Publicamos, agora, a entrevista concedida por Elias Chacour a António Marujo e publicada no caderno «P2» do jornal Público, na passada terça-feira, 8 de Fevereiro. Quem quiser guardar pode descarregá-la aqui.
Três vezes candidato ao Nobel da Paz, o arcebispo católico-melquita da Galileia diz que a fuga dos cristãos do Médio Oriente às perseguições e atentados está a matar as comunidades dos lugares onde Jesus nasceu. E conta o que disse um dia ao actual Presidente israelita Shimon Peres, que acabaria a dar-lhe razão…
António Marujo
Acabado de ser ordenado padre, Elias Chacour chegou à pequena aldeia de Ibillin, na Galileia (Norte de Israel). Olhou à volta e viu miúdos a olhar o vazio. Decidiu dormir meio ano no carro que levara, enquanto preparava uma escola para os mais pequenos. Quatro décadas depois, essa pequena experiência provisória deu lugar a um complexo com mais de 4500 estudantes, incluindo universitários, e onde cabem cristãos, muçulmanos, drusos e mesmo judeus.
Elias Chacour é, desde Fevereiro de 2006, arcebispo de Haifa, Nazaré e Galileia, da Igreja Católica Melquita – a maior comunidade cristã em Israel, com cerca de 76 mil crentes (a segunda maior, grega ortodoxa, tem 40 mil). Foi ele quem acolheu o Papa na missa que Bento XVI celebrou em Nazaré, em Maio de 2009. Nomeado por três vezes (1986, 1989 e 1994) para o Nobel da Paz e com várias outras distinções no âmbito da paz e dos direitos humanos, incluindo de instituições dos Estados Unidos e de budistas japoneses, diz que o Nobel apenas traria mais “visibilidade” ao seu trabalho.
Nesta entrevista ao P2, Chacour recorda que Jesus e os seus discípulos nasceram na Galileia, critica a política de Israel, condena a violência do Estado ou dos indivíduos e diz que israelitas e palestinianos devem começar a pensar que têm o privilégio de viver juntos. Elias Chacour é autor de vários livros sobre a situação na região e a história de Ibillin.
P. – O Papa falou da situação dos cristãos no Médio Oriente quando esteve na região e voltou a falar nas últimas semanas. Como estão as coisas?
ELIAS CHACOUR – Nada mudou. Está tudo como tem estado.
P. – A visita do Papa deveria ter tido outras consequências?
R. – A visita recordou, antes de mais, que Jesus e os discípulos eram desta região, da Galileia. Nós somos os primeiros cristãos, que levaram a boa nova a Atenas, a Roma, a todo o lado… O Papa veio como peregrino e como pastor, para encorajar os cristãos a ficar.
P. – Pelos vistos, com poucos resultados…
R. – Não estamos à espera que o Papa traga soluções para os nossos problemas, mas que mostre compreensão e simpatia pelos sofrimentos do povo e que reze para que a paz chegue…
Um Papa não é um político, vem sempre a cada sítio como homem religioso, pastor, peregrino: reza por nós, escuta-nos, dá-nos uma mensagem de confiança. Aqui, [foi importante] pedir aos cristãos locais que fiquem e não continuem a emigrar para o estrangeiro. Não podemos ver os nossos jovens partir para a Europa, a América ou a Austrália. A emigração está a matar-nos.
P. – É possível continuar a ter comunidades cristãs que sejam sinais de paz na região?
R. – Em Israel, há uma comunidade cristã, a única com uma linguagem diferente: reconciliação, perdão, partilha, direito dos pobres. O nosso papel é demasiado importante para ser negligenciado. Somos conhecidos por ser uma voz de moderação: não estamos com o Estado quando o Estado é violento, não estamos com os indivíduos quando eles utilizam a violência. A violência, para nós, está fora de questão. E isso perturba as autoridades.
Aqui [Israel], temos liberdade de movimentos e uma liberdade de expressão bem ampla. O nosso problema não vem do facto de sermos cristãos, mas de sermos também palestinianos, ou seja, árabes em Israel. E a política de Israel não é uma política de integração mas de tolerância. Quer dizer, uma das piores que pode existir.
P. – Nos restantes países da região como definiria a situação?
R. – Na Síria, os cristãos vivem livres e muito felizes, contrariamente ao Iraque, onde são severamente perseguidos e mortos. No Egipto, é igual, mas um pouco mais camuflado. O atentado do final do ano foi um exemplo disso, mas durante o ano há muitas tragédias como essa.
P. – No discurso do Ano Novo, o Papa pediu aos governos uma acção decisiva contra as perseguições aos cristãos. Que acções seriam importantes?
R. – É necessária solidariedade. Seria muito importante que os peregrinos que vêm à Terra Santa consagrem uma parte da sua peregrinação a visitar os cristãos, que conheçam também as pessoas e não apenas as pedras.
Até agora, os cristãos da Europa e do Ocidente estão do lado de Israel. Muito poucos conhecem os cristãos do Médio Oriente. Ficam espantados quando dizemos que somos cristãos e perguntam quando nos convertemos do islão. É preciso que rectifiquem a sua atitude e considerem os cristãos da Terra Santa como pessoas com direito a existir e como factor essencial para a paz e o diálogo.
P. – Uma das diferenças entre católicos melquitas e católicos latinos é que, na Igreja Melquita, há pessoas casadas que se tornam padres, como nas outras igrejas orientais.
R. – A nossa é uma Igreja oriental, bizantina. Estamos em comunhão com Roma. Mas temos 17 padres, num total de 30, que são casados. São muito bons, muito dedicados. Sinto-me muito orgulhoso deles.
P. – Como nasceu a ideia da escola de Ibillin?
R. – De uma necessidade. Não é uma invenção de luxo, é um projecto necessário e vital. Uma semanas depois da minha ordenação sacerdotal, o meu bispo mandou-me para a aldeia de Ibillin. Como não tinha sítio para dormir, vivi durante seis meses num carro que tinha trazido da Alemanha. Durante seis meses, foi o meu quarto de dormir e o meu escritório.
Tinha sido enviado por um mês. Mas o meu bispo era como todos – incluindo eu: têm memória curta, esquecem depressa. E ele esqueceu-se. Passei 38 anos na aldeia, à espera que passasse um mês.
Foi lá que aprendi que a comunidade árabe de Israel é o pequeno resto da grande comunidade palestiniana que foi etnicamente apagada, deportada, expulsa de suas casas. Só um pequeno resto ficou no território da Palestina que se tornou Israel.
P. – De que comunidade falamos hoje?
R. – Uma comunidade muito jovem: 75 por cento tem menos de 28 anos e metade tem menos de 14 anos. Em Ibillin, pensei: devo dar a minha vida pela educação da juventude. Foi a isso que me dediquei. Começámos por juntar livros que as famílias já não usavam, para fazer uma biblioteca pública.
Ao mesmo tempo, pensei fazer colónias de férias para as crianças. Elas têm dois meses de férias de Verão, nada para fazer nem para onde ir. Passam o tempo a olhar em volta as colónias judaicas que foram construídas nas suas terras confiscadas. E pensei: isto não pode continuar. Fizemos a primeira colónia de férias com 1127 crianças; na última, em 1980, tivemos mais de cinco mil crianças de 30 aldeias da Galileia. Foi gigantesco.
Entretanto, senti a necessidade de uma instituição de educação, uma escola secundária. Começámos a construir no início de 1982 e, em Setembro desse ano, abrimos a escola com 80 estudantes.
P. – Entretanto, começaram a pensar na universidade.
R. – Em 2001, começámos a trabalhar na universidade. Em Março de 2009, tivemos o reconhecimento do Conselho de Educação de Israel. Logo depois, a decisão foi ratificada pelo Governo. Sem dinheiro, não podemos ter uma universidade. Mas, se o tivermos, daqui a três ou quatro anos, teremos mais de quatro ou cinco mil estudantes: há todos os anos 12 mil estudantes da minoria árabe que vão para a Jordânia. Se conseguirmos recuperar cinco mil estudantes, será já uma grande universidade.
P. – A experiência é positiva?
R. – Muito. Os estudantes trabalham na escola, vivem em conjunto, conhecem-se como homens e mulheres com relações de amizade. A universidade vem completar um grande projecto que caminha desde 1981.
P. – Como arcebispo, deixou a escola. O que faz para construir a paz e a boa convivência entre as pessoas?
R. – Tornando-me arcebispo, não mudo de orientação: a necessidade do povo pela paz e pela justiça. Na escola, tinha uma responsabilidade limitada aquele espaço. Como arcebispo, estou em contacto com toda a população de Israel, da base ao topo: ministros, homens de negócios, agentes de educação e de universidade.
P. – Falou dos cristãos da Terra Santa como factor de diálogo, mas eles próprios se dividem em muitas igrejas e comunidades. Como podem ser sinal de reconciliação?
R. – Tudo o que diz respeito aos lugares santos – Santo Sepulcro, Igreja da Natividade, Belém, Nazaré – não tem nada a ver com os cristãos palestinianos. É tudo entre religiosos estrangeiros, franciscanos, gregos, etíopes. Por isso é que afirmamos que não estamos divididos em diferentes igrejas, mas unidos em diferentes igrejas. Como os irmãos de uma família que depois constituem outras famílias, mas permanecem unidos.
No Ocidente, aprenderam a distinguir, até exagerar a distinção, dividindo-se. Nós queremos afirmar a unidade na diversidade. E é possível. Infelizmente, quando um franciscano e um ortodoxo se disputam no Santo Sepulcro, nós pagamos o preço, somos acusados. Fico desolado, é triste.
P. – É por isso que escreve que Deus não é melquita nem católico nem ortodoxo?...
R. – Até diria mais: Deus não é mesmo cristão. Felizmente. Se não, que cristão seria? Um cristão reformado, re-reformado ou ainda não reformado? Deus está acima disso.
P. – Que críticas faz à política de Israel?
R. – Temos muitos problemas com Israel: somos cidadãos de segunda; há problemas de subsídio para famílias, escolas e municípios, pois há uma verba para judeus e outra para árabes. Há muito a fazer para que uma igualdade verdadeiramente democrática seja praticada em Israel. Esta é a visão global. Mas, se ficarmos no global, vamo-nos perder. É preciso descer do global ao local: é preciso ter relações de amizade com cada judeu que possamos encontrar. O indivíduo judeu é como o cristão: há uma diferença entre o cristão e a cristandade. Tenho muitos amigos judeus, tenho muito orgulho nisso. Mas há uma política de Israel que não gostamos. A política em relação aos árabes é nefasta, muito segregacionista. E isso não pode continuar.
P. – Diz que os católicos, em Israel, são árabes mas não muçulmanos, israelitas mas não judeus, católicos mas não de rito latino, orientais mas não ortodoxos. Minoritários em tudo…
R. – Sim, mas se perdermos o tempo a perguntar o que não somos, será uma existência muito triste. Se perguntarmos o que podemos fazer no interior desta grande diversidade, em vez de ver o negativo começamos a ver o potencial. E podemos fazer alguma coisa. É belo ser diferente mas complementar.
P. – Os cristãos crêem que o Messias já veio, os judeus esperam-no. Diz que é possível todos trabalharem para que o Messias venha ou volte…
R. – Sim… Creio que o Messias já veio, o irmão rabino acredita que ele ainda virá. Acreditamos os dois no Messias, trabalhemos juntos para fazer a nossa vida humana viável e respeitável para que ele venha – e ele nos dirá se já tinha vindo ou se vem. Não vale a pena perder tempo a ver as pessoas morrer na guerra, no ódio, na segregação, por causa de saber se o Messias veio ou virá. Deixemos isso para Deus.
P. – A noção de povo escolhido coloca dificuldades ao diálogo com os judeus?
R. – Sim, mas permite também extraordinárias possibilidades de diálogo. Não sei se um cristão poderia explicar-me o Evangelho sem referência ao Antigo Testamento. Eles completam-se: é a história de Deus na história humana.
Os muçulmanos e os judeus não precisam de aprender a viver juntos. Precisamos de nos recordar como vivíamos juntos há 60 anos. Até aí, havia judeus em todos os países árabes muçulmanos. Viviam bem, respeitados, eram tratados como os muçulmanos. O rei de Marrocos recusou entregar judeus à Gestapo. A história do judaísmo em Damasco é uma história proverbial de bondade. Em Alexandria ou no Iraque, eles eram senhores…
Precisamos de nos recordar disso, em vez de nos fixarmos na desconfiança que dura há 60 anos, não por causa da religião nem da raça, mas do território. Os judeus vieram da Europa e de outros lados para privar os palestinianos do seu território, que os judeus queriam chamar Israel, em vez de aceitar humildemente viver com os palestinianos. Optaram por deportá-los, tomando o seu lugar, destruíram mais de 460 aldeias e cidades palestinianas.
P. – O senhor foi também uma vítima das deportações?
R. – Sim, sim… Tinha oito anos, mas lembro-me dos pormenores todos…
P. – É possível manter essa ideia do regresso às antigas aldeias palestinianas?
R. – Não é possível esquecer. O meu pai morreu em 1992, aqui em Haifa. Era muito pobre. Transportámo-lo para o enterrar na aldeia de Bar-am [sul de Israel]. Os nossos casamentos, funerais, baptismos são feitos nas igrejas à volta das ruínas das nossas aldeias. Se os judeus esperaram dois mil anos para regressar, nós podemos esperar dois mil anos, também…
P. – Disse isso uma vez a Shimon Peres.
R. – Sim… Ele respondeu: “Tem razão.” Mas não há um líder político corajoso para reconhecer essa verdade… Muitas vezes tenho a impressão de que não estamos na Terra Prometida, estamos na terra das promessas. Promessas vazias, digo-o a todos os judeus, incluindo ministros, primeiro-ministro, chefe de Estado…
P. – E que lhe respondem?
R. – Dizem que tenho razão, mas que não sabem o que fazer. Não sabem? Se não soubessem nos anos 1940, não teriam criado o Estado de Israel.
P. – A questão nessa época foi a de não criar dois Estados, no início?
R. – Ninguém pensava em dois estados. Ninguém pensava mesmo no Estado de Israel. Israel expulsou os palestinianos das suas cidades, das suas terras e propagandeou que os palestinianos não existiam. Mas nós existíamos, estávamos cá, eles preferiram ser míopes. Há a famosa frase de Theodore Herzl: “Uma terra vazia deve pertencer a um povo que não tem Estado.” Mas a assistente dele disse-lhe que a Palestina era superpovoada. Ele respondeu: “Devemos ser míopes, fazer como se não houvesse ninguém.”
P. – Hoje, a situação está bloqueada. Devem fazer-se esforços para recordar como era possível viver em conjunto?
R. – Sim, é dessa fé de que os judeus são seres humanos como nós que partimos para uma nova visão na qual judeus e palestinianos têm que viver juntos. Não é possível viverem separados. Desde há 60 anos, os dois [lados] dizem que estamos condenados a viver juntos. É altura de mudar esta fórmula e começar a pensar que temos o privilégio de viver juntos. O que podemos fazer? Tudo, com um pouco de bom senso.
Os dois continuam a dizer: a Palestina pertence-me, a terra é minha. Mas nenhum conseguiu controlar a terra: Israel não é apenas um Estado judeu, há 20 por cento de árabes e 25 a 30 por cento de palestinianos sob ocupação israelita. A terra não pode pertencer nem aos judeus nem aos palestinianos. São os judeus e os palestinianos que têm que aprender como partilhar as suas vidas nesta terra. De outro modo, vamos até à destruição.
P. – Hoje, a maior parte das pessoas não compreende esse discurso…
R. – Porque os líderes não têm coragem de o promover. Digo-o por todo o lado: reuniões, igrejas, assembleias…
P. – Não há líderes comprometidos com a não-violência?
R. – Os líderes que podem representar os palestinianos estão na prisão, seja nas prisões árabes, seja nas prisões israelitas. Não nos faltam líderes, falta-nos a liberdade para que os líderes possam agir. O que falta é liberdade de expressão dos palestinianos.
P. – Falta uma figura como Mandela, Gandhi, Luther King, Desmond Tutu?...
R. – Talvez. São figuras de referência nos seus países. Uma vez estive com Tutu, num jantar com o [então] Presidente [norte-americano James] Carter. E Tutu disse-me subitamente: “Padre Chacour, tenho muito mais sorte que o senhor, porque sou um negro da África do Sul. Os brancos não queriam expulsar-nos, queriam que fôssemos seus escravos e nós recusámos. A vocês, Israel não queria que vocês fossem os seus escravos, queria que desaparecessem. Por isso temos mais esperança.” E ele tinha razão.
P. – São os radicais que, no fundo, fazem barulho, mais que as pessoas que querem viver pacificamente. Como cortar essa força dos radicais?
R. – Não é preciso cortar, é preciso antes dar vitamina às correntes moderadas, dando-lhes a possibilidade de se exprimirem e de terem alguns sucessos para gerar um pouco de esperança no coração dos jovens. Não vale a pena perder tempo com os radicais de um ou do outro lado. É inútil. Os radicais são sempre uma minoria. Mas são eles que marcam o compasso da marcha. Disse isso uma vez a Shimon Peres: vocês negligenciaram-nos a nós, cristãos, marginalizaram-nos mesmo, porque não somos violentos. Temos bombas muito poderosas, mas que não matam os corpos. Nós não podemos odiar e essa é a nossa força.
P. – Num dos seus livros, diz que o seu ideal é secar as lágrimas a cada judeu, cada muçulmano, cada cristão. Continua a ser?
R. – Desejo verdadeiramente não ver nenhum judeu, nenhum muçulmano ferido ou a chorar. Porque quem chora é um homem, que é imagem de Deus. Queria colocar um sorriso no lugar do medo, um sorriso de esperança no lugar do desespero.
P. – E essa esperança é possível ainda? Em breve?
R. – Claro que sim. Espero que o mais cedo possível.
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