domingo, fevereiro 25

A tentação de Jesus

Que melhor maneira de recomeçar a edição do nosso blog?!...
Deixamos aqui os textos que o Samelo nos foi preparando para esta nossa caminhada quaresmal...
Começamos por uma introdução à caminhada que iremos fazer e pelo texto para o 1º Domingo.

A tentação de Jesus
Desde a antiguidade cristã, o relato da tentação, comum aos Sinópticos, constitui uma dificuldade: parecia irreconciliável com a dignidade do Filho de Deus. A solução mais radical era negar que Cristo tivesse sido realmente tentado; tratar-se-ia de um relato exemplar para nos indicar como comportarmo-nos perante as tentações.
Contudo, as narrações evangélicas não parecem deixar lugar a dúvidas. Então, o problema será o de ver qual o real significado das narrações evangélicas e como devemos interpretá-las, tendo em conta a perspectiva de cada evangelista.
O brevíssimo relato de Marcos (1, 12-13), estreitamente ligado ao relato do baptismo, está inserido no anúncio por parte do Baptista da vinda de um mais poderoso que ele e o resumo da pregação de Jesus segundo o qual se cumpriu o prazo e devemos convertermo-nos ao Evangelho (Mc 1, 14-15). Neste contexto, o relato da tentação adquire o significado de apresentar esse “poderoso” que derrota Satanás despojando-o de todo o poder (cf Mc 3, 27) e tem capacidade para isso, porque nele reside o Espírito (Baptismo), sinal dos tempos messiânicos. Este Espírito é o que conduz Jesus ao deserto, lugar tradicional da tentação (Dt 8, 2s); os quarenta dias que ali passa Jesus recordam os quarenta anos que Israel passou no deserto, anos de tentações e de traições. Porém, precisamente com a vinda de Jesus, este lugar fica transformado. Ele venceu a luta com o demónio e inaugura assim os últimos tempos, quando, como sucede precisamente a Jesus, os animais selvagens deixarem de ser inimigos do homem (cf Is 11, 6s) e será possível a familiaridade com Deus, representado pela proximidade dos anjos. É praticamente um retorno aos tempos paradisíacos: Satanás não pode arrancar Jesus da proximidade de Deus e assim se abre para o homem a possibilidade de uma amizade renovada com Deus.
Mateus (4, 1-11) pormenoriza o conteúdo das tentações: nelas torna-se a viver toda a história de Israel, mas agora em plena fidelidade a Deus e ao seu modo de intervir na história. Satanás interpela Jesus com o título de “Filho de Deus”, nome recebido no baptismo. Porém, esta qualificação não significa honras, riqueza, poder, mas exige a plena confiança na palavra de Deus e na sua vontade que, concretamente - como sugeria já o episódio do baptismo - significa empreender o caminho do servo que toma sobre si os pecados do povo. Fica excluída, portanto, o caminho da abundância, da segurança baseada nos bens materiais (4, 3-4): não é esse caminho, que Jesus percorrerá na sua vida, mas antes a fé na palavra e a disponibilidade para as suas exigências.
Fica também fechado o caminho de um messianismo construído sobre milagres estrepitosos (4, 5-7); a confiança em Deus não se baseia em actos de prestígios, mas consiste ”numa esperança contra toda a esperança”. Por isso, a cruz não será o sinal do fracasso (cf Mt 27, 42-43), mas o da entrega suprema ao Pai: apesar das aparências é este o caminho que leva à vida.
E também é impraticável o caminho do messianismo político (4, 8-10): o caminho que leva à vitória é o do serviço e não o do poder.
Por ambição de domínio, Israel entregou-se, por vezes, à adoração de deuses estrangeiros, à idolatria. Porém, só Deus é o verdadeiro “dominador” deste mundo e nada mais há a fazer do que seguir na fé o caminho por Ele indicado.
Lucas recolhe duas ideias características que vale a pena sublinhar: uma depende da posição que ocupa, no seu evangelho, o relato das tentações; a outra está ligada à conclusão deste mesmo relato (Lc 4, 1-13).
O Jesus que Lucas nos apresenta é aquele cuja ligação com Adão fora insinuada e o Espírito que o move é aquele que baixou sobre ele quando estava a ser baptizado. O baptismo, a genealogia e a tentação formam na perspectiva lucana uma unidade muito estreita (3, 21 ─ 4, 13). Não se trata só do novo Israel, mas da renovação da humanidade. Adão enganou-se no jardim; porém, Jesus é o novo Adão que está na origem dessa humanidade nova que nasce da vitória sobre Satanás e sobre o pecado. O baptismo é o sinal dessa vitória e desse novo nascimento: já referimos que a oração de Cristo durante a efusão do Espírito era um apelo directo à oração da comunidade cristã para que o Espírito baixasse sobre o baptizado.
A segunda observação consiste no facto de Lucas organizar as coisas de tal modo que as tentações têm a sua conclusão em Jerusalém (4, 9). (Jerusalém: seu significado). Sabemos que no seu evangelho todo o “caminho” de Jesus está orientado para a cidade santa, onde terá lugar a sua “ascensão” (9, 51); aliás, afirma-se explicitamente que o diabo se retirou, mas apenas por algum tempo (4, 13). Esta referência diz respeito, sem dúvida, à paixão-morte de Jesus como momento supremo da sua luta com Satanás: particularmente, no Getsémani, Jesus incita com insistência os apóstolos a rezar “para não caírem em tentação” (22, 40.46). A Páscoa será a vitória definitiva de Cristo, a sua fidelidade à palavra de Deus que aparentemente leva à derrota, mas que, na realidade, é a superação última de todas as sugestões diabólicas e o cumprimento daquela missão de salvação que o Pai lhe havia confiado.
Em conclusão, as tentações mostram uma vez mais a solidariedade de Cristo com a humanidade: ele fica a fazer verdadeiramente parte da nossa história com todas as suas ilusões, as suas dificuldades, com toda a sua carga de pecado. Não é que nele haja qualquer conivência com o pecado, mas precisamente a sua “inocência” e, portanto, a sua plena disponibilidade à vontade do Pai levá-lo-á à cruz, isto é, à situação do máximo afastamento de Deus. O caminho do servo é o caminho de sofrimento, de morte e a morte é a interrogação radical posta à vida e à fé no Deus da vida. É a tentação radical, aquela que também Cristo padeceu exactamente pelo seu “ser sem pecado”, isto é, pela sua abertura completa aos desígnios da Salvação do Pai. Foi precisamente o seu “ser Filho”, isto é, manifestação do Pai, o que o levou a este choque com Satanás (“se és Filho de Deus...”), a experimentar pessoalmente a tentação como o povo eleito (Mt), como toda a pessoa humana (Lc).
Contudo, é esta confiança incondicional em Deus o caminho para a vitória, essa confiança que Satanás tenta eliminar e que Cristo afirma com decisão. Por ele e por nós.

A transfiguração de Jesus
Primeiro que tudo deve destacar-se que o contexto no qual os Sinópticos falam da transfiguração é praticamente idêntico: um contexto dominado pela temática da paixão e da cruz (cf Mc 9, 2-13 par). O filho do homem que virá sobre as nuvens do céu (Dan 7), recordado na nuvem que aparece no monte da transfiguração, é o filho do homem que terá de padecer e morrer (Mc 8, 31). E isto supõe um escândalo para os discípulos; mas a transfiguração não faz mais que confirmar este escândalo: da glória que aqui se manifesta não se pode falar a não ser no contexto do destino de Cristo e do cristão.
A voz do céu recorda o baptismo. Também ali a manifestação de Jesus estava estritamente ligada à sua missão de salvar a humanidade do pecado. Remete-se aos mesmos textos veterotestamentários: Sl 2, 7 (que fala do messias-rei) e Is 42, 1 (o “servo de Javé”). Jesus resume em si mesmo estas diversas formas de messianismo; é o messias esperado, mas a sua realeza não pode separar-se da sua apresentação como “rejeitado por Deus e abandonado”. Nele se cumpre toda a revelação veterotestamentária: a “lei” e os “profetas” (Moisés e Elias) falam dele. As exigências mais profundas da lei, isto é, a plena fidelidade à Aliança com Deus e aos que esta aliança leva consigo encontram o seu cumprimento na entrega da sua vida. E o seu destino não desdiz o daqueles profetas que, na medida em que anunciaram fielmente a palavra de Deus, encontraram perseguições por parte dos homens. Nisto precisamente radica a sua glória, a sua “transfiguração”.
É isto o que os discípulos têm que entender: a revelação da glória de Cristo realiza-se na sua humilhação. Se se compara Mc 9, 2 com Mc 14, 33 vê-se que há uma estreita relação entre o ser testemunhas da transfiguração e o ser testemunhas da debilidade no Horto das Oliveiras: sobre o Monte, esconde-se-lhes contemplar uma antecipação da glória do Ressuscitado para que saibam compreender que a paixão e a cruz não são algo incompreensível, que se deva rejeitar, mas que entram no plano amoroso de Deus. Por isso mesmo, Lucas indica que com Moisés e Elias Jesus falava do “seu êxodo que ia completar em Jerusalém” (Lc 9, 31). Para quem tem olhos para ver, o Crucificado não é abandonado por Deus, mas a manifestação suprema do seu amor. Tal como na parábola dos vinhateiros homicidas (Mc 12, 1-12), Jesus não vai ao encontro da paixão e da morte apesar de ser Filho de Deus, mas precisamente por ser Filho: será no completo abandono à vontade do Pai que alcançará aquela glória de que a transfiguração é apenas uma antecipação.

António Manuel Neto Samelo


1º Domingo da Quaresma - Ano C
25-02-2007

A tentação de Jesus

Preâmbulos:

1º: Lucas não jornalista das tentações de Jesus… mas membro de comunidade(s) cristã(s) para quem escreve… uma catequese sobre a(s) tentação(ões) de Jesus.

2º: A tentação não é pecado… no Pai-nosso: “não nos deixes cair em tentação…”

3º: Jesus cresceu, teve dúvidas, … foi realmente tentado…e não apenas três vezes…: toda a sua existência foi marcada pela tentação: abandonado do Pai…

4º: Segundo a perspectiva cristã, a pessoa humana é um ser em relação
* com a natureza,
* com os outros,
* com Deus e
* consigo mesma.

5º: Esse ser em relação pode ir sendo realizado segundo dois “jeitos”:
ou “ao jeito de Jesus”, isto é, não cair em tentação
ou “ao jeito do diabo”, isto é, cair em tentação.

Catequese de Lucas sobre as tentações de Jesus:

Diabo atraente….

1ª Tentação (“pedra…”):
relação com a natureza e os seus bens:
* “ao jeito do diabo”, isto é, cair em tentação: agir como patrão e dono… egoisticamente;
* “ao jeito de Jesus”, isto é, não cair em tentação: agir como administrador (cf 1ª leitura: “as primícias…”: destino universal dos bens…).

2ª Tentação (“reinos…”):
relação com os outros:
* “ao jeito do diabo”, isto é, cair em tentação: agir segundo o “quadro” que fazemos do(a) outro(a) à nossa imagem e semelhança… domínio… “Mas, direis, que divisão vês entre nós? Aqui, nenhuma, mas quando termina a nossa assembleia, um critica o outro; outro injuria publicamente o irmão; outro enche-se de inveja, de avareza ou de cobiça; outro entrega-se à violência; outro à mentira e à fraude. Se nossas “almas” pudessem ser postas a nu, veríeis então a exactidão de tudo isso… Desconfiando uns dos outros, falamos ao ouvido do vizinho e se vemos aproximar-se um terceiro, calamo-nos e mudamos de assunto… Respeitai, respeitai esta mesa da qual todos nós comungamos; respeitai Cristo entregue por nós.” [João Crisóstomo (± 354 - 407)];
* “ao jeito de Jesus”, isto é, não cair em tentação: agir servindo o(a) outro(a) (lava-pés - cf Jo 13, 1-17), vivendo “o sermão da montanha”) (cf Mt 5─7 e paralelo em Lc 6, 20-49):

3ª Tentação (“templo…”):
relação com Deus:
* “ao jeito do diabo”, isto é, cair em tentação: duvidar da fidelidade de Deus=Amor (cf testemunho da atitude do Zé Dias na doença:
(…) Perante esta inesperada notícia (um quisto de gordura…maligno) ocorreram-me três palavras bíblicas.
A primeira é de Job: “Deus mo deu, Deus mo tirou. Que o Senhor seja louvado!” (2, 21). Ao repetir esta palavra, fiquei feliz por não ter dito “Porquê a mim? Que mal fiz a Deus?”, como se eu merecesse um tratamento especial da parte de Deus ou como se estas coisas não acontecessem todos os dias a tanta gente. E que esta era uma das minhas dúvidas: “será que a minha fé resiste a uma contrariedade grave? Como ‘tratarei’ Deus nessa situação? (…)
in: Correio de Coimbra de 2006-03-09, página 7);
* “ao jeito de Jesus”, isto é, não cair em tentação: “Pai, afasta de Mim este cálice!... mas faça-se a Tua vontade e não a minha” (Mt 26, 42b - no Pai-nosso: “seja feita a Tua vontade assim na terra como no céu”); “desce da cruz e acreditaremos!... e não desceu e assim nos revelou um Deus “sub contrario”, às avessas… (cf Cálice de Chico BUARQUE e o testemunho da atitude do Zé Dias na doença:
(…) A terceira palavra vem do Jardim das Oliveiras: “Meu Pai, se é possível afasta de mim este cálice. Contudo, não se faça como eu quero, mas como tu queres” (Mt 26,39). Estas palavras de Jesus colocaram-me sempre problemas existenciais profundos. O que devia eu rezar a Deus: “Cura-me” ou “Faça-se a tua vontade”? No primeiro momento, a tentação foi pedir a cura. Mas resisti e acabei por pedir a Deus que me desse forças para aceitar a sua vontade. E que a vontade de Deus podia não ser a minha cura. E pedir a cura pode gerar um “conflito de interesses”. (…) in: Correio de Coimbra de 2006-03-09, página 7).
Por isso não pedi a Deus que me curasse, mas que me desse forças para aceitar sem revolta a sua vontade. A oração não tem que ser só petição, nem uma tentativa de alterar a vontade de Deus, menos ainda uma espécie de cunha que pode raiar o suborno: “Não tentes corrompê-lo com presentes, porque Ele não os receberá. Não te apoies num sacrifício injusto. Porque o Senhor é justo e não faz distinção de pessoas” (Eclo 35, 11-12).

E por fim a relação connosco próprios(as):
Quaresma é a preparação da nossa festa mais importante - a Páscoa (morte e ressurreição de Jesus) (cf 2ª leitura); o jejum que nos é pedido “consistirá acima de tudo no repouso imposto a si mesmo, na disciplina da tranquilidade e do silêncio, onde a pessoa encontra a possibilidade de se concentrar para a oração e a contemplação, mesmo no meio de todos os ruídos do mundo, entre a multidão, nos cruzamentos da “cidade”; consistirá principalmente na capacidade de compreender a presença dos outros, dos amigos, em cada encontro; o jejum, ao contrário do masoquismo imposto, será a renúncia alegre do supérfluo, a sua partilha com os pobres.” (Paulo EVDOKIMOW, teólogo cristão ortodoxo).
António Samelo