segunda-feira, fevereiro 14
Ser sal e luz
um texto dele, sobre o que é isso de ser Sal e Luz;
outro, um manifesto de teólogos europeus (Igreja 2011 – Uma mudança necessária) com propostas concretas para as mudanças que eles entendem necessárias à Igreja;
finalmente, a ligação à entrevista de Carlos Vaz Marques ao teólogo espanhol Juan José Tamayo ("vinculado a la Teología de la Liberación, sobre la que ha trabajado abundantemente. Es miembro de la Asociación de Teólogos y Teólogas Juan XXIII", lê-se em http://es.wikipedia.org/wiki/Juan_Jos%C3%A9_Tamayo, consultada a 14.02.2011).
Assim, podem descarregar os textos ou ouvir o programa nas seguintes ligações:
– texto do Samelo;
– manifesto;
– entrevista.
A emigração está a matar-nos — Política de Israel em relação aos árabes é segregacionista
Três vezes candidato ao Nobel da Paz, o arcebispo católico-melquita da Galileia diz que a fuga dos cristãos do Médio Oriente às perseguições e atentados está a matar as comunidades dos lugares onde Jesus nasceu. E conta o que disse um dia ao actual Presidente israelita Shimon Peres, que acabaria a dar-lhe razão…
António Marujo
Acabado de ser ordenado padre, Elias Chacour chegou à pequena aldeia de Ibillin, na Galileia (Norte de Israel). Olhou à volta e viu miúdos a olhar o vazio. Decidiu dormir meio ano no carro que levara, enquanto preparava uma escola para os mais pequenos. Quatro décadas depois, essa pequena experiência provisória deu lugar a um complexo com mais de 4500 estudantes, incluindo universitários, e onde cabem cristãos, muçulmanos, drusos e mesmo judeus.
Elias Chacour é, desde Fevereiro de 2006, arcebispo de Haifa, Nazaré e Galileia, da Igreja Católica Melquita – a maior comunidade cristã em Israel, com cerca de 76 mil crentes (a segunda maior, grega ortodoxa, tem 40 mil). Foi ele quem acolheu o Papa na missa que Bento XVI celebrou em Nazaré, em Maio de 2009. Nomeado por três vezes (1986, 1989 e 1994) para o Nobel da Paz e com várias outras distinções no âmbito da paz e dos direitos humanos, incluindo de instituições dos Estados Unidos e de budistas japoneses, diz que o Nobel apenas traria mais “visibilidade” ao seu trabalho.
Nesta entrevista ao P2, Chacour recorda que Jesus e os seus discípulos nasceram na Galileia, critica a política de Israel, condena a violência do Estado ou dos indivíduos e diz que israelitas e palestinianos devem começar a pensar que têm o privilégio de viver juntos. Elias Chacour é autor de vários livros sobre a situação na região e a história de Ibillin.
P. – O Papa falou da situação dos cristãos no Médio Oriente quando esteve na região e voltou a falar nas últimas semanas. Como estão as coisas?
ELIAS CHACOUR – Nada mudou. Está tudo como tem estado.
P. – A visita do Papa deveria ter tido outras consequências?
R. – A visita recordou, antes de mais, que Jesus e os discípulos eram desta região, da Galileia. Nós somos os primeiros cristãos, que levaram a boa nova a Atenas, a Roma, a todo o lado… O Papa veio como peregrino e como pastor, para encorajar os cristãos a ficar.
P. – Pelos vistos, com poucos resultados…
R. – Não estamos à espera que o Papa traga soluções para os nossos problemas, mas que mostre compreensão e simpatia pelos sofrimentos do povo e que reze para que a paz chegue…
Um Papa não é um político, vem sempre a cada sítio como homem religioso, pastor, peregrino: reza por nós, escuta-nos, dá-nos uma mensagem de confiança. Aqui, [foi importante] pedir aos cristãos locais que fiquem e não continuem a emigrar para o estrangeiro. Não podemos ver os nossos jovens partir para a Europa, a América ou a Austrália. A emigração está a matar-nos.
P. – É possível continuar a ter comunidades cristãs que sejam sinais de paz na região?
R. – Em Israel, há uma comunidade cristã, a única com uma linguagem diferente: reconciliação, perdão, partilha, direito dos pobres. O nosso papel é demasiado importante para ser negligenciado. Somos conhecidos por ser uma voz de moderação: não estamos com o Estado quando o Estado é violento, não estamos com os indivíduos quando eles utilizam a violência. A violência, para nós, está fora de questão. E isso perturba as autoridades.
Aqui [Israel], temos liberdade de movimentos e uma liberdade de expressão bem ampla. O nosso problema não vem do facto de sermos cristãos, mas de sermos também palestinianos, ou seja, árabes em Israel. E a política de Israel não é uma política de integração mas de tolerância. Quer dizer, uma das piores que pode existir.
P. – Nos restantes países da região como definiria a situação?
R. – Na Síria, os cristãos vivem livres e muito felizes, contrariamente ao Iraque, onde são severamente perseguidos e mortos. No Egipto, é igual, mas um pouco mais camuflado. O atentado do final do ano foi um exemplo disso, mas durante o ano há muitas tragédias como essa.
P. – No discurso do Ano Novo, o Papa pediu aos governos uma acção decisiva contra as perseguições aos cristãos. Que acções seriam importantes?
R. – É necessária solidariedade. Seria muito importante que os peregrinos que vêm à Terra Santa consagrem uma parte da sua peregrinação a visitar os cristãos, que conheçam também as pessoas e não apenas as pedras.
Até agora, os cristãos da Europa e do Ocidente estão do lado de Israel. Muito poucos conhecem os cristãos do Médio Oriente. Ficam espantados quando dizemos que somos cristãos e perguntam quando nos convertemos do islão. É preciso que rectifiquem a sua atitude e considerem os cristãos da Terra Santa como pessoas com direito a existir e como factor essencial para a paz e o diálogo.
P. – Uma das diferenças entre católicos melquitas e católicos latinos é que, na Igreja Melquita, há pessoas casadas que se tornam padres, como nas outras igrejas orientais.
R. – A nossa é uma Igreja oriental, bizantina. Estamos em comunhão com Roma. Mas temos 17 padres, num total de 30, que são casados. São muito bons, muito dedicados. Sinto-me muito orgulhoso deles.
P. – Como nasceu a ideia da escola de Ibillin?
R. – De uma necessidade. Não é uma invenção de luxo, é um projecto necessário e vital. Uma semanas depois da minha ordenação sacerdotal, o meu bispo mandou-me para a aldeia de Ibillin. Como não tinha sítio para dormir, vivi durante seis meses num carro que tinha trazido da Alemanha. Durante seis meses, foi o meu quarto de dormir e o meu escritório.
Tinha sido enviado por um mês. Mas o meu bispo era como todos – incluindo eu: têm memória curta, esquecem depressa. E ele esqueceu-se. Passei 38 anos na aldeia, à espera que passasse um mês.
Foi lá que aprendi que a comunidade árabe de Israel é o pequeno resto da grande comunidade palestiniana que foi etnicamente apagada, deportada, expulsa de suas casas. Só um pequeno resto ficou no território da Palestina que se tornou Israel.
P. – De que comunidade falamos hoje?
R. – Uma comunidade muito jovem: 75 por cento tem menos de 28 anos e metade tem menos de 14 anos. Em Ibillin, pensei: devo dar a minha vida pela educação da juventude. Foi a isso que me dediquei. Começámos por juntar livros que as famílias já não usavam, para fazer uma biblioteca pública.
Ao mesmo tempo, pensei fazer colónias de férias para as crianças. Elas têm dois meses de férias de Verão, nada para fazer nem para onde ir. Passam o tempo a olhar em volta as colónias judaicas que foram construídas nas suas terras confiscadas. E pensei: isto não pode continuar. Fizemos a primeira colónia de férias com 1127 crianças; na última, em 1980, tivemos mais de cinco mil crianças de 30 aldeias da Galileia. Foi gigantesco.
Entretanto, senti a necessidade de uma instituição de educação, uma escola secundária. Começámos a construir no início de 1982 e, em Setembro desse ano, abrimos a escola com 80 estudantes.
P. – Entretanto, começaram a pensar na universidade.
R. – Em 2001, começámos a trabalhar na universidade. Em Março de 2009, tivemos o reconhecimento do Conselho de Educação de Israel. Logo depois, a decisão foi ratificada pelo Governo. Sem dinheiro, não podemos ter uma universidade. Mas, se o tivermos, daqui a três ou quatro anos, teremos mais de quatro ou cinco mil estudantes: há todos os anos 12 mil estudantes da minoria árabe que vão para a Jordânia. Se conseguirmos recuperar cinco mil estudantes, será já uma grande universidade.
P. – A experiência é positiva?
R. – Muito. Os estudantes trabalham na escola, vivem em conjunto, conhecem-se como homens e mulheres com relações de amizade. A universidade vem completar um grande projecto que caminha desde 1981.
P. – Como arcebispo, deixou a escola. O que faz para construir a paz e a boa convivência entre as pessoas?
R. – Tornando-me arcebispo, não mudo de orientação: a necessidade do povo pela paz e pela justiça. Na escola, tinha uma responsabilidade limitada aquele espaço. Como arcebispo, estou em contacto com toda a população de Israel, da base ao topo: ministros, homens de negócios, agentes de educação e de universidade.
P. – Falou dos cristãos da Terra Santa como factor de diálogo, mas eles próprios se dividem em muitas igrejas e comunidades. Como podem ser sinal de reconciliação?
R. – Tudo o que diz respeito aos lugares santos – Santo Sepulcro, Igreja da Natividade, Belém, Nazaré – não tem nada a ver com os cristãos palestinianos. É tudo entre religiosos estrangeiros, franciscanos, gregos, etíopes. Por isso é que afirmamos que não estamos divididos em diferentes igrejas, mas unidos em diferentes igrejas. Como os irmãos de uma família que depois constituem outras famílias, mas permanecem unidos.
No Ocidente, aprenderam a distinguir, até exagerar a distinção, dividindo-se. Nós queremos afirmar a unidade na diversidade. E é possível. Infelizmente, quando um franciscano e um ortodoxo se disputam no Santo Sepulcro, nós pagamos o preço, somos acusados. Fico desolado, é triste.
P. – É por isso que escreve que Deus não é melquita nem católico nem ortodoxo?...
R. – Até diria mais: Deus não é mesmo cristão. Felizmente. Se não, que cristão seria? Um cristão reformado, re-reformado ou ainda não reformado? Deus está acima disso.
P. – Que críticas faz à política de Israel?
R. – Temos muitos problemas com Israel: somos cidadãos de segunda; há problemas de subsídio para famílias, escolas e municípios, pois há uma verba para judeus e outra para árabes. Há muito a fazer para que uma igualdade verdadeiramente democrática seja praticada em Israel. Esta é a visão global. Mas, se ficarmos no global, vamo-nos perder. É preciso descer do global ao local: é preciso ter relações de amizade com cada judeu que possamos encontrar. O indivíduo judeu é como o cristão: há uma diferença entre o cristão e a cristandade. Tenho muitos amigos judeus, tenho muito orgulho nisso. Mas há uma política de Israel que não gostamos. A política em relação aos árabes é nefasta, muito segregacionista. E isso não pode continuar.
P. – Diz que os católicos, em Israel, são árabes mas não muçulmanos, israelitas mas não judeus, católicos mas não de rito latino, orientais mas não ortodoxos. Minoritários em tudo…
R. – Sim, mas se perdermos o tempo a perguntar o que não somos, será uma existência muito triste. Se perguntarmos o que podemos fazer no interior desta grande diversidade, em vez de ver o negativo começamos a ver o potencial. E podemos fazer alguma coisa. É belo ser diferente mas complementar.
P. – Os cristãos crêem que o Messias já veio, os judeus esperam-no. Diz que é possível todos trabalharem para que o Messias venha ou volte…
R. – Sim… Creio que o Messias já veio, o irmão rabino acredita que ele ainda virá. Acreditamos os dois no Messias, trabalhemos juntos para fazer a nossa vida humana viável e respeitável para que ele venha – e ele nos dirá se já tinha vindo ou se vem. Não vale a pena perder tempo a ver as pessoas morrer na guerra, no ódio, na segregação, por causa de saber se o Messias veio ou virá. Deixemos isso para Deus.
P. – A noção de povo escolhido coloca dificuldades ao diálogo com os judeus?
R. – Sim, mas permite também extraordinárias possibilidades de diálogo. Não sei se um cristão poderia explicar-me o Evangelho sem referência ao Antigo Testamento. Eles completam-se: é a história de Deus na história humana.
Os muçulmanos e os judeus não precisam de aprender a viver juntos. Precisamos de nos recordar como vivíamos juntos há 60 anos. Até aí, havia judeus em todos os países árabes muçulmanos. Viviam bem, respeitados, eram tratados como os muçulmanos. O rei de Marrocos recusou entregar judeus à Gestapo. A história do judaísmo em Damasco é uma história proverbial de bondade. Em Alexandria ou no Iraque, eles eram senhores…
Precisamos de nos recordar disso, em vez de nos fixarmos na desconfiança que dura há 60 anos, não por causa da religião nem da raça, mas do território. Os judeus vieram da Europa e de outros lados para privar os palestinianos do seu território, que os judeus queriam chamar Israel, em vez de aceitar humildemente viver com os palestinianos. Optaram por deportá-los, tomando o seu lugar, destruíram mais de 460 aldeias e cidades palestinianas.
P. – O senhor foi também uma vítima das deportações?
R. – Sim, sim… Tinha oito anos, mas lembro-me dos pormenores todos…
P. – É possível manter essa ideia do regresso às antigas aldeias palestinianas?
R. – Não é possível esquecer. O meu pai morreu em 1992, aqui em Haifa. Era muito pobre. Transportámo-lo para o enterrar na aldeia de Bar-am [sul de Israel]. Os nossos casamentos, funerais, baptismos são feitos nas igrejas à volta das ruínas das nossas aldeias. Se os judeus esperaram dois mil anos para regressar, nós podemos esperar dois mil anos, também…
P. – Disse isso uma vez a Shimon Peres.
R. – Sim… Ele respondeu: “Tem razão.” Mas não há um líder político corajoso para reconhecer essa verdade… Muitas vezes tenho a impressão de que não estamos na Terra Prometida, estamos na terra das promessas. Promessas vazias, digo-o a todos os judeus, incluindo ministros, primeiro-ministro, chefe de Estado…
P. – E que lhe respondem?
R. – Dizem que tenho razão, mas que não sabem o que fazer. Não sabem? Se não soubessem nos anos 1940, não teriam criado o Estado de Israel.
P. – A questão nessa época foi a de não criar dois Estados, no início?
R. – Ninguém pensava em dois estados. Ninguém pensava mesmo no Estado de Israel. Israel expulsou os palestinianos das suas cidades, das suas terras e propagandeou que os palestinianos não existiam. Mas nós existíamos, estávamos cá, eles preferiram ser míopes. Há a famosa frase de Theodore Herzl: “Uma terra vazia deve pertencer a um povo que não tem Estado.” Mas a assistente dele disse-lhe que a Palestina era superpovoada. Ele respondeu: “Devemos ser míopes, fazer como se não houvesse ninguém.”
P. – Hoje, a situação está bloqueada. Devem fazer-se esforços para recordar como era possível viver em conjunto?
R. – Sim, é dessa fé de que os judeus são seres humanos como nós que partimos para uma nova visão na qual judeus e palestinianos têm que viver juntos. Não é possível viverem separados. Desde há 60 anos, os dois [lados] dizem que estamos condenados a viver juntos. É altura de mudar esta fórmula e começar a pensar que temos o privilégio de viver juntos. O que podemos fazer? Tudo, com um pouco de bom senso.
Os dois continuam a dizer: a Palestina pertence-me, a terra é minha. Mas nenhum conseguiu controlar a terra: Israel não é apenas um Estado judeu, há 20 por cento de árabes e 25 a 30 por cento de palestinianos sob ocupação israelita. A terra não pode pertencer nem aos judeus nem aos palestinianos. São os judeus e os palestinianos que têm que aprender como partilhar as suas vidas nesta terra. De outro modo, vamos até à destruição.
P. – Hoje, a maior parte das pessoas não compreende esse discurso…
R. – Porque os líderes não têm coragem de o promover. Digo-o por todo o lado: reuniões, igrejas, assembleias…
P. – Não há líderes comprometidos com a não-violência?
R. – Os líderes que podem representar os palestinianos estão na prisão, seja nas prisões árabes, seja nas prisões israelitas. Não nos faltam líderes, falta-nos a liberdade para que os líderes possam agir. O que falta é liberdade de expressão dos palestinianos.
P. – Falta uma figura como Mandela, Gandhi, Luther King, Desmond Tutu?...
R. – Talvez. São figuras de referência nos seus países. Uma vez estive com Tutu, num jantar com o [então] Presidente [norte-americano James] Carter. E Tutu disse-me subitamente: “Padre Chacour, tenho muito mais sorte que o senhor, porque sou um negro da África do Sul. Os brancos não queriam expulsar-nos, queriam que fôssemos seus escravos e nós recusámos. A vocês, Israel não queria que vocês fossem os seus escravos, queria que desaparecessem. Por isso temos mais esperança.” E ele tinha razão.
P. – São os radicais que, no fundo, fazem barulho, mais que as pessoas que querem viver pacificamente. Como cortar essa força dos radicais?
R. – Não é preciso cortar, é preciso antes dar vitamina às correntes moderadas, dando-lhes a possibilidade de se exprimirem e de terem alguns sucessos para gerar um pouco de esperança no coração dos jovens. Não vale a pena perder tempo com os radicais de um ou do outro lado. É inútil. Os radicais são sempre uma minoria. Mas são eles que marcam o compasso da marcha. Disse isso uma vez a Shimon Peres: vocês negligenciaram-nos a nós, cristãos, marginalizaram-nos mesmo, porque não somos violentos. Temos bombas muito poderosas, mas que não matam os corpos. Nós não podemos odiar e essa é a nossa força.
P. – Num dos seus livros, diz que o seu ideal é secar as lágrimas a cada judeu, cada muçulmano, cada cristão. Continua a ser?
R. – Desejo verdadeiramente não ver nenhum judeu, nenhum muçulmano ferido ou a chorar. Porque quem chora é um homem, que é imagem de Deus. Queria colocar um sorriso no lugar do medo, um sorriso de esperança no lugar do desespero.
P. – E essa esperança é possível ainda? Em breve?
R. – Claro que sim. Espero que o mais cedo possível.
A emigração está a matar-nos
A emigração está a matar-nos
Política de Israel em relação aos árabes é segregacionista
Três vezes candidato ao Nobel da Paz, o arcebispo católico-melquita da Galileia diz que a fuga dos cristãos do Médio Oriente às perseguições e atentados está a matar as comunidades dos lugares onde Jesus nasceu. E conta o que disse um dia ao actual Presidente israelita Shimon Peres, que acabaria a dar-lhe razão…
António Marujo
Acabado de ser ordenado padre, Elias Chacour chegou à pequena aldeia de Ibillin, na Galileia (Norte de Israel). Olhou à volta e viu miúdos a olhar o vazio. Decidiu dormir meio ano no carro que levara, enquanto preparava uma escola para os mais pequenos. Quatro décadas depois, essa pequena experiência provisória deu lugar a um complexo com mais de 4500 estudantes, incluindo universitários, e onde cabem cristãos, muçulmanos, drusos e mesmo judeus.
Elias Chacour é, desde Fevereiro de 2006, arcebispo de Haifa, Nazaré e Galileia, da Igreja Católica Melquita – a maior comunidade cristã em Israel, com cerca de 76 mil crentes (a segunda maior, grega ortodoxa, tem 40 mil). Foi ele quem acolheu o Papa na missa que Bento XVI celebrou em Nazaré, em Maio de 2009. Nomeado por três vezes (1986, 1989 e 1994) para o Nobel da Paz e com várias outras distinções no âmbito da paz e dos direitos humanos, incluindo de instituições dos Estados Unidos e de budistas japoneses, diz que o Nobel apenas traria mais “visibilidade” ao seu trabalho.
Nesta entrevista ao P2, Chacour recorda que Jesus e os seus discípulos nasceram na Galileia, critica a política de Israel, condena a violência do Estado ou dos indivíduos e diz que israelitas e palestinianos devem começar a pensar que têm o privilégio de viver juntos. Elias Chacour é autor de vários livros sobre a situação na região e a história de Ibillin.
P. – O Papa falou da situação dos cristãos no Médio Oriente quando esteve na região e voltou a falar nas últimas semanas. Como estão as coisas?
ELIAS CHACOUR – Nada mudou. Está tudo como tem estado.
P. – A visita do Papa deveria ter tido outras consequências?
R. – A visita recordou, antes de mais, que Jesus e os discípulos eram desta região, da Galileia. Nós somos os primeiros cristãos, que levaram a boa nova a Atenas, a Roma, a todo o lado… O Papa veio como peregrino e como pastor, para encorajar os cristãos a ficar.
P. – Pelos vistos, com poucos resultados…
R. – Não estamos à espera que o Papa traga soluções para os nossos problemas, mas que mostre compreensão e simpatia pelos sofrimentos do povo e que reze para que a paz chegue…
Um Papa não é um político, vem sempre a cada sítio como homem religioso, pastor, peregrino: reza por nós, escuta-nos, dá-nos uma mensagem de confiança. Aqui, [foi importante] pedir aos cristãos locais que fiquem e não continuem a emigrar para o estrangeiro. Não podemos ver os nossos jovens partir para a Europa, a América ou a Austrália. A emigração está a matar-nos.
P. – É possível continuar a ter comunidades cristãs que sejam sinais de paz na região?
R. – Em Israel, há uma comunidade cristã, a única com uma linguagem diferente: reconciliação, perdão, partilha, direito dos pobres. O nosso papel é demasiado importante para ser negligenciado. Somos conhecidos por ser uma voz de moderação: não estamos com o Estado quando o Estado é violento, não estamos com os indivíduos quando eles utilizam a violência. A violência, para nós, está fora de questão. E isso perturba as autoridades.
Aqui [Israel], temos liberdade de movimentos e uma liberdade de expressão bem ampla. O nosso problema não vem do facto de sermos cristãos, mas de sermos também palestinianos, ou seja, árabes em Israel. E a política de Israel não é uma política de integração mas de tolerância. Quer dizer, uma das piores que pode existir.
P. – Nos restantes países da região como definiria a situação?
R. – Na Síria, os cristãos vivem livres e muito felizes, contrariamente ao Iraque, onde são severamente perseguidos e mortos. No Egipto, é igual, mas um pouco mais camuflado. O atentado do final do ano foi um exemplo disso, mas durante o ano há muitas tragédias como essa.
P. – No discurso do Ano Novo, o Papa pediu aos governos uma acção decisiva contra as perseguições aos cristãos. Que acções seriam importantes?
R. – É necessária solidariedade. Seria muito importante que os peregrinos que vêm à Terra Santa consagrem uma parte da sua peregrinação a visitar os cristãos, que conheçam também as pessoas e não apenas as pedras.
Até agora, os cristãos da Europa e do Ocidente estão do lado de Israel. Muito poucos conhecem os cristãos do Médio Oriente. Ficam espantados quando dizemos que somos cristãos e perguntam quando nos convertemos do islão. É preciso que rectifiquem a sua atitude e considerem os cristãos da Terra Santa como pessoas com direito a existir e como factor essencial para a paz e o diálogo.
P. – Uma das diferenças entre católicos melquitas e católicos latinos é que, na Igreja Melquita, há pessoas casadas que se tornam padres, como nas outras igrejas orientais.
R. – A nossa é uma Igreja oriental, bizantina. Estamos em comunhão com Roma. Mas temos 17 padres, num total de 30, que são casados. São muito bons, muito dedicados. Sinto-me muito orgulhoso deles.
P. – Como nasceu a ideia da escola de Ibillin?
R. – De uma necessidade. Não é uma invenção de luxo, é um projecto necessário e vital. Uma semanas depois da minha ordenação sacerdotal, o meu bispo mandou-me para a aldeia de Ibillin. Como não tinha sítio para dormir, vivi durante seis meses num carro que tinha trazido da Alemanha. Durante seis meses, foi o meu quarto de dormir e o meu escritório.
Tinha sido enviado por um mês. Mas o meu bispo era como todos – incluindo eu: têm memória curta, esquecem depressa. E ele esqueceu-se. Passei 38 anos na aldeia, à espera que passasse um mês.
Foi lá que aprendi que a comunidade árabe de Israel é o pequeno resto da grande comunidade palestiniana que foi etnicamente apagada, deportada, expulsa de suas casas. Só um pequeno resto ficou no território da Palestina que se tornou Israel.
P. – De que comunidade falamos hoje?
R. – Uma comunidade muito jovem: 75 por cento tem menos de 28 anos e metade tem menos de 14 anos. Em Ibillin, pensei: devo dar a minha vida pela educação da juventude. Foi a isso que me dediquei. Começámos por juntar livros que as famílias já não usavam, para fazer uma biblioteca pública.
Ao mesmo tempo, pensei fazer colónias de férias para as crianças. Elas têm dois meses de férias de Verão, nada para fazer nem para onde ir. Passam o tempo a olhar em volta as colónias judaicas que foram construídas nas suas terras confiscadas. E pensei: isto não pode continuar. Fizemos a primeira colónia de férias com 1127 crianças; na última, em 1980, tivemos mais de cinco mil crianças de 30 aldeias da Galileia. Foi gigantesco.
Entretanto, senti a necessidade de uma instituição de educação, uma escola secundária. Começámos a construir no início de 1982 e, em Setembro desse ano, abrimos a escola com 80 estudantes.
P. – Entretanto, começaram a pensar na universidade.
R. – Em 2001, começámos a trabalhar na universidade. Em Março de 2009, tivemos o reconhecimento do Conselho de Educação de Israel. Logo depois, a decisão foi ratificada pelo Governo. Sem dinheiro, não podemos ter uma universidade. Mas, se o tivermos, daqui a três ou quatro anos, teremos mais de quatro ou cinco mil estudantes: há todos os anos 12 mil estudantes da minoria árabe que vão para a Jordânia. Se conseguirmos recuperar cinco mil estudantes, será já uma grande universidade.
P. – A experiência é positiva?
R. – Muito. Os estudantes trabalham na escola, vivem em conjunto, conhecem-se como homens e mulheres com relações de amizade. A universidade vem completar um grande projecto que caminha desde 1981.
P. – Como arcebispo, deixou a escola. O que faz para construir a paz e a boa convivência entre as pessoas?
R. – Tornando-me arcebispo, não mudo de orientação: a necessidade do povo pela paz e pela justiça. Na escola, tinha uma responsabilidade limitada aquele espaço. Como arcebispo, estou em contacto com toda a população de Israel, da base ao topo: ministros, homens de negócios, agentes de educação e de universidade.
P. – Falou dos cristãos da Terra Santa como factor de diálogo, mas eles próprios se dividem em muitas igrejas e comunidades. Como podem ser sinal de reconciliação?
R. – Tudo o que diz respeito aos lugares santos – Santo Sepulcro, Igreja da Natividade, Belém, Nazaré – não tem nada a ver com os cristãos palestinianos. É tudo entre religiosos estrangeiros, franciscanos, gregos, etíopes. Por isso é que afirmamos que não estamos divididos em diferentes igrejas, mas unidos em diferentes igrejas. Como os irmãos de uma família que depois constituem outras famílias, mas permanecem unidos.
No Ocidente, aprenderam a distinguir, até exagerar a distinção, dividindo-se. Nós queremos afirmar a unidade na diversidade. E é possível. Infelizmente, quando um franciscano e um ortodoxo se disputam no Santo Sepulcro, nós pagamos o preço, somos acusados. Fico desolado, é triste.
P. – É por isso que escreve que Deus não é melquita nem católico nem ortodoxo?...
R. – Até diria mais: Deus não é mesmo cristão. Felizmente. Se não, que cristão seria? Um cristão reformado, re-reformado ou ainda não reformado? Deus está acima disso.
P. – Que críticas faz à política de Israel?
R. – Temos muitos problemas com Israel: somos cidadãos de segunda; há problemas de subsídio para famílias, escolas e municípios, pois há uma verba para judeus e outra para árabes. Há muito a fazer para que uma igualdade verdadeiramente democrática seja praticada em Israel. Esta é a visão global. Mas, se ficarmos no global, vamo-nos perder. É preciso descer do global ao local: é preciso ter relações de amizade com cada judeu que possamos encontrar. O indivíduo judeu é como o cristão: há uma diferença entre o cristão e a cristandade. Tenho muitos amigos judeus, tenho muito orgulho nisso. Mas há uma política de Israel que não gostamos. A política em relação aos árabes é nefasta, muito segregacionista. E isso não pode continuar.
P. – Diz que os católicos, em Israel, são árabes mas não muçulmanos, israelitas mas não judeus, católicos mas não de rito latino, orientais mas não ortodoxos. Minoritários em tudo…
R. – Sim, mas se perdermos o tempo a perguntar o que não somos, será uma existência muito triste. Se perguntarmos o que podemos fazer no interior desta grande diversidade, em vez de ver o negativo começamos a ver o potencial. E podemos fazer alguma coisa. É belo ser diferente mas complementar.
P. – Os cristãos crêem que o Messias já veio, os judeus esperam-no. Diz que é possível todos trabalharem para que o Messias venha ou volte…
R. – Sim… Creio que o Messias já veio, o irmão rabino acredita que ele ainda virá. Acreditamos os dois no Messias, trabalhemos juntos para fazer a nossa vida humana viável e respeitável para que ele venha – e ele nos dirá se já tinha vindo ou se vem. Não vale a pena perder tempo a ver as pessoas morrer na guerra, no ódio, na segregação, por causa de saber se o Messias veio ou virá. Deixemos isso para Deus.
P. – A noção de povo escolhido coloca dificuldades ao diálogo com os judeus?
R. – Sim, mas permite também extraordinárias possibilidades de diálogo. Não sei se um cristão poderia explicar-me o Evangelho sem referência ao Antigo Testamento. Eles completam-se: é a história de Deus na história humana.
Os muçulmanos e os judeus não precisam de aprender a viver juntos. Precisamos de nos recordar como vivíamos juntos há 60 anos. Até aí, havia judeus em todos os países árabes muçulmanos. Viviam bem, respeitados, eram tratados como os muçulmanos. O rei de Marrocos recusou entregar judeus à Gestapo. A história do judaísmo em Damasco é uma história proverbial de bondade. Em Alexandria ou no Iraque, eles eram senhores…
Precisamos de nos recordar disso, em vez de nos fixarmos na desconfiança que dura há 60 anos, não por causa da religião nem da raça, mas do território. Os judeus vieram da Europa e de outros lados para privar os palestinianos do seu território, que os judeus queriam chamar Israel, em vez de aceitar humildemente viver com os palestinianos. Optaram por deportá-los, tomando o seu lugar, destruíram mais de 460 aldeias e cidades palestinianas.
P. – O senhor foi também uma vítima das deportações?
R. – Sim, sim… Tinha oito anos, mas lembro-me dos pormenores todos…
P. – É possível manter essa ideia do regresso às antigas aldeias palestinianas?
R. – Não é possível esquecer. O meu pai morreu em 1992, aqui em Haifa. Era muito pobre. Transportámo-lo para o enterrar na aldeia de Bar-am [sul de Israel]. Os nossos casamentos, funerais, baptismos são feitos nas igrejas à volta das ruínas das nossas aldeias. Se os judeus esperaram dois mil anos para regressar, nós podemos esperar dois mil anos, também…
P. – Disse isso uma vez a Shimon Peres.
R. – Sim… Ele respondeu: “Tem razão.” Mas não há um líder político corajoso para reconhecer essa verdade… Muitas vezes tenho a impressão de que não estamos na Terra Prometida, estamos na terra das promessas. Promessas vazias, digo-o a todos os judeus, incluindo ministros, primeiro-ministro, chefe de Estado…
P. – E que lhe respondem?
R. – Dizem que tenho razão, mas que não sabem o que fazer. Não sabem? Se não soubessem nos anos 1940, não teriam criado o Estado de Israel.
P. – A questão nessa época foi a de não criar dois Estados, no início?
R. – Ninguém pensava em dois estados. Ninguém pensava mesmo no Estado de Israel. Israel expulsou os palestinianos das suas cidades, das suas terras e propagandeou que os palestinianos não existiam. Mas nós existíamos, estávamos cá, eles preferiram ser míopes. Há a famosa frase de Theodore Herzl: “Uma terra vazia deve pertencer a um povo que não tem Estado.” Mas a assistente dele disse-lhe que a Palestina era superpovoada. Ele respondeu: “Devemos ser míopes, fazer como se não houvesse ninguém.”
P. – Hoje, a situação está bloqueada. Devem fazer-se esforços para recordar como era possível viver em conjunto?
R. – Sim, é dessa fé de que os judeus são seres humanos como nós que partimos para uma nova visão na qual judeus e palestinianos têm que viver juntos. Não é possível viverem separados. Desde há 60 anos, os dois [lados] dizem que estamos condenados a viver juntos. É altura de mudar esta fórmula e começar a pensar que temos o privilégio de viver juntos. O que podemos fazer? Tudo, com um pouco de bom senso.
Os dois continuam a dizer: a Palestina pertence-me, a terra é minha. Mas nenhum conseguiu controlar a terra: Israel não é apenas um Estado judeu, há 20 por cento de árabes e 25 a 30 por cento de palestinianos sob ocupação israelita. A terra não pode pertencer nem aos judeus nem aos palestinianos. São os judeus e os palestinianos que têm que aprender como partilhar as suas vidas nesta terra. De outro modo, vamos até à destruição.
P. – Hoje, a maior parte das pessoas não compreende esse discurso…
R. – Porque os líderes não têm coragem de o promover. Digo-o por todo o lado: reuniões, igrejas, assembleias…
P. – Não há líderes comprometidos com a não-violência?
R. – Os líderes que podem representar os palestinianos estão na prisão, seja nas prisões árabes, seja nas prisões israelitas. Não nos faltam líderes, falta-nos a liberdade para que os líderes possam agir. O que falta é liberdade de expressão dos palestinianos.
P. – Falta uma figura como Mandela, Gandhi, Luther King, Desmond Tutu?...
R. – Talvez. São figuras de referência nos seus países. Uma vez estive com Tutu, num jantar com o [então] Presidente [norte-americano James] Carter. E Tutu disse-me subitamente: “Padre Chacour, tenho muito mais sorte que o senhor, porque sou um negro da África do Sul. Os brancos não queriam expulsar-nos, queriam que fôssemos seus escravos e nós recusámos. A vocês, Israel não queria que vocês fossem os seus escravos, queria que desaparecessem. Por isso temos mais esperança.” E ele tinha razão.
P. – São os radicais que, no fundo, fazem barulho, mais que as pessoas que querem viver pacificamente. Como cortar essa força dos radicais?
R. – Não é preciso cortar, é preciso antes dar vitamina às correntes moderadas, dando-lhes a possibilidade de se exprimirem e de terem alguns sucessos para gerar um pouco de esperança no coração dos jovens. Não vale a pena perder tempo com os radicais de um ou do outro lado. É inútil. Os radicais são sempre uma minoria. Mas são eles que marcam o compasso da marcha. Disse isso uma vez a Shimon Peres: vocês negligenciaram-nos a nós, cristãos, marginalizaram-nos mesmo, porque não somos violentos. Temos bombas muito poderosas, mas que não matam os corpos. Nós não podemos odiar e essa é a nossa força.
P. – Num dos seus livros, diz que o seu ideal é secar as lágrimas a cada judeu, cada muçulmano, cada cristão. Continua a ser?
R. – Desejo verdadeiramente não ver nenhum judeu, nenhum muçulmano ferido ou a chorar. Porque quem chora é um homem, que é imagem de Deus. Queria colocar um sorriso no lugar do medo, um sorriso de esperança no lugar do desespero.
P. – E essa esperança é possível ainda? Em breve?
R. – Claro que sim. Espero que o mais cedo possível.
A religião oprime quando impede a alegria a nível sexual
«A Igreja Católica tem muita dificuldade em lidar com o prazer e a autonomia. Não sabe, por isso, como lidar com a sexualidade, diz Anselmo Borges, padre, teólogo e professor de Filosofia na Universidade de Coimbra. Autor de vários livros nas áreas da teologia e da ética, conhecido pelas suas posições críticas de vários aspectos da doutrina oficial católica, Anselmo Borges explica ainda porque é que a Igreja recuperou algumas causas da morte de Jesus, quando propaga a imagem de um Deus que aterroriza.
Entrevista de António Marujo
Ilustração Nuno Saraiva
Os grandes valores da modernidade vêm fundamentalmente da Bíblia e o cristianismo trouxe ao mundo a ideia da dignidade divina de todos os seres humanos. Mas, apesar disso, a Igreja Católica lutou contra ideias como os direitos humanos, a secularização e a separação da Igreja e do Estado. O padre Anselmo Borges, membro da Sociedade Missionária da Boa Nova, admite que a religião tem sido e pode ser opressora, mas que só pode entender-se como força de liberdade e de libertação.
Nascido em 1944, em Resende, Anselmo Borges é uma das vozes singulares do catolicismo português. Dedicado há anos ao ensino da filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, tem privilegiado a ética como área de reflexão. Mas a sua intervenção alarga-se ao campo mediático: colunista semanal do Diário de Notícias, publicou vários livros, entre os quais Janela do (In)visível, Religião: Opressão ou Libertação?, Morte e Esperança, Corpo e Transcendência, Janela do (In)finito. O último, Religião e Diálogo Inter-Religioso, publicado no final de 2010, fala do outro como fascínio e ameaça. “Talvez não seja por acaso que a primeira edição esgotou em três meses”, comenta, porque “as pessoas andam preocupadas com a questão do outro, hoje mais sentido como ameaça”.
Alimentando o gosto do pensar, Anselmo Borges diz que “a grande crise do nosso tempo é que já não há espaço para as grandes perguntas” Afirma que a Igreja precisa de assumir o valor da autonomia, confrontar-se com o pluralismo e com as neurociências, repensar a questão da sexualidade, da lei do celibato obrigatório e do lugar das mulheres. Organizador de dois congressos internacionais de teologia – sobre Deus no Século XXI e o futuro do cristianismo (cujas actas estão publicadas) e, em Outubro, sobre Religião e (In)felicidade – Anselmo Borges reflecte, aqui, sobre as razões da difícil relação do catolicismo com alguns temas da ética e da modernidade. E diz que a eutanásia é um problema em aberto…
P. – Tomo o título de um dos seus livros para perguntar se a religião é opressão ou libertação.
R. – A religião pode ser, tem sido e é, de facto, uma coisa e outra. Quando esmaga o ser humano, quando em nome de Deus se mata ou se impede a crítica ou o desenvolvimento das pessoas, quando em seu nome se cometem injustiças, aí a religião é opressora.
E também oprimiu quando trouxe medos, com coisas como o inferno, com o impedimento da alegria a nível sexual, todo esse universo de pânico. Mas, pela sua própria dinâmica, ela é libertadora. Toda a religião arranca desta pergunta: o quê ou quem liberta e salva? Na sua raiz, ela só pode entender-se enquanto força de liberdade e libertação.
P. – Um dos medos que refere é a sexualidade. O cristianismo tem medo dela?
R. – É importante desfazer equívocos. Uma coisa é a Bíblia e a mensagem originária cristã, com Jesus Cristo. É interessante ver que Jesus, perante a sexualidade, mesmo confrontado com desvios, é tolerante e perdoa. A Igreja parece ter posto o acento no sexo e nos seus desvios, mas Jesus o que condenou de forma veemente foi fundamentalmente a ganância, a avareza, a opressão: “Não podeis servir a Deus e ao dinheiro”.
É necessário distinguir entre a Bíblia, onde se encontra um dos livros mais exaltantes do amor erótico, que é o Cântico dos Cânticos, e, depois, o mal-estar do cristianismo histórico em relação à sexualidade, que provém fundamentalmente dos gnósticos e de Santo Agostinho.
Santo Agostinho é herdeiro de uma escola gnóstica, que é o maniqueísmo, que leva a gnose à radicalidade.
P. – Então, Santo Agostinho trouxe também problemas…
R. – Ele é um génio, mas trouxe ao Ocidente e ao cristianismo histórico verdadeiras tragédias do ponto de vista sexual. Ele era maniqueu e, a partir do maniqueísmo, tinha resolvido o problema do mal: há dois princípios, um do bem e outro do mal. Há uma questão que se coloca sobretudo aos crentes: se Deus é infinitamente bom e omnipotente, como se explica o mal? Através do maniqueísmo, ele tinha resolvido o problema. Mas, uma vez convertido, precisa de encontrar uma solução, pois o cristianismo diz que Deus, quando olhou para o mundo, viu que tudo era bom. Donde vem então o mal? Quando se converte ao cristianismo, Santo Agostinho tem de encontrar a origem do mal. Vai à Carta aos Romanos, de São Paulo, e lê: “Adão, no qual todos pecaram.” Mas o grego (ele só conhecia o latim) diz: “Porque todos pecaram.” Uma coisa é Adão ser o primeiro que peca, outra é dizer que, nele, todos pecaram. E, de tal modo pecaram, que todos transportam esse pecado, que tem uma origem sexual e se transmite sexualmente.
Este é o mal que vem ao Ocidente através da gnose, do maniqueísmo, de Santo Agostinho. Todos são concebidos em pecado e desse pecado original só o baptismo liberta. Assim, não hesitou em “enviar” para o Inferno as crianças não baptizadas, porque vinham com o pecado original…
P. – Num dos seus textos, diz que a Igreja perdeu a credibilidade em termos de doutrina sexual. É assim?
R. – A sexualidade também tem a ver com o prazer e este confronta-se com o poder. Na medida em que a Igreja se tornou uma instituição de poder, tem muita dificuldade em lidar com o prazer e a autonomia. Não sabe, por isso, como lidar com a sexualidade, com as pessoas que estão no mundo de modo autónomo. Essa é uma das questões fundamentais da Igreja.
P. – Por isso surgem as questões relativas ao planeamento familiar, aborto, eutanásia…
R. – A Igreja lutou contra a modernidade embora, por outro lado, os grandes valores da modernidade venham fundamentalmente da Bíblia. Não é por acaso que é no Ocidente que se dá a modernidade, a secularização, a separação da Igreja e do Estado, que tem a ver com a autonomia, os direitos humanos… São valores que vêm da Bíblia, mas que os iluministas tiveram de impor contra a Igreja oficial.
Há um Papa que proibiu a leitura da Bíblia, outro refere-se à “detestável doutrina” dos direitos humanos. No entanto, são valores que vêm fundamentalmente da Bíblia. Afirmam-se a partir da ideia de um Deus transcendente, que cria por amor, livremente. Se Deus cria livremente, só pode criar criaturas autónomas, homens e mulheres livres, e as realidades terrestres seguem as suas leis, sem precisarem da tutela da Igreja. Por outro lado, o cristianismo trouxe ao mundo a ideia da dignidade divina de todos os seres humanos, independentemente da cor, etnia, sexo, posição social, nacionalidade ou religião.
P. – A autonomia relaciona-se com os limites, que a sociedade também coloca, e com a ética, que foi sempre construída também com base religiosa. Hans Küng propõe uma nova ética mundial. Mas se a religião tem problemas com a modernidade, como se faz o equilíbrio entre os limites e o desejo de autonomia inerente ao ser humano?
R. – Quando Hans Küng fala de uma ética mundial, refere-se mais a um ethos – aquela atitude radicalmente humana perante as grandes questões humanas, em que haja um consenso mínimo. Refere-se a um conjunto de bases éticas em que seja possível o acordo de todos os homens, crentes ou não-crentes: o compromisso com o princípio da humanitariedade, que obriga a respeitar a dignidade inviolável da pessoa humana, o compromisso com a não-violência e o respeito pela vida, o compromisso com a justiça e a solidariedade, o compromisso com a igualdade e companheirismo entre homens e mulheres.
Não se pode basear a ética na religião, porque a ética é autónoma, isto é, não é antes de mais uma questão religiosa, mas humana. E é possível e imprescindível um consenso ético mínimo nas questões que hoje nos afligem, como a bioética, a justiça, a ecologia. É possível uma ética autónoma, também porque somos seres racionais e sociais. Sendo livres, somos capazes de nos darmos a nós próprios uma ética na responsabilidade. A liberdade implica a responsabilidade: somos capazes de nos darmos regras, somos capazes de responder por isso.
A religião relaciona-se com a ética, mas vincula-se a ela devido a outros problemas, que têm a ver com a culpa, com as vítimas inocentes, com a esperança, e com o sentido último…
P. – Também há uma dimensão social da ética…
R. – A ética é fundamentalmente social, pois o ser humano só existe com outros seres humanos. Se só houvesse um, nunca despertaria para si mesmo enquanto tal. O homem só é homem com outros. Ser homem e ser em relação é a mesma coisa.
Há sempre uma co-pertença de mim aos outros e dos outros a mim, e aos passados e aos futuros. Porque a identidade própria é sempre atravessada pela mediação do outro. Só tomo consciência de mim passando pelo outro, pela alteridade. A alteridade é constitutiva da identidade.
P. – Fala-se de grandes questões do mundo como problemas éticos: pobreza, direitos humanos, desenvolvimento. De que modo isso se relaciona com o que referiu?
R. – Hoje tomamos consciência de que há uma só humanidade. Se tomamos consciência de que cada pessoa só é pessoa em relação a cada um dos outros seres humanos, é uma vergonha que 20 por cento da humanidade controle 80 por cento da riqueza e que quase metade da humanidade tenha que viver com menos de dois euros por dia.
Todos pertencemos a todos. Um homem só é homem na humanidade, no seu vínculo a todos os outros. Mas, se não formos solidários por uma questão ética, de humanidade, então sejamo-lo ao menos por egoísmo esclarecido. Porque vamos entrar numa conflitualidade sem limites: quem julga que nunca mais haverá revoluções anda enganado.
P. – Esse seria também um modo de resolver o debate sobre se os direitos humanos são uma construção ocidental? Ou esta é uma falsa questão?
R. – Sou contra o relativismo e proponho o perspectivismo, que é diferente. Há algo que transcende o relativismo cultural. Julgo que tem de haver algo de transcultural. Esse mínimo, o que seria? Pelo menos, o entendimento nesta pergunta: “O que é ser homem?” Porque, se não houver algo de comum, como podemos dialogar uns com os outros? Há esta universalidade: a dignidade do ser humano.
A partir daqui, é possível e necessário avançar para um ethos mundial, o que se traduz nos direitos humanos, embora eu compreenda que haja quem critique – e não apenas por meros interesses políticos. A Declaração dos Direitos Humanos, tal qual está formulada, incide muito na dimensão individual. Talvez seja necessária também uma carta dos direitos humanos, incidindo mais nos direitos de grupos, das culturas, e também nos deveres…
P. – No seu último livro, Religião e Diálogo Inter-Religioso, escreve que “o outro é vivido sempre como fascinante e ameaça”. Não estamos hoje mais a viver o outro (o islão, o estrangeiro, o imigrante) como ameaça do que como fascínio?
R. – As pessoas andam preocupadas com a questão do outro, hoje mais sentido como ameaça, como dizem as sondagens, concretamente na França e na Alemanha. Por um lado, há a crise económica; por outro, o diálogo não pode ser unidireccional. Não se pode esquecer que o cristianismo é hoje a religião mais perseguida no mundo e nomeadamente no Médio Oriente, onde parece haver um plano para fazer desaparecer a presença dos cristãos.
Julgo que há condições fundamentais para o diálogo: o fim da leitura literal dos textos sagrados e a separação da Igreja e do Estado. Os Estados não podem ser confessionais. Isso que custou tanto à Igreja Católica tem de ser aprendido também pelos muçulmanos. Depois, as religiões têm de dialogar, porque nenhuma possui a verdade toda sobre Deus e o sagrado. O fundamentalismo – há fundamentalismo religioso, económico, político, filosófico – tem a sua origem na ignorância e na estupidez, pois julga possuir o fundamento. Ora, quem é o ser humano, finito, para possuir o fundamento?
P. – Também nos confrontamos com a crítica da hierarquia católica, a começar pelo actual Papa Bento XVI, ao relativismo ético, que aponta para muitas questões no âmbito da moral sexual…
R. – É evidente que quanto ao sexo não vale tudo. Por outro lado, dá a impressão que a Igreja vive obcecada com o sexo. Ora, o cristianismo é realmente uma religião do corpo. Porque, logo no livro do Génesis, se diz que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, “homem e mulher os criou” e achou que isso era muito bom. Deus mesmo, em Jesus Cristo, assumiu a corporeidade humana na sua fragilidade. E os cristãos têm como núcleo da sua fé a ressurreição de Jesus e a ressurreição dos mortos.
Como é que uma religião do corpo se dá depois tão mal com o corpo, historicamente? É espantoso e é necessário investigar isso...
P. – Dá-se mal e nega a dimensão transcendente do corpo, aludindo ao que trata no seu livro Corpo e Transcendência…
R. – O corpo humano vivo é alguém, alguém que está aberto à transcendência. O cristianismo é a grande resposta a esta corporeidade, que se abre à transcendência do próprio Deus e que espera a ressurreição dos mortos. Mas a Igreja oficial deu-se muito mal com a matéria, com o corpo. Há o problema do poder e, voltando à moral, do celibato não assumido.
O facto de a ética ter sido entregue a moralistas que eram padres, com um celibato obrigatório, por vezes não assumido, eventualmente infeliz, tudo isso envenenou o corpo e a sexualidade. E envenenou a mulher, porque a moral esteve entregue a homens, que talvez vivessem uma má relação com o corpo e que tinham de amaldiçoar a mulher como o fruto proibido.
P. – Essa má relação com o corpo não explica também o mal-estar da nossa sociedade em relação à morte?
R. – Quando falamos do corpo, falamos do ser humano, do corpo-pessoa, que é este enigma, esta exaltação, esta alegria, esta pergunta infinita, mas que se confronta com o limite. E é daqui que surge a pergunta religiosa, porque, quando nos damos conta do limite, perguntamos por aquilo que está para lá do limite, perguntamos pela transcendência. Surge aqui a questão da morte.
Há realmente hoje um enorme mal-estar em relação à morte, também porque se não quer aceitar o limite. O que se faz para manter o corpo jovem!... Mas envelhecemos e morreremos. E é fundamental reconciliar-se com a mortalidade.
P. – O mesmo mal-estar existe com a sexualidade.
R. – A relação com a sexualidade, hoje, não é boa, não é sadia. Passou-se do tabu ao vale tudo. E as pessoas percebem que não vale tudo. Um grande teólogo, renovador da moral católica, do qual agora se fala pouco, Bernard Häring, disse-me uma vez: “A Igreja Católica também tem culpa disso. Fez tabu de tudo e as pessoas quiseram depois libertar-se, mas libertaram-se mal.” Por isso hoje vivemos este mal-estar.
Há uma enorme crise de uma sociedade que apostou no espectáculo, voltada para o ter, para o consumir sem limites. A partir daí, a grande pergunta é a da morte. Da qual se fez tabu. Ora, uma sociedade que não sabe conviver com a morte também não sabe viver com a vida.
Penso mesmo que, para perceber uma sociedade, mais importante do que saber como é que nela se vive é saber como é que nela se morre e nela se trata os mortos. Ora, na nossa sociedade, sobretudo por causa da desafeição em relação à religião já não há esperança em relação ao além. Então, numa sociedade sem eternidade, só ficam instantes que não fazem tecido e, por isso, se devoram uns aos outros. A um agora segue-se outro agora... e assim sucessivamente. E é preciso viver sofregamente o instante, consumir, correr, afirmar-se na vertigem, porque, depois, não há mais nada. Este é hoje o nosso problema maior.
Não sou a favor do pensamento mórbido sobre a morte – infelizmente, a própria Igreja também utilizou o medo da morte para exercer o poder –, mas penso que o pensamento sadio sobre a morte traz sabedoria ao viver.
P. – O poder é uma questão-chave...
R. – O poder é fundamental para perceber as grandes problemáticas na história da Igreja, concretamente na sua contradição com o cristianismo originário.
P. – O cristianismo tem a ressurreição como resposta à morte, mas não sabe falar dela.
R. – A ressurreição deve entender-se na dinâmica do corpo-pessoa aberto à transcendência. Uma vez que a Igreja não sabe lidar com o corpo, fala da alma. Mas hoje, no quadro da antropologia, não se pode pensar em dualismo de alma e corpo.
De qualquer forma, em relação ao para lá da morte, ficamos sem palavras. É o indizível. Porque nós estamos preparados para pensar no quadro do espaço e do tempo, e a morte retira-nos precisamente do espaço e do tempo. Mas a fé do cristianismo na ressurreição é essencial. Quem acredita em Deus que é amor, crê que não será abandonado por Deus nem mesmo na morte. Na morte, em vez de cair no nada, o crente espera entrar na plenitude da vida em Deus.
P. – Nesse seu livro, refere-se às respostas perante a morte: resignação face ao nada, integração no todo, reencarnação, ressurreição...
R. – Julgo que dificilmente se consegue conviver com o nada. Então, como as pessoas não toleram o nada, é interessante observar que 25 por cento dos católicos franceses acreditam na reencarnação. Entendo isso, mas penso que a reencarnação é insustentável até do ponto de vista antropológico.
A ressurreição é a proposta da fé cristã. Mas ela não pode ser entendida como a reanimação do cadáver. Só se pode dizer que a pessoa na sua identidade encontrará a plenitude da vida em Deus. É um mistério do qual apenas encontramos acenos no amor e na música.
P. – Por vezes diz que a Igreja esqueceu o essencial: a ressurreição, a proposta de liberdade, a autonomia e transcendência do ser humano…
R. – Quase sou levado a dizer que, desgraçadamente, a Igreja pode ser acusada por alguns de ter recuperado grande parte das causas que levaram Jesus à morte.
P. – Quais?
R. – O que levou Jesus à morte foi a religião oficial dos sacrifícios, que explorava o povo. Jesus enfrentou-se fundamentalmente com o sacerdócio do Templo, pois Deus dizia: “Eu não quero sacrifícios, quero misericórdia.” Jesus veio anunciar um Deus de amor, não precisa de sacrifícios.
As religiões estão assentes no sacrifício. Jesus enfrentou o sacerdócio do Templo e essa foi uma das causas da sua morte. A outra foi que ele morreu como subversivo, como alguém que subleva a ordem social e política injusta.
Encontramos aqui a mensagem nuclear de Jesus, que o leva à morte: um Deus de amor, que não precisa dos sacrifícios e que quer que todos os homens e mulheres se amem, que haja justiça e fraternidade no mundo. A Igreja recuperou, neste sentido, algumas das causas da morte de Jesus: um Deus que mete medo e aterroriza. E nem sempre dentro da Igreja reina a verdade limpa e honesta da transparência e da justiça: pense no Vaticano e na Cúria Romana.
P. – É um Deus imoral que provoca o aparecimento do ateísmo, como sugere em vários dos textos do livro Janela do (In)visível?
R. – Um deus que mete medo, que humilha as pessoas e impede a sua alegria, que leva à violência e à guerra, é um deus em relação ao qual só há uma atitude digna: ser ateu. O mesmo se diga da doutrina que diz que Deus precisou da morte do Filho para aplacar a sua ira. Este deus seria pior que eu, é imoral, porque mata a vida, quer o sangue do Filho, precisa de vítimas. Isso é absolutamente intolerável. Um Deus que exige o sangue das vítimas é o Deus da vingança. Ora, se Deus se vinga, nós também podemos vingar-nos, podemos ir para a guerra.
O Deus que Jesus anunciou constituiu uma revolução. Jesus não veio anunciar que há Deus, porque Deus nesse tempo era uma evidência social. O núcleo da sua mensagem é que Deus é amor. Esta é que é a notícia boa e felicitante do Evangelho. Ora, o que a Igreja pregou muitas vezes, ao longo dos tempos, foi uma má notícia, o “disangelho”, no dizer de Nietzsche.
P. – O que explica uma parte do ateísmo. Mas, em muitos dos seus textos, tem uma visão positiva do ateísmo.
R. – Sim. Ai de nós se não houvesse ateus que sabem o que isso quer dizer…
P. – Ateus graças a Deus?
R. – Não… Admiro os ateus que, quando ainda não havia liberdade religiosa e ser ateu significava o fogo da Inquisição e implicava, no quadro doutrinal da época, ir para o Inferno, ousaram, em nome da liberdade crítica, da razão e da própria dignidade de Deus e do homem, pôr a questão de Deus e ser ateus. Esses são santos da humanidade, porque foram eles que obrigaram a criticar imagens falsas e ignominiosas de Deus.
Perante os ateus, é necessário perguntar em que Deus não acreditam. Os crentes, se também souberem o que isso quer dizer, talvez estejam de acordo com alguns ateus, dizendo: num Deus vingativo, guerreiro, em nome do qual a humanidade é explorada, nesse Deus também não acreditamos.
P. – Tem um texto com o título “Karl Marx actual”. Vindo de um teólogo, soará estranho a algumas pessoas. Ainda mais hoje, em que o marxismo está fora de moda, mesmo apesar da crise… Como explica isso?
R. – Karl Marx ensinou-nos, por exemplo, que ninguém fala a partir de um lugar neutro. Todos falamos a partir de um lugar social. A leitura que Marx faz em relação ao dinheiro enquanto mediador das relações humanas traduz a monetarização do humano. O dinheiro é o deus que tudo domina, ao qual homens e mulheres prestam culto.
Estes aspectos mostram a actualidade de Marx. Tal como Galileu, que mostrou que o homem não era o centro do universo, Darwin, que ensinou que provimos da cadeia da evolução, ou Freud, que mostra que a razão não domina tudo, Marx também nos ensina a ver que nenhum de nós fala a partir de um lugar neutro. A palavra justiça não é neutra, como não há consensos neutros no domínio social, porque cada um fala a partir de um lugar próprio.
O conceito de justiça não será o mesmo para um grande capitalista e para um pai ou uma mãe desempregados que têm de alimentar três ou quatro filhos. O chamado “socialismo real” morreu, felizmente, mas Marx tem muita actualidade, sobretudo nestas dimensões.
P. – A religião continua a ser a busca de sentido?
R. – Do sentido, do sentido último. Por isso é que nunca desaparecerá. E aqui reencontramos Marx. Ele tinha razão ao criticar a religião como ideologia. Mas ele não tinha razão ao pensar que, uma vez estabelecida a justiça social, a religião desapareceria. É que, mesmo que fosse possível uma sociedade transparente e sem conflitos sociais, a religião não desapareceria, porque há sempre o problema do sentido final, da morte, do tédio, como dizia Ernst Bloch.
P. – Na prática e na disciplina da Igreja, quais são os aspectos mais importantes a mudar?
R. – Tarefa fundamental é testemunhar, por palavras e obras, o Evangelho de Jesus e ajudar as pessoas a fazer a experiência de Deus.
A Igreja precisa de assumir o valor da autonomia, em vários domínios, como a participação dos leigos, a liberdade de investigação e ensino, abrir-se a uma cosmovisão processual e não estática, confrontar-se com o pluralismo, com as novas ciências, nomeadamente as neurociências. A grande crise do nosso tempo é que já não há espaço para as grandes perguntas, sendo, pois missão da Igreja manter acesa a pergunta. Para isso, ela própria tem de deixar-se interrogar.
Tem de repensar a questão da sexualidade, nomeadamente dos anticonceptivos, da lei do celibato obrigatório. As mulheres não podem continuar a ser discriminadas. Não sou ingénuo: tem de haver alguma organização dentro da Igreja, mas uma coisa é o ministério e outra é o poder enquanto domínio e carreirismo.
P. – A função clerical de hoje não tem mais a ver com o sacerdócio judaico do tempo de Jesus do que com os ministérios dos primeiros tempos do cristianismo?
R. – A grande categoria religiosa é o sagrado, o mistério. O sagrado é o referente de todas as religiões. Se não houvesse experiência do sagrado, do mistério, as religiões não teriam lugar. Mas isso não implica a sacralização dos sacerdotes para oferecer sacrifícios. O Novo Testamento evitou a palavra hiereus, que significa sacerdote. Na Igreja primitiva, fala-se em ministérios e não em sacerdotes.
P. – Como deveria a Igreja encarar a questão do limite em casos como o aborto ou a eutanásia?
R. – Sou contra o aborto, que é um mal, objectivamente. Deveria haver educação sexual séria, também para que o aborto fosse evitado e para que as pessoas pudessem exercer a sua autonomia sexual no amor, na alegria e na dignidade.
Dito isto, a Igreja deveria estar muito atenta aos progressos científicos e distinguir entre vida, vida humana e pessoa humana. Assim, por exemplo, até à nidação, uma vez que pode haver ainda gémeos monozigóticos, não temos propriamente um indivíduo, de tal modo que a interrupção do processo não se pode chamar um homicídio.
Acrescento que a Igreja tem que saber argumentar, também do ponto de vista ético. Quando se diz que só se devem usar meios anticoncepcionais naturais, pergunto: o que são métodos naturais, se foi o homem que os descobriu? A Igreja torna o seu discurso não crível, porque, por vezes, a argumentação é frágil ou inexistente.
Indo à sua pergunta, julgo que um cristão não estava impedido de votar favoravelmente o projecto de lei da descriminalização do aborto. O que é inadmissível é que, depois, segundo a lei, a mulher que aborta não pague taxa moderadora e seja possível fazer dois ou mais abortos por ano.
P. – E quanto à eutanásia?
R. – A eutanásia é um problema em aberto, que não pode ser tabu. Se Deus deu a vida humana, deu-a mesmo. A argumentação que muitos cristãos apresentam de que não se pode intervir no fim da vida porque esta é dom de Deus não tem em conta a autonomia.
P. – Dizia que a vida é um dom de Deus…
R. – Se Deus deu a vida, a vida, para o ser humano, é um dom e não é um fardo. E, com autonomia, tem pelo menos o direito de pôr a questão da eutanásia. É uma questão em aberto. Claro que neste problema, como no aborto, estamos perante questões-limite, que devem ser tratadas com toda a responsabilidade. Ninguém pode acabar com a vida de modo irresponsável, porque nós também pertencemos aos outros. E é preciso sublinhar que só o próprio é que poderá dispor da sua vida, em determinadas circunstâncias e mediante um pedido de ajuda consciente e consistente.
Exige-se imenso cuidado no debate, porque vivemos numa sociedade na qual predomina o poder do dinheiro e o economicismo, há pouco respeito pela vida e os velhos são menosprezados e até excluídos.