas inocentes, com a esperança, e com o sentido último…

P. – Também há uma dimensão social da ética…

R. – A ética é fundamentalmente social, pois o ser humano só existe com outros seres humanos. Se só houvesse um, nunca despertaria para si mesmo enquanto tal. O homem só é homem com outros. Ser homem e ser em relação é a mesma coisa.

Há sempre uma co-pertença de mim aos outros e dos outros a mim, e aos passados e aos futuros. Porque a identidade própria é sempre atravessada pela mediação do outro. Só tomo consciência de mim passando pelo outro, pela alteridade. A alteridade é constitutiva da identidade.

P. – Fala-se de grandes questões do mundo como problemas éticos: pobreza, direitos humanos, desenvolvimento. De que modo isso se relaciona com o que referiu?

R. – Hoje tomamos consciência de que há uma só humanidade. Se tomamos consciência de que cada pessoa só é pessoa em relação a cada um dos outros seres humanos, é uma vergonha que 20 por cento da humanidade controle 80 por cento da riqueza e que quase metade da humanidade tenha que viver com menos de dois euros por dia.

Todos pertencemos a todos. Um homem só é homem na humanidade, no seu vínculo a todos os outros. Mas, se não formos solidários por uma questão ética, de humanidade, então sejamo-lo ao menos por egoísmo esclarecido. Porque vamos entrar numa conflitualidade sem limites: quem julga que nunca mais haverá revoluções anda enganado.

P. – Esse seria também um modo de resolver o debate sobre se os direitos humanos são uma construção ocidental? Ou esta é uma falsa questão?

R. – Sou contra o relativismo e proponho o perspectivismo, que é diferente. Há algo que transcende o relativismo cultural. Julgo que tem de haver algo de transcultural. Esse mínimo, o que seria? Pelo menos, o entendimento nesta pergunta: “O que é ser homem?” Porque, se não houver algo de comum, como podemos dialogar uns com os outros? Há esta universalidade: a dignidade do ser humano.

A partir daqui, é possível e necessário avançar para um ethos mundial, o que se traduz nos direitos humanos, embora eu compreenda que haja quem critique – e não apenas por meros interesses políticos. A Declaração dos Direitos Humanos, tal qual está formulada, incide muito na dimensão individual. Talvez seja necessária também uma carta dos direitos humanos, incidindo mais nos direitos de grupos, das culturas, e também nos deveres…

P. – No seu último livro, Religião e Diálogo Inter-Religioso, escreve que “o outro é vivido sempre como fascinante e ameaça”. Não estamos hoje mais a viver o outro (o islão, o estrangeiro, o imigrante) como ameaça do que como fascínio?

R. – As pessoas andam preocupadas com a questão do outro, hoje mais sentido como ameaça, como dizem as sondagens, concretamente na França e na Alemanha. Por um lado, há a crise económica; por outro, o diálogo não pode ser unidireccional. Não se pode esquecer que o cristianismo é hoje a religião mais perseguida no mundo e nomeadamente no Médio Oriente, onde parece haver um plano para fazer desaparecer a presença dos cristãos.

Julgo que há condições fundamentais para o diálogo: o fim da leitura literal dos textos sagrados e a separação da Igreja e do Estado. Os Estados não podem ser confessionais. Isso que custou tanto à Igreja Católica tem de ser aprendido também pelos muçulmanos. Depois, as religiões têm de dialogar, porque nenhuma possui a verdade toda sobre Deus e o sagrado. O fundamentalismo – há fundamentalismo religioso, económico, político, filosófico – tem a sua origem na ignorância e na estupidez, pois julga possuir o fundamento. Ora, quem é o ser humano, finito, para possuir o fundamento?

P. – Também nos confrontamos com a crítica da hierarquia católica, a começar pelo actual Papa Bento XVI, ao relativismo ético, que aponta para muitas questões no âmbito da moral sexual…

R. – É evidente que quanto ao sexo não vale tudo. Por outro lado, dá a impressão que a Igreja vive obcecada com o sexo. Ora, o cristianismo é realmente uma religião do corpo. Porque, logo no livro do Génesis, se diz que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, “homem e mulher os criou” e achou que isso era muito bom. Deus mesmo, em Jesus Cristo, assumiu a corporeidade humana na sua fragilidade. E os cristãos têm como núcleo da sua fé a ressurreição de Jesus e a ressurreição dos mortos.

Como é que uma religião do corpo se dá depois tão mal com o corpo, historicamente? É espantoso e é necessário investigar isso...

P. – Dá-se mal e nega a dimensão transcendente do corpo, aludindo ao que trata no seu livro Corpo e Transcendência

R. – O corpo humano vivo é alguém, alguém que está aberto à transcendência. O cristianismo é a grande resposta a esta corporeidade, que se abre à transcendência do próprio Deus e que espera a ressurreição dos mortos. Mas a Igreja oficial deu-se muito mal com a matéria, com o corpo. Há o problema do poder e, voltando à moral, do celibato não assumido.

O facto de a ética ter sido entregue a moralistas que eram padres, com um celibato obrigatório, por vezes não assumido, eventualmente infeliz, tudo isso envenenou o corpo e a sexualidade. E envenenou a mulher, porque a moral esteve entregue a homens, que talvez vivessem uma má relação com o corpo e que tinham de amaldiçoar a mulher como o fruto proibido.

P. – Essa má relação com o corpo não explica também o mal-estar da nossa sociedade em relação à morte?

R. – Quando falamos do corpo, falamos do ser humano, do corpo-pessoa, que é este enigma, esta exaltação, esta alegria, esta pergunta infinita, mas que se confronta com o limite. E é daqui que surge a pergunta religiosa, porque, quando nos damos conta do limite, perguntamos por aquilo que está para lá do limite, perguntamos pela transcendência. Surge aqui a questão da morte.

Há realmente hoje um enorme mal-estar em relação à morte, também porque se não quer aceitar o limite. O que se faz para manter o corpo jovem!... Mas envelhecemos e morreremos. E é fundamental reconciliar-se com a mortalidade.

P. – O mesmo mal-estar existe com a sexualidade.

R. – A relação com a sexualidade, hoje, não é boa, não é sadia. Passou-se do tabu ao vale tudo. E as pessoas percebem que não vale tudo. Um grande teólogo, renovador da moral católica, do qual agora se fala pouco, Bernard Häring, disse-me uma vez: “A Igreja Católica também tem culpa disso. Fez tabu de tudo e as pessoas quiseram depois libertar-se, mas libertaram-se mal.” Por isso hoje vivemos este mal-estar.

Há uma enorme crise de uma sociedade que apostou no espectáculo, voltada para o ter, para o consumir sem limites. A partir daí, a grande pergunta é a da morte. Da qual se fez tabu. Ora, uma sociedade que não sabe conviver com a morte também não sabe viver com a vida.

Penso mesmo que, para perceber uma sociedade, mais importante do que saber como é que nela se vive é saber como é que nela se morre e nela se trata os mortos. Ora, na nossa sociedade, sobretudo por causa da desafeição em relação à religião já não há esperança em relação ao além. Então, numa sociedade sem eternidade, só ficam instantes que não fazem tecido e, por isso, se devoram uns aos outros. A um agora segue-se outro agora... e assim sucessivamente. E é preciso viver sofregamente o instante, consumir, correr, afirmar-se na vertigem, porque, depois, não há mais nada. Este é hoje o nosso problema maior.

Não sou a favor do pensamento mórbido sobre a morte – infelizmente, a própria Igreja também utilizou o medo da morte para exercer o poder –, mas penso que o pensamento sadio sobre a morte traz sabedoria ao viver.

P. – O poder é uma questão-chave...

R. – O poder é fundamental para perceber as grandes problemáticas na história da Igreja, concretamente na sua contradição com o cristianismo originário.

P. – O cristianismo tem a ressurreição como resposta à morte, mas não sabe falar dela.

R. – A ressurreição deve entender-se na dinâmica do corpo-pessoa aberto à transcendência. Uma vez que a Igreja não sabe lidar com o corpo, fala da alma. Mas hoje, no quadro da antropologia, não se pode pensar em dualismo de alma e corpo.

De qualquer forma, em relação ao para lá da morte, ficamos sem palavras. É o indizível. Porque nós estamos preparados para pensar no quadro do espaço e do tempo, e a morte retira-nos precisamente do espaço e do tempo. Mas a fé do cristianismo na ressurreição é essencial. Quem acredita em Deus que é amor, crê que não será abandonado por Deus nem mesmo na morte. Na morte, em vez de cair no nada, o crente espera entrar na plenitude da vida em Deus.

P. – Nesse seu livro, refere-se às respostas perante a morte: resignação face ao nada, integração no todo, reencarnação, ressurreição...

R. – Julgo que dificilmente se consegue conviver com o nada. Então, como as pessoas não toleram o nada, é interessante observar que 25 por cento dos católicos franceses acreditam na reencarnação. Entendo isso, mas penso que a reencarnação é insustentável até do ponto de vista antropológico.

A ressurreição é a proposta da fé cristã. Mas ela não pode ser entendida como a reanimação do cadáver. Só se pode dizer que a pessoa na sua identidade encontrará a plenitude da vida em Deus. É um mistério do qual apenas encontramos acenos no amor e na música.

P. – Por vezes diz que a Igreja esqueceu o essencial: a ressurreição, a proposta de liberdade, a autonomia e transcendência do ser humano…

R. – Quase sou levado a dizer que, desgraçadamente, a Igreja pode ser acusada por alguns de ter recuperado grande parte das causas que levaram Jesus à morte.

P. – Quais?

R. – O que levou Jesus à morte foi a religião oficial dos sacrifícios, que explorava o povo. Jesus enfrentou-se fundamentalmente com o sacerdócio do Templo, pois Deus dizia: “Eu não quero sacrifícios, quero misericórdia.” Jesus veio anunciar um Deus de amor, não precisa de sacrifícios.

As religiões estão assentes no sacrifício. Jesus enfrentou o sacerdócio do Templo e essa foi uma das causas da sua morte. A outra foi que ele morreu como subversivo, como alguém que subleva a ordem social e política injusta.

Encontramos aqui a mensagem nuclear de Jesus, que o leva à morte: um Deus de amor, que não precisa dos sacrifícios e que quer que todos os homens e mulheres se amem, que haja justiça e fraternidade no mundo. A Igreja recuperou, neste sentido, algumas das causas da morte de Jesus: um Deus que mete medo e aterroriza. E nem sempre dentro da Igreja reina a verdade limpa e honesta da transparência e da justiça: pense no Vaticano e na Cúria Romana.

P. – É um Deus imoral que provoca o aparecimento do ateísmo, como sugere em vários dos textos do livro Janela do (In)visível?

R. – Um deus que mete medo, que humilha as pessoas e impede a sua alegria, que leva à violência e à guerra, é um deus em relação ao qual só há uma atitude digna: ser ateu. O mesmo se diga da doutrina que diz que Deus precisou da morte do Filho para aplacar a sua ira. Este deus seria pior que eu, é imoral, porque mata a vida, quer o sangue do Filho, precisa de vítimas. Isso é absolutamente intolerável. Um Deus que exige o sangue das vítimas é o Deus da vingança. Ora, se Deus se vinga, nós também podemos vingar-nos, podemos ir para a guerra.

O Deus que Jesus anunciou constituiu uma revolução. Jesus não veio anunciar que há Deus, porque Deus nesse tempo era uma evidência social. O núcleo da sua mensagem é que Deus é amor. Esta é que é a notícia boa e felicitante do Evangelho. Ora, o que a Igreja pregou muitas vezes, ao longo dos tempos, foi uma má notícia, o “disangelho”, no dizer de Nietzsche.

P. – O que explica uma parte do ateísmo. Mas, em muitos dos seus textos, tem uma visão positiva do ateísmo.

R. – Sim. Ai de nós se não houvesse ateus que sabem o que isso quer dizer…

P. – Ateus graças a Deus?

R. – Não… Admiro os ateus que, quando ainda não havia liberdade religiosa e ser ateu significava o fogo da Inquisição e implicava, no quadro doutrinal da época, ir para o Inferno, ousaram, em nome da liberdade crítica, da razão e da própria dignidade de Deus e do homem, pôr a questão de Deus e ser ateus. Esses são santos da humanidade, porque foram eles que obrigaram a criticar imagens falsas e ignominiosas de Deus.

Perante os ateus, é necessário perguntar em que Deus não acreditam. Os crentes, se também souberem o que isso quer dizer, talvez estejam de acordo com alguns ateus, dizendo: num Deus vingativo, guerreiro, em nome do qual a humanidade é explorada, nesse Deus também não acreditamos.

P. – Tem um texto com o título “Karl Marx actual”. Vindo de um teólogo, soará estranho a algumas pessoas. Ainda mais hoje, em que o marxismo está fora de moda, mesmo apesar da crise… Como explica isso?

R. – Karl Marx ensinou-nos, por exemplo, que ninguém fala a partir de um lugar neutro. Todos falamos a partir de um lugar social. A leitura que Marx faz em relação ao dinheiro enquanto mediador das relações humanas traduz a monetarização do humano. O dinheiro é o deus que tudo domina, ao qual homens e mulheres prestam culto.

Estes aspectos mostram a actualidade de Marx. Tal como Galileu, que mostrou que o homem não era o centro do universo, Darwin, que ensinou que provimos da cadeia da evolução, ou Freud, que mostra que a razão não domina tudo, Marx também nos ensina a ver que nenhum de nós fala a partir de um lugar neutro. A palavra justiça não é neutra, como não há consensos neutros no domínio social, porque cada um fala a partir de um lugar próprio.

O conceito de justiça não será o mesmo para um grande capitalista e para um pai ou uma mãe desempregados que têm de alimentar três ou quatro filhos. O chamado “socialismo real” morreu, felizmente, mas Marx tem muita actualidade, sobretudo nestas dimensões.

P. – A religião continua a ser a busca de sentido?

R. – Do sentido, do sentido último. Por isso é que nunca desaparecerá. E aqui reencontramos Marx. Ele tinha razão ao criticar a religião como ideologia. Mas ele não tinha razão ao pensar que, uma vez estabelecida a justiça social, a religião desapareceria. É que, mesmo que fosse possível uma sociedade transparente e sem conflitos sociais, a religião não desapareceria, porque há sempre o problema do sentido final, da morte, do tédio, como dizia Ernst Bloch.

P. – Na prática e na disciplina da Igreja, quais são os aspectos mais importantes a mudar?

R. – Tarefa fundamental é testemunhar, por palavras e obras, o Evangelho de Jesus e ajudar as pessoas a fazer a experiência de Deus.

A Igreja precisa de assumir o valor da autonomia, em vários domínios, como a participação dos leigos, a liberdade de investigação e ensino, abrir-se a uma cosmovisão processual e não estática, confrontar-se com o pluralismo, com as novas ciências, nomeadamente as neurociências. A grande crise do nosso tempo é que já não há espaço para as grandes perguntas, sendo, pois missão da Igreja manter acesa a pergunta. Para isso, ela própria tem de deixar-se interrogar.

Tem de repensar a questão da sexualidade, nomeadamente dos anticonceptivos, da lei do celibato obrigatório. As mulheres não podem continuar a ser discriminadas. Não sou ingénuo: tem de haver alguma organização dentro da Igreja, mas uma coisa é o ministério e outra é o poder enquanto domínio e carreirismo.

P. – A função clerical de hoje não tem mais a ver com o sacerdócio judaico do tempo de Jesus do que com os ministérios dos primeiros tempos do cristianismo?

R. – A grande categoria religiosa é o sagrado, o mistério. O sagrado é o referente de todas as religiões. Se não houvesse experiência do sagrado, do mistério, as religiões não teriam lugar. Mas isso não implica a sacralização dos sacerdotes para oferecer sacrifícios. O Novo Testamento evitou a palavra hiereus, que significa sacerdote. Na Igreja primitiva, fala-se em ministérios e não em sacerdotes.

P. – Como deveria a Igreja encarar a questão do limite em casos como o aborto ou a eutanásia?

R. – Sou contra o aborto, que é um mal, objectivamente. Deveria haver educação sexual séria, também para que o aborto fosse evitado e para que as pessoas pudessem exercer a sua autonomia sexual no amor, na alegria e na dignidade.

Dito isto, a Igreja deveria estar muito atenta aos progressos científicos e distinguir entre vida, vida humana e pessoa humana. Assim, por exemplo, até à nidação, uma vez que pode haver ainda gémeos monozigóticos, não temos propriamente um indivíduo, de tal modo que a interrupção do processo não se pode chamar um homicídio.

Acrescento que a Igreja tem que saber argumentar, também do ponto de vista ético. Quando se diz que só se devem usar meios anticoncepcionais naturais, pergunto: o que são métodos naturais, se foi o homem que os descobriu? A Igreja torna o seu discurso não crível, porque, por vezes, a argumentação é frágil ou inexistente.

Indo à sua pergunta, julgo que um cristão não estava impedido de votar favoravelmente o projecto de lei da descriminalização do aborto. O que é inadmissível é que, depois, segundo a lei, a mulher que aborta não pague taxa moderadora e seja possível fazer dois ou mais abortos por ano.

P. – E quanto à eutanásia?

R. – A eutanásia é um problema em aberto, que não pode ser tabu. Se Deus deu a vida humana, deu-a mesmo. A argumentação que muitos cristãos apresentam de que não se pode intervir no fim da vida porque esta é dom de Deus não tem em conta a autonomia.

P. – Dizia que a vida é um dom de Deus…

R. – Se Deus deu a vida, a vida, para o ser humano, é um dom e não é um fardo. E, com autonomia, tem pelo menos o direito de pôr a questão da eutanásia. É uma questão em aberto. Claro que neste problema, como no aborto, estamos perante questões-limite, que devem ser tratadas com toda a responsabilidade. Ninguém pode acabar com a vida de modo irresponsável, porque nós também pertencemos aos outros. E é preciso sublinhar que só o próprio é que poderá dispor da sua vida, em determinadas circunstâncias e mediante um pedido de ajuda consciente e consistente.

Exige-se imenso cuidado no debate, porque vivemos numa sociedade na qual predomina o poder do dinheiro e o economicismo, há pouco respeito pela vida e os velhos são menosprezados e até excluídos.

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