domingo, fevereiro 12

Trabalho e Ambiente

Nesta série de celebrações que dedicamos à reflexão sobre diversas questões do trabalho, propusémos ao José António Raimundo que pensasse sobre o Trabalho e o Ambiente. O texto que ele nos trouxe, e que podemos ler a seguir, foi originalmente publicado em 2004 mas continua plenamente actual. Aqui fica:

Pensar Ambiente é Mudar de Rumo
É lícito defender a ideia de que a radicalidade das preocupações ambientais está sempre relacionada com o distanciamento, no tempo e no espaço, que conseguimos ter em relação à realidade, em relação ao mundo, em relação à vida.
O mesmo acontece com o património histórico, artístico ou arquitectónico, perante o qual o gesto da utilização do dia a dia seria irrelevante se o seu horizonte de vida se situasse em 50 ou 100 anos. No entanto, uma vez que se almeja a eternidade, cada acto de deterioração, por mais pequeno que seja, desde que não tenha uma resposta de auto-regeneração, adquire o carácter de drama histórico. Algum dia, alguma geração deixará de usufruir deste bem, em consequência da repetição de actos banais, até frequentemente cuidadosos, de gerações passadas.
A uma universidade exige-se esta capacidade de compreender os extremos - do instante à eternidade, da mais pequena partícula ao Universo, do mais etéreo fenómeno ao mais rudemente materializável - e conseguir, em simultâneo, contribuir para a melhoria da vida em momentos reais, quase vulgares quando observados com uma curta visão histórica.
É pois, deste modo, que desafios aparentemente menores podem ser profundamente radicais numa perspectiva cósmica. Estão nessa situação as iniciativas básicas em que assentam as políticas ambientais de diversas universidades europeias: a gestão da energia e do consumo de água, a política de transportes, mobilidade e acessibilidade, a política de consumíveis reciclados e recicláveis, o controlo das emissões gasosas e a gestão de resíduos.
Naturalmente que, em simultâneo, e numa outra esfera de preocupações, estão todas as actividades de ensino, investigação e prestação de serviços especializados nos mais diversos sub-domínios das ciências ambientais e, mais recentemente, na área do desenvolvimento sustentável.
No domínio dos princípios e dos objectivos gerais não há desacordos significativos nesta matéria e não custa aceitar que, em Coimbra, a Comunidade Universitária conhece e subscreve estas preocupações básicas. Já no domínio da concretização o percurso é mais acidentado, quer pelas contradições do sistema, quer pelo custo do acto ambiental, quer, ainda, pela sensação de perda, quando é necessário renunciar à solução mais imediata, do papel sempre novo, sempre branco, ou do ar condicionado à medida da sensação de conforto individual. A concretização de desafios tão básicos exige maior partilha de informação, maior valorização social e maior visibilidade institucional.
Na promoção de novos edifícios e equipamentos, a bandeira é "o uso racional da energia", acreditando-se que este, quando levado às últimas consequências e aliado a uma "arquitectura de excelência", é garantia suficiente para que fiquem salvaguardas as maiores preocupações ambientais. Acredita-se, assim, que a preocupação energética não esquecerá a minimização do "custo do ciclo de vida", entendido em toda a sua complexidade e extensão, com início na extracção e transformação de matérias primas, percorrendo o longo ciclo de construção, utilização e desactivação, terminando apenas com o retorno à condição elementar de matéria, no mesmo lado da espiral onde assumimos ter iniciado o processo. Em complemento, é preocupação crescente a garantia da durabilidade dos edifícios e da exequibilidade das acções de manutenção, bem como a utilização racional do solo, privilegiando a alternância de zonas construídas com espaços livres, verdes e permeáveis.
Na reabilitação de edifícios acrescenta-se a preocupação da gestão dos resíduos de construção, cuja selecção começa a ser feita de forma criteriosa, potenciando a sua reciclagem e reutilização, diminuindo as exigências de aterro e reduzindo o risco de contaminação generalizada a partir de pequenas quantidades de resíduos perigosos.
Apesar de não ser possível ignorar integralmente as limitações técnicas e financeiras destas opções, é absolutamente iniludível que os maiores constrangimentos são de ordem cultural. A opção pela promoção de uma construção sustentável implica exigir muito dos projectistas, implica resistir à tentação de avaliar as soluções por mera intuição ou empatia com o modo do traço ou da luz, com a moda ou crédito da tendência que se adivinha, com o arrojo ou a ingenuidade da solução.
Este novo desafio é um gume afiado sobre os arquitectos, sobre os engenheiros e sobre os projectistas em geral. Quem não fizer a conversão radical que lhe permita perceber os constrangimentos de um futuro que não é só seu, e sobre o qual tem direitos limitados mas deveres avassaladores, pode em breve desejar que as suas obras não perdurem para que não fiquem como testemunho futuro duma barbárie de rosto civilizado.
Pensar "ambiente" é sempre "mudar de rumo" porque as nossas metas estão e estarão sempre aquém do desejável, limitadas pela condição da nossa temporalidade. Por isso, o desafio desta breve partilha não é o das grandes acções, que a outro tempo se abordarão, mas sim o das grandes atitudes que o ambiente aguarda sofregamente e que a nossa cultura tarda em aceitar.

José A. Raimundo Mendes da Silva
in Rua Larga – Revista da Reitoria da Universidade de Coimbra, Coimbra, Universidade de Coimbra, trimestral, nº 6 – Outubro 2004
http://www.uc.pt/sdp/rualarga98/subseccoes/detalhe.php?PnID=246

domingo, fevereiro 5

Trabalho e Ética

Na celebração de hoje demos início a um conjunto de reflexões temáticas sobre o Trabalho. Para além disso, pedimos a dois membros da nossa Comunidade que partilhassem connosco o que é o seu trabalho concreto, as angústias e as esperanças, as dificuldades e os desafios que vão sentindo no quotidiano.
A reflexão de hoje centra-se no Trabalho e a Ética e o João Maria André (Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra) escreveu para nós o texto que publicamos a seguir; a Carminho e o Zé Pureza deram-nos o seu testemunho, que também publicamos.



Para uma (Est)Ética do Trabalho

"Trabalho" é uma palavra que, na linguagem quotidiana, emerge na sua riqueza semântica nas mais diversas situações: "Que trabalho tão difícil!", Foi uma carga de trabalhos!", "Entrou em trabalho de parto", "Deu-me muito trabalho!", "É um trabalho criador"... Os exemplos poderiam repetir-se e, em todos eles, encontraríamos pontos de um arco que se desenha na tensão entre a sua origem etimológica ("tripalium" – instrumento de tortura formado por três paus) e o seu alcance antropológico, que remete para as formas de realização do homem como ser finito, carente e inconcluso. Se é esta dimensão antropológica que reclama uma ética do trabalho, são os seus contornos dolorosos que impõem, por sua vez, a inscrição dessa ética no pathos da existência.
Se o homem é um dos seres que de modo mais desamparado vem ao mundo, o trabalho é condição tanto da sua sobrevivência (nos limites da pura condição biológica), como da sua vivência numa realização em que se supera a satisfação das simples necessidades básicas e materiais. Neste sentido, o trabalho é a forma, mais simples mas simultaneamente mais abrangente, de realização do humano, tanto no plano da imanência (por um lado, na interacção com o meio, o ambiente, as circunstâncias, a natureza, e, por outro lado, na interacção com os outros que nos rodeiam ou que connosco interagem à distância), como no plano da transcendência (quer ao nível da transcendência religiosa a que muitas crenças humanas dão o nome de Deus, quer ao nível da transcendência estética, mística ou utópica, desde o fundo misterioso do Ser à humanidade redimida dos projectos libertadores).
É pelo trabalho que se dá a mediação entre o homem e a natureza. Marx reconheceu-o quando, nos seus Manuscritos, identificou no trabalho alienado uma das formas supremas de desrealização do humano. O que significa que uma ética do trabalho é, antes de mais, uma ética da desalienação, ou seja, uma ética que é simultaneamente libertadora e reapropriadora: libertadora da prática do trabalho como um "opus alienum", libertadora da relação com as coisas pelo seu carácter de mercadoria que reconfigura também o trabalho como mercadoria, e libertadora da dimensão escravizante do próprio trabalho. Mas, neste sentido, e consequentemente, uma ética do trabalho é também uma ética da reapropriação: o homem deve eticamente lutar por uma relação humanizante com os objectos em que se materializa a sua pulsão de vida e o seu esforço de existir e com o processo dinâmico dessa interacção que tem o nome de trabalho.
Esta ética da libertação e da reapropriação não deixará de ter implicações na relação que o homem mantém com aquilo que se pode considerar o prolongamento do seu corpo orgâ-nico e inorgânico: a natureza. Por esse motivo, uma ética do trabalho é também uma ética da natureza. E como não há ética da natureza sem a dimensão do belo e da harmonia, não pode haver uma ética do trabalho e da natureza sem uma estética da natureza: o trabalho reconfigura-se eticamente pelo "bom", sendo o bem o que funda a sua estru-turação, organização e efectivação. Mas o trabalho deixa-se também esteticamente pola-rizar pelo belo, não podendo haver um trabalho eticamente bom que não reconduza o homem à pro-dução e coprodução da beleza e à sua contemplação. Se, como diziam os antigos e os medie-vais, tudo o que é a partir do bom e do belo, também tudo o que é ao bom e ao belo retorna.
Mas é igualmente pelo trabalho que se dá a mediação entre o homem e os outros homens. Tudo começa pelo trabalho de parto: na aparente imobilidade da mãe se concentra o esforço para dar existência autónoma ao que fazia parte integrante da sua existência. O trabalho de parto é a situação prototípica de uma ética do trabalho assumida, antes de mais nada, como uma ética do cuidado. Trabalhar é cuidar dos outros e com os outros, na gratuidade plena do gesto, na oferta e no dom de si, sem esperar recompensa ou lucros e sem indagar da sua utilidade mercantil. Mas essa ética do cuidado é também uma estética do cuidado. Não é por acaso que a expressão "trabalho de parto" encontra uma das suas mais eloquentes traduções na expressão "dar à luz". E é também significativo que, desde Platão, uma das linhas mais marcantes da estética ocidental é justamente a estética da luz. E se a situação de parto é uma das mais originais situações de trabalho, pode dizer-se, literalmente, que trabalhar é dar à luz, dar à luz com cuidado, cuidar de dar à luz e cuidar de quem ou de quê se dá à luz. O que implica, ao lado do cuidado, a inscrição da harmonia em todas as situações e relações de trabalho que se estabelecem depois do primeiro trabalho, que é o trabalho de parto. Estar eticamente numa relação de trabalho é estar eticamente numa relação de harmonia com os outros e numa relação de equilíbrio com o seu mundo. Estar eticamente no trabalho é, no mais fundo desta expressão, habitá-lo, morar nele e fazer com ele a nossa morada (ou não significasse a palavra grega ethos habitação ou morada). Uma ética do trabalho é uma ética do cuidado, uma ética dos afectos e uma ética da solidariedade, que se funda no Princípio-responsabilidade (Hans Jonas).
Finalmente, o trabalho é também a forma como o homem se transcende a si próprio: naquilo que cria através do trabalho prolonga-se e preserva-se o homem no mundo, na memória do mundo e na memória dos homens. Mas este processo de transcendência é um processo que nos abala na nossa individualidade egóide e auto-suficiente e nos projecta no mistério do ser que nos ultrapassa. Os místicos chamaram-lhe nada, os santos chamaram-lhe deus, os metafísicos chamaram-lhe Grund, Urgrund ou fundamento, e os artistas chamaram-lhe fonte e plenitude de luz e de beleza. E é aqui que reside o carácter paradoxal do trabalho: ao mesmo tempo que é a nossa afirmação, é também a nossa desafirmação, porque é a nossa projecção no mundo do ser e o reconhecimento da nossa finitude, ou seja, do nosso não-ser. Neste sentido, a ética do trabalho é uma ética da ligação com os outros e com o mundo que somos e sabemos, e com os outros, o Outro, o mundo que não somos nem sabemos: a ética do trabalho é, assim, uma ética da re-ligação, ou seja, desemboca numa dimensão religiosa que, tantas vezes, se funde com a dimensão estética. "Se não sabemos do mundo senão o que dele tivermos feito" (Jorge de Sena), o que nele e dele fazemos mais não é do que o mar profundo e infinito do nosso não saber, que é o saber e o sabor dos nossos sentidos e que é também o sentido do nosso saber. E é curioso que tenha sido para falar desse saber e desse sabor dos sentidos que os modernos criaram a palavra estética. O que nos reforça na nossa convicção de que uma ética do trabalho é uma estética do trabalho: a fruição do seu gozo na desalienação do mundo (libertação do mundo), na desalienação dos outros (libertação dos homens), e na desalienação dos sentidos últimos da nossa existência (libertação suprema do bem a que aspiramos e por que esperamos). Uma ética do trabalho não é apenas uma ética fundada no Princípio-responsabilidade. É também um (est)ética da esperança. Fundada no Princípio-esperança (Ernst Bloch). É uma (est)ética da libertação.

Coimbra, Fevereiro de 2006
João Maria André



Testemunhos

Sinto-me privilegiado por ter o trabalho que tenho. Ensino(-me) a ler e a interpretar a realidade do mundo. Ter como profissão uma paixão é isso mesmo: um privilégio. Eu faço o que gosto. E cada vez gosto mais do que faço.
Mas o meu trabalho é muito difícil. Sou capaz de identificar quatro fontes de dificuldade. A primeira é a da complexidade. Trabalho com escalas mundiais e decifro sinais de guerra e de paz. Nestas coisas, quanto mais se abre o campo de análise mais a complexidade invade o nosso olhar e nos impede o uso de receitas redutoras e cómodas. Daqui advém um segundo factor de dificuldade: a exigência de rigor. Ter que identificar as boas fontes de informação, construir e desconstruir narrativas sobre a realidade, aproximarmo-nos o mais possível da exactidão, encontrar serenidade para fazer tudo isto com elevado profssionalismo e profundidade intelectual é uma tarefa de gigante. A terceira dificuldade é não abdicar de casar conhecimento rigoroso com transformação da realidade. Conheço para mudar, não para conservar. E isso faz-me correr o risco do viés, da paixão, do manifesto. Por fim, a dificuldade da sedução. Ensinar é cativar, é tornar atraente o trabalho de ler e de pensar. Há artes cénicas que quem ensina não pode ignorar.
Eu sou um privilegiado por ter esta profissão. Mas estar à altura deste privilégio é muito difícil.

José Manuel Pureza